O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, setembro 29, 2021

' AS SOMBRAS DE UM MUNDO FECHADO'

Quando passa um ano sobre a publicação da “Fratelli Tutti “ (3/10/2020), veio-me à mente a expressão “Um livro para ser comido” que D. Manuel Martins disse a propósito de “Manuel Álvaro de Madureira – in memoriam”. Com efeito, esta encíclica sobre a “Fraternidade e a Amizade Social” não é para ser lida de relance. É para ser lida e relida, “mastigada” e saboreada, capítulo a capítulo. Assim preenchi os longos silêncios da pandemia e, como incentivo à sua leitura integral, decidi partilhar algumas migalhas dos quatro primeiros capítulos. Cada texto assume o título do respetivo capítulo. No Capítulo I, o Santo Padre propõe-se “manter-nos atentos a algumas tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal”. Demorei-me a reler o subcapítulo «A ilusão da comunicação» que nos alerta para o cuidado que devemos assumir face às contradições das redes sociais: “Paradoxalmente, se, por um lado, crescem as atitudes fechadas e intolerantes que, à vista dos outros, nos fecham em nós próprios, por outro reduzem-se ou desaparecem as distâncias, a ponto de deixar de existir o direito à intimidade. Tudo se torna uma espécie de espetáculo que pode ser espiado, observado, e a vida acaba exposta a um controlo constante. Na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente. Dilui-se o respeito pelo outro.” Mais… “Ao mesmo tempo que defendem o próprio isolamento consumista e acomodado, as pessoas escolhem vincular-se de maneira constante e obsessiva. Isto favorece o pululamento de formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro. (…) Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune.” O subcapítulo «Informação sem sabedoria» deve fazer-nos pensar: “A verdadeira sabedoria pressupõe o encontro com a realidade. Hoje, porém, tudo se pode produzir, dissimular, modificar. Isto faz com que o encontro direto com as limitações da realidade se torne insuportável. Em consequência, implementa-se um mecanismo de «seleção», criando o hábito de separar imediatamente o que gosto daquilo que não gosto (…) Assim a liberdade transforma-se numa ilusão que nos vendem, confundindo-se com a liberdade de navegar frente a um visor.” Se isto é um perigo para todos, é-o de modo muito especial para as crianças cujo crescimento se faz pela progressiva substituição do «princípio do prazer» pelo «princípio da realidade». Sem isso, a pessoa não amadurece e a sociedade infantiliza-se. Mas, nada de desânimos, porque, como nos diz o Santo Padre no final deste capítulo: “Apesar destas sombras densas que não se devem ignorar” há muitos “percursos de esperança” porque “Deus continua a espalhar sementes de bem na Humanidade”. Ou não fora Francisco o Papa da Esperança…(continua) (29/9/2021)