O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, janeiro 19, 2007

A PIA- ASSOCIAÇÃO DOS ALUNOS DO SEMINÁRIO MAIOR DO PORTO

Hoje, o José Miguel trouxe-me uma publicação, com dedicatória do autor, o A. Carmo Reis, com o título “SOBRE A ANTIGA ASSOCIAÇÃO DE ESTUDANTES DO SEMINÁRIO DA SÉ DO PORTO, (Boletim de 2005 – 3ª série – Nº 23 – da Associação Amigos do Porto). Estes meus dois amigos, dois anos mais novos que eu no Seminário, quiseram lembrar a minha passagem como presidente desta veneranda associação, em 1962/63.

HISTÓRIA
Li com muito interesse esse opúsculo sobre a história da Pia. E vi que a actual Pia Associação de S. José resultou da fusão, em 1936, da Pia União de S. José, fundada pelo Cardeal D. Américo em 1874 e da Ala dos Cruzados Académicos já existente desde 1908.
Esta associação funcionava como uma autêntica associação de estudantes com três funções mais importantes: prestar culto a seu patrono - S. José, desenvolver actividades de carácter cultural e social, representar os alunos junto do Senhor Reitor.
A sua direcção era formada pelo Presidente-Nato, o Reitor do Seminário, e por três alunos eleitos: o vice-presidente (ou presidente em exercício), o secretário e o tesoureiro. A Assembleia Geral electiva tinha lugar na biblioteca do seminário, sendo eleitores todos os seminaristas. No nosso caso, o Presidente-Nato, Monsenhor Miguel Sampaio, propôs três nomes para cada um dos cargos. Sei que para a Vice-presidência os propostos foram: Justiniano Ferreira dos Santos, o aluno mais brilhante do meu ano; o Joaquim Carneiro Dias que, depois, foi o Monitor-Geral do Seminário e o meu. Por votação secreta, foram eleitos: eu como vice-presidente , o Avelino Ricardo Teixeira da Silva para secretário e o António Ferreira de Brito para tesoureiro. Não houve campanha para essas eleições pois que os nomes propostos pelo Senhor Reitor só foram conhecidos nesse momento. Estou convencido que a minha eleição por larga maioria absoluta (64 votos num universo de, creio, 98 votantes) deveu-se ao facto de os alunos dos anos anteriores já me conhecerem como vice-presidente que fui da Academia do Beato Nun´Álvares no Seminário de Vilar Do conjunto das actividades que a Pia desenvolveu nesse ano, limitar-me-ei a falar apenas de uma em cada um dos diversos sectores de actuação.

PROMOÇÃO DO CULTO DE SÃO JOSÉ
No terceiro domingo depois da Páscoa, conforme os estatutos (?), organizámos uma festa na igreja do Seminário que foi precedida por uma novena. Nessa novena, os diáconos escolhidos fizeram uma homilia por noite, tendo por tema para cada noite uma das invocações da “Ladaínha de São José” ( Lembro-me que ao Brito calhou o “ Ioseph castissimus…”)
No dia, de manhã, tivemos Missa Solene presidida pelo Senhor Reitor sendo pregador o Pe. Vaz dos Cursos de Cristandade. De tarde, houve um cerimónia com terço e sermão na Igreja. De acordo com a tradição, era ao Vice-presidente que competia fazer esse sermão. E por isso… lá subi eu ao púlpito. A igreja dos Grilos, igreja do Seminário, estava cheia, mas o que sobressaía aos olhos de quem, lá das alturas do púlpito, olhava para a assembleia era a enorme mancha branca das sobrepelizes dos seminaristas. Ainda me lembro daqueles rostos (com ar de gozo…) apoiados na mão direita virados para o púlpito e o abanar da cabeça como que a dizer, ironicamente: estás a falar muito bem! Isto de convencer colegas… Por isso, resolvi deixar de olhar para eles e fixei-me na outra parte da assembleia onde estavam amigos meus, tais como muitos dos pais dos pequenos da catequese que tinham frequentado as colónias de férias em Albergaria das Cabras, Arouca, e em Valongo, a família do senhor Costa de Valongo e outros (creio que meus pais também estiveram presentes para ouvirem este primeiro sermão oficial do filho…). Se convenci alguém, de certeza, que não foi nenhum dos colegas…
Fui com emoção que, passado todo este tempo, reli o manuscrito que guardei desse sermão. Resolvi anexá-lo a este texto, em versão integral: (1)

