O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, outubro 29, 2021

PASSEANDO NA PRAIA...

“Um dia, Santo Agostinho andava numa praia a meditar sobre o mistério da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só Deus em três Pessoas iguais e distintas. Enquanto caminhava, viu um menino que levava uma pequena concha de água. A criança ia até ao mar, trazia a água e deitava-a dentro duma pequena cova que tinha aberto na areia. Após ver o menino fazer repetidas vezes a mesma coisa, o Santo resolveu interrogá-lo sobre o que queria fazer. O menino, olhando-o respondeu: - ‘Ando a transportar a água do mar para esta cova’. Agostinho sorriu e respondeu-lhe: - ‘Olha lá, então não vês que é impossível colocar toda a água do mar nessa cova? O mar é imenso e a tua cova tão pequenina!’No mesmo instante, a criança transformou-se em Jesus-Menino e respondeu: -‘Pois eu digo-te, Agostinho: é mais fácil para mim pôr toda a água do mar nesta cova do que tu esgotares, só com os recursos da tua razão, as profundezas do mistério da Trindade’. E desapareceu.” Há dias, quando passeava na praia da Aguçadoura na Póvoa de Varzim, lembrei-me desta estória que ouvi contar em menino. E porquê? Não, não ia a pensar no mistério da Trindade nem vi uma criança com uma concha na mão. Então? As marés vivas do final de agosto pontilharam a praia com seixos rolados, de todas as cores e tamanhos, que, ao serem beijados pelas ondas, reluziam ao sol poente. E pareceu-me ouvi-los dizer-me: - “Amigo, andas preocupado com tantas coisas que passam e também tu, na tua fragilidade, vais passando. Quantos dos teus amigos já se foram…E olha para nós. Andávamos aqui a ser batidos pelas águas, havia milhões e milhões de anos antes de tu nasceres. Estamos aqui enquanto tu vives e continuaremos por aqui quando de ti já nem sequer memória houver”. Ajoelhei-me, peguei num dos mais pequeninos, agradeci-lhe a lição e recordei o que aprendi em Geografia. Aqueles seixos andam a ser afeiçoados pelo mar há mais de 250 milhões de anos quando a orogenia hercínica, vinda da Bretanha pelo interior do oceano, entrou no nosso território atual entre Esposende e a Póvoa. O seu primeiro afloramento originou os chamados “Cavalos de Fão”. E prosseguiu, dobrando os quartzitos, no sentido NW/SE pela serra de Valongo, do Buçaco, das Atalhadas, Penedos de Góis, serra do Muradal, Portas de Ródano e serra de S. Mamede. É fácil detetar essas serras. Basta olhar as “cristas quartzíticas” (dentes de serra) dos seus cumes e observar os vales que seguem a orientação geral da orogenia. A aproximar-se o “Dia de Finados”, lembrei-me deste episódio de verão e associei-o ao poema de Florbela Espanca: “Os dias são outonos: choram... choram.../ Há crisântemos roxos que descoram,/ Há murmúrios dolentes de segredos./ (…) Fumo leve que foge entre os meus dedos!” E rezei o salmo 144: “Bendito seja o SENHOR, meu rochedo./Ele é o meu aliado e minha fortaleza,/o meu baluarte e meu refúgio./Que é o homem, Senhor, para te preocupares com ele?/O que é um ser humano, para nele pensares?/O homem é semelhante a um sopro;/Os meus dias são como a sombra que passa.” Sei que o Homem é bem mais que “a folha que se desprende da nespereira e se faz estrume” de que falava José Cardoso Pires. Para além da revelação bíblica (Gn 1, 26), é um postulado lógico (diferentes na vida → diferentes na morte) que só o materialismo contemporâneo veio pôr em causa. E uma exigência psicológica dum ser que se sabe finito mas traz em si o apelo à Transcendência. Nascemos para ser eternos. Esta é a Fé que nos anima quando rezamos e enfeitamos as campas dos que amamos. (27/10/2021)

'UM CORAÇÃO ABERTO AO MUNDO' INTEIRO'

