O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, abril 27, 2022

'DEUS É EXISTIRMOS E ISSO NÃO SER TUDO'

Em vésperas de ser eleito ‘2.ª Figura do Estado’, o Público publicou um artigo sobre o Professor Augusto Santos Silva de que retive duas afirmações. A primeira dizia: “Afirma-se religioso, ainda que não se considere católico. Diz acreditar em Deus no sentido de Fernando Pessoa: “Deus é existirmos e isso não ser tudo”. A evocação deste pensamento do poeta fez-me lembrar a resposta do teólogo galego Torres Queiruga, na Fundação António José de Almeida, no final da sua palestra sobre o Problema do Mal. Alguém lhe perguntou: “Sendo o senhor o intelectual que todos reconhecemos, como é que ainda acredita em Deus?” Ao que ele respondeu: “Porque sou finito”. Somos criaturas… Por que é que existe alguma coisa para além do nada? Esta a grande interrogação que está na origem das cosmogonias mítico-religiosas: “No princípio (en arquê), Deus criou os céus e a terra” (Gn1,1)” assim começa a Bíblia. A criação ‘ex nihilo’ (do nada) é a grande revelação bíblica. O Evangelho de S. João vai mais longe: “No princípio, era o Verbo…(Jo.1,1)” Como é belo o Prólogo do seu Evangelho… Também a cosmologia filosófica se interroga sobre o “início”.. Os primeiros filósofos gregos buscavam a “arquê”, o elemento primordial do Universo: a água, afirma Tales de Mileto; o ar, contrapõe Anaxímenes. E, na atualidade, a ciência fala do “Big Bang” (a grande explosão) como início do universo. E antes? O ‘não-ser’ não explode…. Apesar de todos os progressos científicos, o grande Albert Einstein, cientista, prémio Nobel de Física e pai da Teoria da Relatividade, reconhece com toda a humildade: “Há duas formas para se viver a vida: Uma é acreditar que não existe milagre. A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre”. E como explicar o terceiro infinito, o Infinito em complexidade – a ‘Consciência’ – de que fala o paleontólogo. P. Teilhard Chardin? A antropologia ensina que a hominização (formação da espécie humana) é produto do bipedismo. O ‘hominídeo’ seria um primata que, com outros, vivia na floresta onde não faltavam árvores para se alimentar e refugiar. Na savana que, mercê de alterações climáticas, veio substituir a floresta, as pequenas árvores desapareceram, as grandes rareavam e abundava o capim. Foi então que o “antropóide” teve necessidade de se pôr em pé para chegar aos frutos e elevar a cabeça acima do capim e, assim, vigiar os seus predadores. Esta posição do “homo erectus”, libertou as mãos que passou a usar para fabricar instrumentos. E nasceu o “homo faber”. O córtex cerebral desenvolveu-se e as cordas vocais flexibilizaram-se. E assim por diante… Mas… porque é que os outros primatas, como os macacos, não evoluíram no mesmo sentido? Já dizia o filósofo Ludwig Wittgenstein: “O conhecimento é uma ilha cercada por um oceano de mistério. Prefiro o oceano à ilha”. A segunda afirmação dizia” O previsível presidente do parlamento, demarca-se do laicismo tal como concebido e praticado em França. Lá, refere, ‘as escolas não podem ter crucifixos; os padres e os bispos não podem participar em coisas públicas; a Igreja e o Estado têm de estar completamente separadas; a religião é do foro exclusivamente individual – não acredito em nada disso’, observa. E explica: “O cristianismo faz parte do espaço público e a dimensão religiosa é absolutamente essencial”. Ignorar ou mesmo contradizer esta evidência, é negar a nossa identidade como Nação e a nossa existência como Estado. (27/4/2022)