* porque foi o meu primeiro sermão. Nunca gostei de fazer sermões, sentia-me desconfortável, não via as pessoas de frente, não as olhava nos olhos; não me apercebia das suas reacções. Fiz muitas homilias, preguei vários retiros, fiz discursos e conferências, mas sermões só fiz mais outro – na minha terra, no dia de Todos-os-Santos desse mesmo ano, porque não podia dizer que não ao meu pároco e ao meu padrinho José Joaquim da Ponte. Mesmo quando o António Taipa me convidou para ser o pregador da sua “Missa Nova” disse-lhe: “ eu não sei fazer sermões, só sei fazer homilias”. E assim foi… fiz a homilia no altar na igreja de Freamunde.

* porque foi escrito há cerca de 44 anos. Trata-se de documento do seu tempo que me permite descobrir:
- uma visão um pouco negativista do mundo de então :“ A harmonia entre a alma e o corpo querida por Deus no plano da Criação foi quebrada por dois pólos opostos: o puro materialismo que reduz o homem à matéria; e o espiritualismo unilateral que reduz o homem ao espírito”;
- uma crítica, velada, à espiritualidade de alguns dos meus colegas no seminário e que tanto mal causou à convivência no meu ano. “ Por vezes sonhamos com uma santidade descarnada, uma santidade falsa porque sem alicerces”;
- um grande sentido de esperança e alegria para a Igreja “É maravilhoso o incremento do cristianismo nos nossos dias, um cristianismo alegre e jovem que respeita, desenvolve e sublima o Homem com todas as suas virtualidades.”

* porque me permite ver que, nessa época, se podiam já vislumbrar linhas de pensamento que influenciariam o meu apostolado futuro, quanto:
- às preocupações pastorais que nortearam o meu sacerdócio “ transformar o mundo de selvagem em humano e de humano em cristão”
- à espiritualidade que procurei fomentar “Esquecemo-nos que o edifício da nossa santidade tem que assentar sobre a nossa humanidade integral” ”Vivifiquemos (…) a heróica vulgaridade do nosso dia-a-dia!”
- e às vias de santificação através da vida quotidiana que procurei valorizar “Quando cumprimos
(…) as exigências vitais (do corpo) estamos a satisfazer a Vontade de Deus” “Faz parte do plano
da Providência que cada um se aperfeiçoe mediante o seu trabalho quotidiano” ”o cristianismo
sobrenaturaliza os autênticos valores humanos”

* Permite-me, também, ver como o meu pensamento sobre a Igreja, embora já se note um certo aceno ao Vaticano II ao identificar a Igreja como “ Povo Santo”, ainda estava muito marcado pela concepção de Pio XII, acentuando o seu carácter de “ Corpo Místico de Cristo”,
* Porém, onde se verifica uma maior diferença é no papel da Igreja perante a Sociedade Política; nota-se uma certa mentalidade conservadora
A lei natural e cristã mandam respeitar aqueles que, em qualquer grau possuem autoridade no Estado e conformar-se com as suas ordens justas”. Embora se ressalve a obediência para “as ordens justas”, quão longe está da concepção interventiva que motivou a suspensão do meu passaporte, anos mais tarde.