(Continuação do número anterior) No capítulo IV da Fratelli Tutti, detenho-me no subcapítulo “Local e Universal”. Inicia-se no nº 142. “Ocorre lembrar que, entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo, convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés na terra. (…) Portanto, a fraternidade universal e a amizade social dentro de cada sociedade são dois polos inseparáveis e ambos essenciais.” Caminham de mãos dadas. Depois, no nº 143, o Santo Padre demora-se no «sabor local»: “A solução não é uma abertura que renuncie ao próprio tesouro. Tal como não há diálogo com o outro sem identidade pessoal, assim também não há abertura entre povos senão a partir do amor à terra, ao povo, aos próprios traços culturais. Só posso acolher quem é diferente e perceber a sua contribuição original, se estiver firmemente ancorado ao meu povo com a sua cultura. (…) É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus.” Cabe à família e à escola transmitir os valores que nos caraterizam como povo. Quando a cultura não está bem radicada na história local, perdem-se as âncoras que nos seguram no mar agitado do multiculturalismo. Desvirtua-se a nossa identidade e sem esta nunca haverá verdadeiro interculturalismo. Caímos num sincretismo ético-religioso, num hibridismo cultural e, por vezes, num exibicionismo caricato e mesmo numa certa esquizofrenia coletiva. Porém, no nº 146, ao enfatizar a importância do «horizonte universal», avisa: “Há espíritos bairristas que não expressam um amor sadio pelo próprio povo e a sua cultura. Escondem um espírito fechado que, devido a uma certa insegurança e medo do outro, prefere muralhas defensivas para sua salvaguarda. Mas não é possível ser saudavelmente local sem se deixar interpelar pelo que acontece noutras partes, sem se deixar enriquecer por outras culturas, nem se solidarizar com os dramas dos outros povos. (…) O mundo cresce e enche-se de nova beleza graças a sucessivas sínteses que se produzem entre culturas abertas, fora de qualquer imposição cultural”. Simbólica, é a notícia (7Margens, 3/1/2021) “A tradução em língua russa da Fratelli Tutti, acaba de ser publicada. A surpresa é ela ter sido feita e editada por instituições muçulmanas. No prefácio, Damir Mukhetdinov, do Fórum Muçulmano, escreve: “Como pode a tradução de um documento da Igreja Católica Romana ser importante para um muçulmano? A resposta é simples: além das próprias reflexões do Papa Francisco (…) a libertação do preconceito sobre os outros promove maior liberdade de pensamento, o que inevitavelmente leva à libertação do preconceito sobre si mesmo. Esse entendimento mútuo (não só do outro, mas sobretudo de si mesmo) ocorre durante o encontro. E o encontro é a principal mensagem da Fratelli Tutti”. Que bela síntese feita por um muçulmano! Dá que pensar… Segundo o cardeal Tolentino, “a encíclica Fratelli Tutti é uma espécie de corpo de fogo atirado mais longe, um bólide espiritual lançado ao presente e ao futuro” que representa “um novo sonho de fraternidade espiritual”. Seja esse o nosso sonho.(20/10/2021)

quarta-feira, outubro 13, 2021

'PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO'