terça-feira, abril 12, 2022

COM O PAPA FRANCISCO

Bem cedo, as máfias italianas procuraram denegrir o Papa, vindo do “fim do mundo”, que tivera a ousadia de enfrentar o seu poder. Já, em outubro de 2015, quando eu subia de Salerno para Nápoles, senti-me ofendido ao ver, numa saída da autoestrada, uma enorme tarja de pano que dizia: “Francisco – Cretino”. Mas o que mais dói são as injúrias vindas de dentro. A este propósito, no passado dia 23, Leonardo Boff escreveu, sob o título Levanto a minha voz em defesa do Papa Francisco: “Desde o início de seu pontificado (13/3/2013) há nove anos, o Papa Francisco vem recebendo ataques furiosos de cristãos tradicionalistas brancos quase todos do Norte do mundo” (in religion digital). E enunciou quatro motivos para esta perseguição: .’Razões geopolíticas’ - “Há, de fato, um embate de geopolítica religiosa, entre o Centro, que perdeu hegemonia em número e na irradiação, mas que mantém os hábitos de exercício autoritário do poder, e a Periferia, numericamente a maioria dos católicos, com novas igrejas, com novos estilos de viver a fé e em diálogo permanente com o mundo, especialmente com os condenados da Terra.” E o Papa Francisco veio dessa Igreja. . ‘Disputa de poder ‘ - “O que mais choca os cristãos tradicionalistas é o seu estilo de exercer o ministério da unidade da igreja. Não se apresenta como o pontífice clássico, vestido com símbolos pagãos, tirados dos imperadores romanos. Recusou-se a viver num palácio pontifício e escolheu uma simples casa de hóspedes, Santa Marta, onde entra na fila para se servir e come junto com todos. Condena diretamente o sistema que dá centralidade ao dinheiro à custa da vida humana e às custas da natureza.”Se Jesus aparecesse ao Papa em sua caminhada pelos jardins do Vaticano, certamente lhe diria: Pedro, nestas pedras palacianas eu nunca construiria minha Igreja.” . ‘Outra visão da Igreja’ - “Talvez o que mais incomoda os cristãos ancorados no passado é a Visão da Igreja vivida pelo Papa. Não um castelo-igreja, fechado em si mesmo, em seus valores e doutrinas, mas uma Igreja "hospital de campo" sempre "no caminho para as periferias existenciais" que recebe a todos sem perguntar pelo seu credo ou pela sua situação moral. Basta que sejam seres humanos em busca de sentido da vida e que sofrem das adversidades deste mundo globalizado, injusto, cruel e impiedoso.” . ‘O cuidado do Lar Comum’ – A ‘Laudato Sì’ elabora não uma ecologia verde, mas uma ecologia integral que engloba o meio ambiente, a sociedade, a política, a cultura, o quotidiano e o mundo do espírito. A categoria de cuidado e corresponsabilidade coletiva adquirem total centralidade a ponto de dizer na ‘Fratelli Tutti’ que “estamos no mesmo barco”. Propõe um caminho de salvação: fraternidade universal e amor social.” E conclui: “Os ataques ferozes contra ele podem ser qualquer coisa, menos cristãos e evangélicos. O Papa Francisco suporta-o imbuído da humildade de São Francisco e dos valores do Jesus histórico”. Nesta sexta-feira santa, estejamos com ele e acompanhemo-lo na sua dolorosa via-sacra. Com ele, rezemos à Senhora do Calvário: “Vós, estrela-do-mar, não nos deixeis naufragar na tempestade da guerra; Vós, arca da nova aliança, inspirai projetos e caminhos de reconciliação. (…) Rainha da família humana, mostrai aos povos o caminho da fraternidade; Rainha da paz, alcançai a paz para o mundo.” (13/4/2022)

quarta-feira, abril 06, 2022

A 'PAGANINA' PORTUGUESA

Ao assistir com a neta Clara ao concerto “Viagem a Portugal”, na Casa da Música, recordei o filme “A Sonata de Sempre” transmitido pela RTP2 (27/12/2021) sobre Guilhermina Suggia, a genial violoncelista do Porto que abriu as portas profissionais às mulheres no ”violoncelo que era considerado um instrumento indecoroso para as mulheres, sendo proibida a contratação de violoncelistas mulheres pela própria orquestra da BBC.” Era uma ilustre desconhecida na sua terra, apesar de ter uma rua com o seu nome e de a Fundação Engenheiro António de Almeida ter oferecido à cidade, em 1989, uma sua estátua da autoria de Irene Vilar. Foi a Casa da Música que, em 2005, a trouxe para a ribalta ao dedicar-lhe o “auditório grande”- Sala Suggia - com 1238 lugares por onde têm passado milhares e milhares de pessoas e os músicos de maior nomeada. E quem é Guilhermina Suggia? Nasce em S. Nicolau no Porto, em 1885, numa casa, entretanto demolida, da rua Ferreira Borges. Aos 5 anos começa a aprender violoncelo com seu pai, de ascendência italiana. Em 1898, conhece, no Casino de Espinho, o já famoso violoncelista catalão Pablo Casals que, depois de a ouvir, se ofereceu para lhe dar aulas durante o verão. Em 1901, com Virgínia, pianista e sua irmã mais velha, atua no Palácio das Necessidades para a Família Real. É-lhe, então, concedida uma bolsa que a leva a Leipzig, para ter aulas com Julius Klengel que, logo em 1902, escreveu: “Sem dúvida não tem havido uma violoncelista com o mérito da artista de que me ocupo, que também não tem nada a recear no confronto com os seus colegas do sexo masculino. Mlle. Suggia, possuindo alta inteligência musical e um completo conhecimento da técnica tem o direito de ser considerada, no mundo artístico, como uma celebridade”. Regressada a Portugal em 1903, percorre as grandes salas de concertos da Europa com entusiástico aplauso do público que lhe chamava “A Paganina” por referência ao grande Paganini. Em 1906, já em Paris, toca para Casals com quem inicia um romance que se tornou famoso e levou o compositor húngaro Emanuel Moór a dedicar-lhes o “concerto para dois violoncelos”. Finda a relação em 1913, vai para Londres onde toca com as melhores orquestras e enche o Royal Albert Hall, com os maiores encómios da crítica: “A precisão dos contornos e ritmos em Bach, o charme delicado em Boccherini, o sonho em Hauré – nada mais perfeito poderia imaginar-se”. (Arts Gazette, 29 de Novembro de 1919) Em 1924, regressa ao Porto onde viverá até ao fim dos seus dias. Multiplica-se em concertos por todo o país. O jornal República (16/2/1946) escreveu: “A colossal artista emocionou e encantou a assistência, que lhe fez justamente uma verdadeira apoteose”. O que mais poderá fazer o Porto para preservar a memória desta portuense que tanto o dignificou? O comentário que o The Daily Mail, (27/10/ 1922) publicou: “No Concerto de Schumann, anima com o fogo da sua personalidade o que de outro modo ficaria morto; com a esplêndida largueza de arco e a vivacidade do seu som, Suggia dá alento e brilho à peça”, fez-me recordar a minha ida a Zwickau (Alemanha) onde visitei a casa em que aquele famoso compositor viveu com a célebre pianista Clara Schumann, sua esposa. E pensei: para quando a criação duma casa-museu, com o nome de Suggia e em sua honra, na rua da Alegria n.º 665 onde viveu e faleceu, em 1950? Fica a pergunta…(VP, 6/4/2022)