ANIMAÇÃO CULTURAL DO SEMINÁRIO

Para além de diversas academias, vêm-me à mente a realização de jogos florais com poesias, ensaios, contos etc. O Brito ganhou o primeiro prémio em poesia e eu tive uma menção honrosa em “ensaio”- sector de Sociologia, com um trabalho sobre a influência da televisão nas crianças. O júri era presidido pelo Dr. Xavier Coutinho. Relembro ainda o nosso trabalho no campo do jornalismo, coordenado pelo Brito, com a publicação de artigos na imprensa regional sobre o Vaticano II, uma vez que eu, por inerência de funções, fazia parte da Comissão Diocesana criada para divulgar o Vaticano II. Também era a nós que nos competia regular, com a concordância do Senhor Reitor, a utilização da televisão que estava na Biblioteca: programas, dias…
Porém, é um caso sobre a exibição de um filme que quero ressaltar por ter sido um momento, por sinal o único, em que tive um conflito com o senhor Reitor. Eu conto.
Era à Pia que competia coordenar e alugar os filmes a exibir no Seminário. Mas, contrariamente à minha experiência na Academia no Seminário de Vilar, havia um padre encarregado de supervisionar a exibição de filmes - nesse ano, o Senhor Reitor incumbiu o Dr. Armindo de tal função. Nunca aceitei bem esta intromissão porque considerei ser uma ofensa à autonomia académica. Acontece que, em anos anteriores, a Pia, para ter filmes mais baratos, fizera um contrato com a Lusomundo (?) comprometendo-se a exibir um dado número de filmes de uma lista que então fora fixada. Assim, aconselhados pelo Círculo de Cinema do Seminário, decidimos contratar um filme que constava da lista e cuja exibição nos cinemas em Portugal tinha gerado grande polémica: era de Fellini e tinha como protagonista sua esposa Giulieta Massina com o título “ Noites de Cabiria”. Estava eu doente (daquela doença que todos os anos me acometia… e durava sempre uma semana: começava sempre por uma gripe…) quando o Avelino Ricardo me veio dizer que o Dr. Armindo não autorizava a exibição desse filme e que nós escolhêssemos qualquer outro da lista. Fiquei furioso com tal censura e descobri no elenco um filme de Visconti, baseado num texto de Dostoievski com o título “ Noites Brancas”. Desconhecia o conteúdo do filme mas, se o Dr. Armindo autorizava, é porque o conhecia e a responsabilidade era dele. E o filme foi alugado.
Durante a exibição, apercebi-me que o tema não deveria agradar aos padres porque abordava o tema da prostituição e, de modo velado, pareceu-me fazer algumas alusões à homossexualidade. No final, uns colegas vieram dizer-me: “ ó João, o Senhor Reitor está furioso contigo, disse que isto é “uma merda” e esteve para mandar interromper o filme”… Fiquei tranquilo. “Não era eu o responsável. É bem feita, deixassem-me trazer “As Noites de Cabiria”… pensei com os meus botões.
No dia seguinte, no final do almoço, ao sair do refeitório, já no corredor, Monsenhor Miguel Sampaio pregou-me uma descompostura descomunal, chamando-me irresponsável e outras coisas mais violentas com um tom de voz que lhe desconhecia. Nem reparou que, a ouvir tudo, estava uma senhora que o esperava. Mantive-me calado. Não disse uma palavra. E fui para o recreio. No início do período de estudo da tarde, fui ter com o Senhor Reitor ao seu quarto. Quando entrei, já o Monsenhor ia retomar o mesmo tom de repreensões quando eu lhe disse. “ Senhor Reitor, se me autoriza, agora quem fala sou eu uma vez que, há bocado, deixei-o falar à vontade e não lhe dei qualquer justificação até porque estava uma pessoa estranha ao seminário a ouvir a nossa conversa e fui humilhado na sua presença. Senhor Reitor, não peça responsabilidade a quem roubou liberdade. O Senhor Reitor nomeou um padre (nunca citei o nome do Dr. Armindo) para controlar a exibição de filmes, mostrando que não confiava em nós e ofendendo a autonomia académica. Esse padre mandou-nos desmarcar um pedido de um filme que já enviáramos à Lusomundo, que era “ As Noites de Cabiria”. Esse mesmo padre responsável disse para nós encomendarmos qualquer outro filme de uma lista que ele conhecia. Nós assim fizemos. Por isso, não era este o filme que nós queríamos mas foi o filme que nos foi autorizado. Não aceito que o Senhor Reitor me responsabilize quando não me deu liberdade de escolha. Repito: não é legítimo exigir responsabilidades a quem não se deu liberdade” e contei-lhe a minha experiência no Seminário de Vilar “onde não havia ninguém entre mim e o Reitor e nunca houve qualquer problema.”. O Monsenhor Miguel ouviu tudo em silêncio. Explicou que não sabia destes antecedentes e pediu-me desculpa pelo que me tinha dito, especialmente porque não tinha reparado na presença da tal senhora que o esperava. E o incidente ficou sanado. Ou não?... Porque é que, depois, eu fui nomeado coadjutor de Santo Ildefonso? Não seria alguém que precisava de ser domado por uma personalidade forte?