No capítulo III da Fratelli Tutti, o Papa Francisco começa por dizer, no número 87, que “o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar plenitude a não ser no sincero dom de si mesmo aos outros”. É com os outros que nascemos, vivemos e nos fazemos. A vida é a arte do encontro. No nº 92 – O valor único do amor- fala do essencial da” estatura espiritual de uma vida humana” que é “medida pelo amor”. E alerta: “Todavia há crentes que pensam que a sua grandeza está na imposição das suas ideologias aos outros, ou na defesa violenta da verdade ou em grandes demonstrações de força”. Voltando a um tema que lhe é caro, afirma que há «periferias existenciais» bem próximas de nós, “no centro de uma cidade ou na própria família” (97). E, no número 98, concretiza: “Quero lembrar estes ‘exilados ocultos’, que são tratados como corpos estranhos à sociedade. Muitas pessoas com deficiência sentem que vivem sem pertença nem participação. Penso igualmente nos idosos que, inclusive por causa da sua deficiência, são, por vezes, sentidos como um peso.” Depois, no número 101, denuncia o “ mundo de sócios” em que vivemos e urge superar. Nos esquemas vigentes é ”possível apenas ser próximo de quem me permite consolidar os benefícios pessoais. Assim o termo ‘próximo’ perde todo o significado, fazendo sentido apenas a palavra ‘sócio’, aquele que é associado para determinados interesses”. Somos uma sociedade organizada em condomínios fechados onde apenas entra quem interessa. Abordando a trilogia “liberdade, igualdade e fraternidade” (nº 103), diz que “a fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática de uma certa equidade. Embora sejam condições que a tornam possível, não bastam para que a fraternidade surja como resultado necessário”. Conclui: “O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos”(nº 105). A fraternidade não brota da lei mas do coração. E deixa um apelo à família “o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro”. Afirma que “os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade”. Porque esta encíclica visa abrir para “um novo sonho de fraternidade que não se limite a palavras”, vem-me à mente a história das ‘duas galinhas’. Diz assim: Dois amigos falavam sobre a injustiça social. Então, um pergunta ao outro: - “Se tivesses dois apartamentos de luxo”, doarias um para os pobres?” – “Sim”, respondeu o amigo. –“E se tivesses um milhão na conta bancária, darias 500 mil aos pobres?” – “É claro…”, respondeu. “- E se tivesses duas galinhas, darias uma a um pobre?” – “Não”, respondeu sem hesitações. - “Mas - pergunta o outro surpreendido - porque é que tu doarias um apartamento de luxo, se tivesse dois; 500 mil, se tivesse um milhão, mas não doarias uma galinha, se tivesses duas?” - “Porque essas, eu tenho…” Fácil, fácil é dizer o que os outros deveriam fazer ou prometer o que se não tem. Difícil, difícil, é fazer ou dar o que se tem… (13/10/2021)

quarta-feira, outubro 06, 2021

'UM ESTRANHO NO CAMINHO'

No Capítulo II da ‘Fratelli Tutti’, o Papa Francisco, “com a intenção de procurar uma luz no meio do que estamos a viver”, indica um caminho luminoso mas bem difícil. “Conta Jesus que havia um homem ferido, estendido por terra no caminho, que fora assaltado. Passaram vários ao seu lado, mas… foram-se, não pararam. Eram pessoas com funções importantes na sociedade, que não tinham no coração o amor pelo bem comum. Não foram capazes de perder uns minutos para cuidar do ferido ou, pelo menos, procurar ajuda. Um parou, ofereceu-lhe proximidade, curou-o com as próprias mãos, pôs também dinheiro do seu bolso e ocupou-se dele. Conseguiu deixar tudo de lado à vista do ferido e, sem o conhecer, considerou-o digno de lhe dedicar o seu tempo” (cf. Lc 10,25-37). E lança-nos «uma pergunta sem rodeios, direta e determinante:». - “ Com quem te identificas? A qual deles te assemelhas?” Apesar de vivermos num tempo que muito progrediu nos conhecimentos e nas técnicas, ”somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, a passar à margem, a ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima”. E concretiza: “assaltam uma pessoa na rua, e muitos fogem como se não tivessem visto nada. Sucede, muitas vezes, que pessoas atropelam, alguém com o seu carro e fogem. Pensam só em evitar problemas…” Ao caracterizar as personagens da parábola do «bom samaritano», acentua que “nas pessoas que passam ao largo, há um detalhe que não podemos ignorar, eram pessoas religiosas. Mais ainda, dedicavam-se a prestar culto a Deus. Isto é uma forte chamada de atenção. Indica que o facto de crer em Deus e o adorar não é garantia de viver como agrada a Deus”. E conclui: “O paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes”. Alerta que muitas vezes podemos ser cúmplices com os salteadores como “aqueles que ‘passam pelo caminho’ olhando para o outro lado. O círculo encerra-se entre aqueles que usam e enganam a sociedade para chupá-la, e aqueles que julgam manter a pureza na sua função crítica, mas ao mesmo tempo vivem desse sistema e seus recursos.” Àqueles que se escudam no «tudo está mal, ninguém o pode consertar», responde: “É possível começar por baixo e, caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último ângulo da pátria e do mundo”. No subcapítulo “O próximo sem fronteiras”, conclui “Este encontro misericordioso entre um samaritano e um judeu é uma forte provocação, que desmente toda a manipulação ideológica, desafiando-nos a ampliar o nosso círculo, a dar à nossa capacidade de amar uma dimensão universal capaz de ultrapassar todos os preconceitos, todas as barreiras históricas ou culturais, todos os interesses mesquinhos”. Termina com uma recomendação: “É importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos”. (6/10/2021)