SABER ESCUTAR

Conheci-o em 2005, em Perugia, com Assis ao longe. Surpreendeu-me a sua aparência muito jovem quando me foi apresentado como reitor do Colégio Português em Roma e professor de Liturgia na Universidade Pontifícia de S. Tomás de Aquino. Aconteceu no casamento da Annalisa, filha do meu primo Manuel Oliveira, seu colaborador na administração do Colégio. Sabendo que eu era do Porto, abeirou-se de mim e conversámos longamente. É da diocese de Bragança mas fizera teologia no Porto. Mostrou-se particularmente interessado com a vivência da Igreja na cidade do Porto nas décadas de 60/70 do século passado. E entusiasmou-se com o espírito humanista de promoção humana que esteve na origem da ‘Obra Diocesana’. Duma simplicidade contagiante, impressionou-me a sua capacidade de saber escutar. O que, nos dias de hoje não é frequente, como disse o papa Francisco no “Dia das Comunicações Sociais: “Estamos a perder a capacidade de ouvir a pessoa que temos à nossa frente (…) “Escutar com o coração - A partir das páginas bíblicas aprendemos que a escuta não significa apenas uma perceção acústica, mas está essencialmente ligada à relação dialogal entre Deus e a humanidade.” E não é por acaso que dos três pedidos que o Secretário-geral do Sínodo dos Bispos e o Prefeito da Congregação para o Clero endereçaram, no passado dia 19, aos padres de todo o mundo, os dois primeiros falem de ’escutar’: “Fazer todo o possível para que o caminho se baseie na escuta e na vivência da Palavra de Deus; trabalhar para que o caminho seja caracterizado pela mútua escuta e reciproca aceitação”. Encontrei a mesma cordialidade da “recíproca aceitação” no, então, já bispo de Bragança quando, no Terreiro da Sé do Porto, lhe perguntei pelo acidente de carro que sofrera. Respondeu-me com aquele sorriso gaiato que lhe conhecemos: - “Ofereceram-me um carro e eu, que nunca tinha conduzido um automático, soube pô-lo a andar mas não sabia como o parar…” Estas vivências fazem-me afirmar que as primeiras palavras que D. José Cordeiro dirigiu aos bracarenses estão carregadas de autenticidade e não são “como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine” (1Cor,13). A comunicação social deu-lhes relevo. Logo na saudação, manifestou “a vontade de construir uma ‘Igreja em saída’ missionária e ‘uma Igreja sinodal samaritana de portas abertas para todos’. E teve palavras para os “doentes, reclusos, pobres, pessoas com deficiência, desempregados, migrantes, minorias étnicas e todos os mais velhos e mais sós que sofrem e vivem nas periferias existenciais e numa crescente globalização da indiferença”.(7Margens) Na sua primeira homilia, na velha catedral, apelou à “proximidade fraterna” com uma afirmação cheia de coragem: “Só quem assume ser carente e pobre pode ser amigo dos pobres, reclusos, doentes, peregrinos, migrantes, refugiados, vulneráveis, indigentes e marginalizados…”(Ecclesiae) Sirvam-lhe de exemplo os seus predecessores D. João Peculiar cuja tenacidade no diálogo muito contribuiu para a afirmação de Portugal como reino independente. E o santo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, pobre entre os pobres e intrépido na denúncia dos poderosos. Como judiciosamente sintetizou o meu compadre bracarense, José Machado: - “Ele é o Pastor que vem como Cordeiro”… Significativo… (30/3/2022)