EM REPRESENTAÇÃO DOS ALUNOS…

A este propósito relembro um caso que, hoje, me faz sorrir mas que, naquela época, levámos muito a sério.
Corria o ano 1963. A construção da “Ponte da Arrábida”, do Eng. Edgar Cardoso, com o maior arco de cimento armado do mundo, enchia-nos de orgulho, concitava todas as atenções e era motivo de grande entusiasmo. Era a primeira a ser construída depois da de D. Luís, já lá iam uns cem anos… O Grupo Coral do Seminário fazia ensaios e mais ensaios para cantar na missa, que iria ser transmitida para todo o País através da televisão( nós íamos aparecer na televisão!…), da sua inauguração em Junho quase sobre a época dos exames. Alguém descobriu que, nesse ano, se celebrava o centenário do Seminário… Por isso, a coisa era clara: nesse ano, não podia haver exames para assinalar a inauguração da “Ponte” e comemorar o centenário do seminário. Vieram falar com a Pia. E a Pia assumiu as suas responsabilidades. Expusemos ao Senhor Reitor as nossas pretensões. “ Que ia falar com o Senhor Bispo”. Passados uns dias chamou-me comunicou-me que o Senhor Bispo, atendendo ao nosso pedido, ia falar com os professores e combinar uma disciplina por ano em que não haveria exame.
Ouvi e falei com os colegas. “ Que não! Porque iriam escolher uma das semestrais sem interesse. Ao menos, que nos deixasse escolher a disciplina a que não haveria exame”. Até me prometeram colocar uma lápide comemorativa no Oreb ( só promessas...). Falei novamente com o Senhor Reitor que falou novamente com o Senhor Bispo: “ Que não, os professores é que escolheriam a disciplina a dispensar.”
Então, engendrámos um novo esquema que, com a autorização implícita do Senhor Reitor, pusemos em acção no dia da inauguração da Ponte da Arrábida. De acordo com o combinado, no final da Missa, eu e creio que o Carneiro Dias, como Monitor-Geral (à inauguração da Ponte só foram os cantores e alguns elementos da Direcção da Pia não eram cantores…), abeirámo-nos do senhor Bispo, D. Florentino, enquanto os outros seminaristas rodearam o Núncio Apostólico, Monsenhor Forstenberg (Não sei se é assim que se escreve.). O Senhor Bispo viu-me, mas disfarçou mantendo uma conversa com umas senhoras. Aguardámos. Logo que nos atendeu, disse-lhe à queima roupa: “ Senhor Bispo, queríamos pedir-lhe novamente que autorizasse que fossem os alunos a escolher a disciplina dispensada de exame ou nos autorizasse a falar com o Senhor Núncio Apostólico. -“ Vós não sois capazes de ir pedir ao Senhor Núncio” – “ Senhor Bispo! Repare com quem é que ele está a falar.( Eram os alunos que, de acordo com o previamente combinado)) Basta eu levantar a mão e os alunos falam já com ele.” O Senhor Bispo ficou pálido (mais pálido do que ele já era), parou um momento e, por fim diz: -“ Está bem. Uma à escolha dos alunos. Digam ao Senhor Reitor para vir falar comigo. “. Repetimos para confirmar que não nos tínhamos equivocado: "Uma à nossa escolha, Senhor Bispo.” – “ Sim, uma à escolha dos alunos”, repetiu o Senhor D. Florentino.
Despedimo-nos e agradecemos. Os colegas acabaram logo a conversa com o Núncio e, quando lhes dissemos, foi uma festa sobre outra festa. Por isso, quando, em camioneta fretada pela organização da inauguração, passámos sobre o tabuleiro da Ponte inaugurada, o rio pareceu-nos mais dourado e o mar mais verde e o céu mais azul... Que festa!... A festa repetiu-se no Seminário quando os restantes seminaristas tiveram conhecimento da boa nova…” Uma disciplina à nossa escolha”. Cada ano deve reunir-se para escolher… Ainda recordo o dia em que, após o almoço, os diversos anos se reuniram no recreio, separadamente, para votarem a disciplina a ser contemplada, enquanto, passeando na varanda de S. João de Brito, os padres assistiam não muito satisfeitos a tão inusitado exercício de democracia. Foi uma alegria quando se começou a ouvir: Pum! Lá foi a Exegese!; Pum! Lá se foi a Filosofia!; Pum! Lá se foi a Sacramental!.. Alguns professores sentiram-se postos em causa por pensarem que a rejeição da sua disciplina correspondia a um voto de censura ao professor. E , se isso aconteceu, não foi o caso do nosso ano em que a escolhida foi a Sacramental quando nós até gostávamos e admirávamos o professor que era o Dr. Madureira: era uma disciplina que dava muito trabalho. Mas houve professores que ficaram mesmo zangados…
Hoje, ao pensar nisto tudo, só penso que foram coisas de gente nova e só tenho que pedir desculpa ao Senhor D. Florentino por o termos metido em tão maus lençóis. Não foi intencional, mas, de facto, aproveitámos a sua situação de Administrador Apostólico que não queria ter nada que ofuscasse a sua imagem junto do Núncio Apostólico… e, por isso, a sua cedência.
E eu… mais uma vez… a precisar de um pulso que me controlasse… e, por isso… coadjutor de Santo Ildefonso…
Mas a minha admiração pelo Senhor D. Florentino continua… porque, depois de tudo o que lhe fiz passar, ainda teve a coragem de me dizer, na véspera da minha ordenação sacerdotal, “Só quero que sejas, como padre, o que foste como seminarista” e confiou em mim para criar uma nova paróquia na Cidade do Porto e convidou-me para pertencer ao primeiro Conselho Presbiteral da Diocese e nomeou-me para responsável da Obra que era a menina dos seus olhos – a Obra Diocesana de Promoção Social da Cidade do Porto… Obrigado. Deus o recompense!...

