PASSEANDO NA PRAIA...
“Um dia, Santo Agostinho andava numa praia a meditar sobre o mistério da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só Deus em três Pessoas iguais e distintas. Enquanto caminhava, viu um menino que levava uma pequena concha de água. A criança ia até ao mar, trazia a água e deitava-a dentro duma pequena cova que tinha aberto na areia.
Após ver o menino fazer repetidas vezes a mesma coisa, o Santo resolveu interrogá-lo sobre o que queria fazer. O menino, olhando-o respondeu: - ‘Ando a transportar a água do mar para esta cova’. Agostinho sorriu e respondeu-lhe: - ‘Olha lá, então não vês que é impossível colocar toda a água do mar nessa cova? O mar é imenso e a tua cova tão pequenina!’No mesmo instante, a criança transformou-se em Jesus-Menino e respondeu: -‘Pois eu digo-te, Agostinho: é mais fácil para mim pôr toda a água do mar nesta cova do que tu esgotares, só com os recursos da tua razão, as profundezas do mistério da Trindade’. E desapareceu.”
Há dias, quando passeava na praia da Aguçadoura na Póvoa de Varzim, lembrei-me desta estória que ouvi contar em menino. E porquê? Não, não ia a pensar no mistério da Trindade nem vi uma criança com uma concha na mão. Então?
As marés vivas do final de agosto pontilharam a praia com seixos rolados, de todas as cores e tamanhos, que, ao serem beijados pelas ondas, reluziam ao sol poente. E pareceu-me ouvi-los dizer-me:
- “Amigo, andas preocupado com tantas coisas que passam e também tu, na tua fragilidade, vais passando. Quantos dos teus amigos já se foram…E olha para nós. Andávamos aqui a ser batidos pelas águas, havia milhões e milhões de anos antes de tu nasceres. Estamos aqui enquanto tu vives e continuaremos por aqui quando de ti já nem sequer memória houver”.
Ajoelhei-me, peguei num dos mais pequeninos, agradeci-lhe a lição e recordei o que aprendi em Geografia.
Aqueles seixos andam a ser afeiçoados pelo mar há mais de 250 milhões de anos quando a orogenia hercínica, vinda da Bretanha pelo interior do oceano, entrou no nosso território atual entre Esposende e a Póvoa. O seu primeiro afloramento originou os chamados “Cavalos de Fão”. E prosseguiu, dobrando os quartzitos, no sentido NW/SE pela serra de Valongo, do Buçaco, das Atalhadas, Penedos de Góis, serra do Muradal, Portas de Ródano e serra de S. Mamede. É fácil detetar essas serras. Basta olhar as “cristas quartzíticas” (dentes de serra) dos seus cumes e observar os vales que seguem a orientação geral da orogenia.
A aproximar-se o “Dia de Finados”, lembrei-me deste episódio de verão e associei-o ao poema de Florbela Espanca: “Os dias são outonos: choram... choram.../ Há crisântemos roxos que descoram,/ Há murmúrios dolentes de segredos./ (…) Fumo leve que foge entre os meus dedos!”
E rezei o salmo 144: “Bendito seja o SENHOR, meu rochedo./Ele é o meu aliado e minha fortaleza,/o meu baluarte e meu refúgio./Que é o homem, Senhor, para te preocupares com ele?/O que é um ser humano, para nele pensares?/O homem é semelhante a um sopro;/Os meus dias são como a sombra que passa.”
Sei que o Homem é bem mais que “a folha que se desprende da nespereira e se faz estrume” de que falava José Cardoso Pires. Para além da revelação bíblica (Gn 1, 26), é um postulado lógico (diferentes na vida → diferentes na morte) que só o materialismo contemporâneo veio pôr em causa. E uma exigência psicológica dum ser que se sabe finito mas traz em si o apelo à Transcendência. Nascemos para ser eternos. Esta é a Fé que nos anima quando rezamos e enfeitamos as campas dos que amamos.
(27/10/2021)
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