CONCLUINDO...
Ao abordar o trabalho desta Associação, fundada em tempos da Monarquia, bem como o da Academia de Beato Nun’Álvares do Seminário de Vilar, de que já falei, não posso lamentar-me da “Manhã Submersa”, como Vergílio Ferreira… Bem, pelo contrário, numa época em que aos estudantes liceais e universitários (não podemos esquecer que a minha gerência da Pia coincidiu com a primeira crise académica de 1962) eram negados muitos direitos, com especial relevo para o de expressão e associação, nós, no Seminário assumíamos posições de autêntico confronto e exercício democrático. Aí, e apesar de muitas limitações, podemos afirmar que o Porto se afirmava como a “terra da liberdade”…

(1)
“Reverendíssimos Ministros do altar; amados colegas, meus bons irmãos

Na palavra de Sua Santidade o Papa João XXIII “ a nossa época está penetrada de erros radicais e perturbada por profundas desordens; todavia ela é também uma época em que se abrem imensas probabilidades de bem ao espírito combativo da Igreja”.
Ao lado de um materialismo que nega os autênticos valores espirituais e humanos, floresce um cristianismo que mais e mais vive a sublimação do homem redimido por Cristo.
Ombreando com um cristianismo de tradição, negativo, tétrico e egoísta, cresce um cristianismo autêntico, pleno de Fé e Juventude que animado pelo seu ardor de caridade, pela vivência de Cristo, deixa as ombreiras mesquinhas do individual para se lançar na conquista do Mundo para Deus.
A harmonia entre a alma e o corpo querida por Deus no plano da Criação foi quebrada por dois pólos opostos: o puro materialismo que reduz o homem à matéria; e o espiritualismo unilateral que reduz o homem ao espírito.
“ O homem separado de Deus torna-se desumano consigo mesmo e com os outros seus semelhantes porque a ordenada relação de convivência pressupõe a ordenada relação da consciência da pessoa com Deus, fonte de Verdade, de Justiça e de Amor”.
O homem, estonteado com as suas obras, quis construir uma humanidade sem Deus, quis desterrar Deus como um ser ultrapassado, inútil, o mito dos ignorantes. Recusou-se a glorificar o seu Criador, quis celebrar a sua glória de super-homem, desligando-se da Fonte de toda a sua grandeza.
Cansado da vacuidade materialista, o homem aspira por algo de indefinido que lhe sacie a alma! Começa a debater-se com o desespero de não encontrar o objecto do seu ideal. Procura a felicidade e apenas encontra a aparência de felicidade e, por isso, depois de cada tentativa, vem o fracasso, o desalento e o desespero. Bebe até ao fundo a taça das felicidades mundanas e, por fim, ao debater-se com o absurdo da sua vida, resolve refugiar-se no suicídio. É que, como diz Santo Agostinho:” o Senhor fez o nosso coração para Ele e o nosso coração andará inquieto até descansar n’Ele”. Em Deus está a nossa Felicidade.
No pólo oposto ao materialismo, temos o espiritualismo unilateral que, para nós cristãos, pode ser mais perigoso do que o primeiro. Ilude facilmente as pessoas bem intencionadas porque tem aparências de verdade e exerce um certo atractivo espiritual. E assim podemos cair no angelismo e, como diz Pascal, “ o homem nem é um anjo nem um simples animal”, foi criado corpo e alma.
Por vezes sonhamos com uma santidade descarnada, uma santidade falsa porque sem alicerces. Esquecemo-nos que o edifício da nossa santidade tem que assentar sobre a nossa humanidade integral.
O cristianismo é a sublimação do homem e não o seu aniquilamento; o cristianismo sobrenaturaliza os autênticos valores humanos.
Sempre a Santa Igreja, através dos tempos, teve que combater este falso processo de santificação e, assim, na Idade Antiga, anatematiza os Maniqueus e Priscilianistas; na Idade Média, condena os Albigenses e Fraticelos.
A par destes dois extremos que convergem na desumanização, vai crescendo cada vez mais o número daqueles cristãos que procuram encarnar na sua vida a Fé que professam; que se preocupam e sofrem com Cristo nos seus irmãos; que fundamentam a sua Caridade na Justiça, porque, como diz Pio XII, não pode haver caridade sem justiça; que procuram levar todos os homens a reconhecer e amar o seu Criador. É maravilhoso o incremento do cristianismo nos nossos dias, um cristianismo alegre e jovem que respeita, desenvolve e sublima o Homem com todas as suas virtualidades.
Irmãos, desde o dia do nosso baptismo, nós somos uns consagrados. Incorporados em Cristo, todos os nossos actos devem ser feitos sob a moção dessa entrega total a Cristo :“ as nossas actividades devem ser actividades de consagrados”! Que a Religião penetre todos os sectores da nossa vida e não se confine a um comportamento estanque que se abre uns minutos por dia e uma meia hora ao domingo. Vivifiquemos, vivendo em graça, a heróica vulgaridade do nosso dia-a-dia! Cumpramos com perfeição os nossos deveres, certos de que, vivendo em Graça, todos os nossos actos, humanamente bons, têm valor sobrenatural.
São José – o Homem Justo da Escritura – é o nosso modelo! Ele santificou-se cumprindo a Vontade de Deus em todos os seus actos, vivendo e encarnando a sua fé nos seus deveres humanos. São José santificou-se satisfazendo as exigências vitais do seu corpo. E assim é que, à noite, dava ao corpo o descanso necessário. Foi Deus quem nos criou tal qual somos, com necessidades físicas. Quando cumprimos essas exigências vitais estamos a satisfazer a Vontade de Deus:
São José santificou-se cumprindo o preceito do trabalho. De tal modo se identificou com a sua profissão que era apenas conhecido por “ O carpinteiro”, com se vê no Evangelho de S.,Lucas, 13,55 em que o povo admirado com a ciência de Jesus, perguntava entre si: “Não, é este o filho do carpinteiro? (No grego aparece o artigo)
Porque via no seu trabalho a vontade de Deus, punha nele toda a perfeição.
O homem mesmo antes do pecado original não estava destinado a viver na ociosidade, mas o trabalho era para ele um exercício livre a agradável. Depois da queda, Deus impôs ao homem o trabalho como expiação do pecado e, daí em diante, o trabalho teve anexo a si um sentimento de dor. Toda a pessoa capaz deve trabalhar para conservar a vida, para evitar a ociosidade, para promover o progresso da sociedade. Esta é a vontade de Deus. “ Faz parte do plano da Providência que cada um se aperfeiçoe mediante o seu trabalho quotidiano”.
São José santificou-se pelo cumprimento exemplar do seu dever de estado. E assim, como chefe de família, trabalha para alimentar os seus; como marido, em Belém procura um quarto para a esposa; como “pai virginal”, foge com o Menino para o Egipto para que Herodes não O mate; durante três dias, procura Jesus que se havia perdido; leva Jesus à Festa da Páscoa e ensina-lhe o ofício de carpinteiro.
Deus ao instituir a família – célula base de toda a sociedade – anexou-lhe direitos e deveres. Assim, os esposos devem-se o amor e o auxílio mútuos e a mútua fidelidade conjugal. Os filhos devem amar e respeitar os pais; devem obedecer às suas ordens justas de representantes de Deus junto deles. Os pais devem amar os filhos, cuidar da sua saúde física e moral, do seu alimento, da sua condição de vida. Devem instruir, corrigir, vigiar e dar bom exemplo aos filhos. Como estes deveres andam esquecidos, meus irmãos!...
São José santificou-se cumprindo o seu dever de cidadão. E assim, vai a Belém dar o nome para o recenseamento, obedecendo à autoridade civil que, então, mandava na Judeia – o Imperador Romano.
São Paulo adverte os cristãos de Roma que “ não há poder que não venha de Deus e os que existem foram ordenados por Deus. Aquele, pois, que resiste ao poder, resiste à ordem de Deus e os que resistem atraem sobre si a condenação” e ordena-lhes que “sejam submissos não só por temor mas por motivos de consciência e que se dê a cada um o que for devido: a quem o imposto, o imposto; a quem o temor, o temor; a quem a honra a honra.”
Deus assim como criou os anjos distintos e subordinados uns aos outros, assim como na Igreja institui vários graus de ordens e diferentes ministérios, assim determinou que na sociedade civil houvesse várias ordens, diferentes em dignidade e em poder, mas todas reciprocamente necessárias e empenhadas no bem comum.
A lei natural e cristã mandam respeitar aqueles que, em qualquer grau possuem autoridade no Estado e conformar-se com as suas ordens justas. Devemos cooperar no bem comum e contribuir para o progresso da sociedade em que Deus nos colocou.
São José santificou-se cumprindo os seus deveres de membro de uma sociedade religiosa – o Judaísmo. E assim, circuncida o Menino Jesus, vai ao templo todos os anos pela Festa da Páscoa.
Também nós pertencemos a uma sociedade religiosa bem mais perfeita, de que a Sinagoga era apenas figura. Pertencemos à Santa Igreja para a qual se entra, não já por um mero rito externo como no Judaísmo, mas por uma recreação, por uma incorporação vital a Cristo. Pelo nosso Baptismo, morremos com Cristo para o pecado e com Ele ressuscitamos para uma vida nova, para a Vida da Graça, tornamo-nos membros vivos da Igreja que é Cristo actual na História. Pertencemos ao Povo Santo, à Igreja dos Ressuscitados com Cristo, pertencemos ao Corpo Místico cuja cabeça é Jesus e cuja alma é o Espírito Santo.
Quis Deus que, nesse Corpo Místico, houvesse vários graus de Ordens e Ministérios, como diz S. Paulo, contribuindo todos para o mesmo fim: instauração do Reino de Deus e consequente salvação de todos os homens. Se nós devemos obediência ao poder civil, quanto mais a não devemos àqueles que Cristo constituiu directores do Seu Corpo Místico? Quando a Igreja fala é Cristo que nos fala, quando manda é Cristo que manda.
A Religião não se confine, para nós, a meia hora por domingo, mas sim a meia hora por cada trinta minutos.
Na medida em que nós nos santificarmos assim, nessa medida estamos a instaurar o Reino de Deus, estamos a contribuir para “ transformar o mundo de selvagem em humano e de humano em cristão” e, nessa mesma medida, estamos a assegurar a nossa Eterna Felicidade.