O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, março 27, 2019

HOMENAGEM ÀS GENTES DO MAR



Lembro o meu assombro quando, pela primeira vez, vi barcos de pesca a saltar na crista das vagas. No rio da minha aldeia não havia barcos nem ondas… Ainda me emociono ao cantar “As ondas do mar são brancas, no meio são amarelas. Coitadinho de quem nasce para morrer no meio delas”. Esta simpatia levou-me a visitar o Museu Marítimo de Ílhavo e a ler «Campanha do Argus – Uma Viagem na Pesca do Bacalhau» que afirma: “Não há vida pior que aquilo no mar! A pesca é toda difícil, mas a do bacalhau é a mais dura, é a pior maneira de ganhar a vida”.

Hoje, quero homenagear as gentes da Afurada que passei a conhecer quando, em jovem, aí representei o drama “Deus escreve direito…”, escrito por um dos seus filhos, Marques da Cruz. O mesmo que, na esteira de “Daqui Houve Nome Afurada” (2017), acaba de publicar “Afurada – Mulheres Sofridas”. No primeiro, apresentou 32 crónicas - “Testemunhos de Adolescentes dos anos 40 e 50”. Neste, transcreve 20 entrevistas a companheiras de infância, respeitando o seu linguajar. É um retrato a negro, iluminado pela boa educação, como se vislumbra logo na primeira entrevistada: “ Na sala, tínhamos duas camas. Alguns dormiam no chão. Passava-se muita miséria. Dantes era uma vida pobrezinha mas toda a gente tinha respeito aos outros.” (Alcina Areias)

Para minha surpresa, são muitas as alusões à «pior maneira de ganhar a vida»: “Quando meu pai ia para o bacalhau os mais novos dormiam com a minha mãe” (Antonieta Rendilheira); “O meu pai chegou a andar ao bacalhau”. (Cândida Lapa); “Casei então com o António Augusto. Era pescador bacalhoeiro. Na segunda viagem para mim morreu. Tinha 22 meses de casada. ” (Dorinda Granja); O meu primeiro home era pescador, foi duas vezes ao bacalhau” (Ermelinda Crespa); “Meu marido estava pró bacalhau.” (Generosa Carvalho); O meu home também andou ao bacalhau. (Guida Arriaga); “O meu pai andava à pesca do bacalhau e deixou a minha mãe com três filhos.” (Lola Papeira); ” O meu marido foi pró mar, andava na pesca do bacalhau, andou lá onze anos.” (Maria Alcinha Ganicha); “E o meu pai era pescador bacalhoeiro” (São Manca).

Muitos jovens queriam “ir para bacalhau” em vez da tropa: “Meu marido fez sete anos de viagens para se livrar da tropa.” (Melindra Dará); “Meu marido, para se livrar da tropa, foi para o bacalhau. Andou seis viagens ou sete.” (Rosa Lacota); “Havia muitos rapazes que não queriam ir para a tropa naquele tempo, queriam ir ao bacalhau. ” (Isaldina Rabela).

Gente solidária: “Na Afurada quando morria um home no bacalhau era um luto que nem imagina.” (Linda da Estrela do Mar)

 E uma certeza - «Vox Populi…» “Sabes que a minha sogra é prima daquele bispo que vai ser canonizado? Primas carnais ela e D. António Barroso.” (Maria Alice).

São memórias vivas que Marques da Cruz dignifica e perpetua. Bem haja!

 (7/3/2019)

 

 

quinta-feira, março 21, 2019

O SORRISO DE UM POVO

 
Há pessoas e terras que marcaram a história...

Gdansk, fundada no século X, floresceu na Idade Média com a Liga Hanseática. Ao longo dos tempos, foi sempre motivo de disputa entre a Polónia e a Alemanha. Declarada “Cidade Livre” no fim da I Guerra Mundial, foi, em 1 de setembro de 1939, invadida pela Alemanha. Aqui começou a II Guerra Mundial. Cerca de 6 milhões de cidadãos polacos morreram entre 1939 e 1945, como resultado dessa ocupação.

Livre do horror nazi, foi integrada na Polónia e logo caiu sob o jugo soviético, como disse Winston Churchill, em 1946, “De Estetino, no Báltico, até Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente.”

Sucedeu-se um tempo de grande penúria. Os polacos lembram-no numa anedota com ressaibos de humor negro: “Um dia encontararam-se, numa reunião, um capitalista, um comunista e um socialista. O socialista chegou atrasado e desculpou-se: - Estive numa fila durante mais de duas horas para comprar carne. O capitalista perguntou: - O que é uma fila?. E o comunista: - O que é  carne?.

Desde muito cedo, os polacos foram silenciando a sua revolta contra um Estado ateu e totalitário que os oprimia. Em 1970, rebentou  a primeira grande contestação nos estaleiros de Gdansk onde trabalhavam mais de 3 000 operários. A repressão matou 45 pessoas que, hoje, são lembradas num impressionante monumento na Praça da Solidariedade.

Em 1980, deu-se novo levantamento com grande participação, liderado por Lech Walesa. Mas,desta vez, não houve qualquer repressão porque entretanto, explicou a guia local, a Polónia ganhara grande notoriedade mundial com eleição do Papa João Paulo II, em 16 de outubro de 1978. Logo em junho de 1979, esteve nos estaleiros de Gdansk, aquando da sua visita à Polónia com milhões de pessoas a aclamá-lo.. “Esta primeira visita à Polônia serviu para elevar o espírito da Nação e catalisou a formação do Movimento Solidariedade em 1980 que trouxe de volta a liberdade e os direitos humanos para a sua terra natal.”

A legalização do “Solidariedade” com Lech Walesa - Prémio Nobel da Paz em 1983 - e a convocação de eleições livres foram a brecha que fez derrubar os muros que dividiam a Europa. Se não vejamos… As primeiras eleições livres na Polónia foram em 4 de junho de 1989; logo em 9 de novembro seguinte, começou a ser derrubado o “Muro de Berlim” e, em 26 de dezembro de 1991, foi dissolvida a União Soviética. Num ápice, como por efeito dominó, desmoronou-se o que parecia indestrutível. Tempos heroicos!

Não foi por acaso que, no espaço de oito anos, o Papa esteve em Gdansk três vezes: 1979, 1983 e 1987. Esta última data é lembrada na Catedral num busto com o seu sorriso profundo e acolhedor. Os polacos também sorriem quando falam do seu João Paulo. E este sorriso ilumina o rosto de um povo com muitas cicatrizes…

(20/3/2019)

quinta-feira, março 14, 2019

QUE BELA IMAGEM !



Que a “arte é o limiar da Transcendência”. Que “a música é a experiência viva do meta-físico”… Já o tinha lido e experienciado. E voltei a senti-lo.

Aconteceu na Casa da Música, no passado dia dezassete, no concerto de Kholodenko, “um dos mais dotados da nova geração de pianistas” Depois nos deliciar com Beethoven e Rachmaninoff, terminou com “Prelúdios”, de Scriabin, compositor russo (Moscovo, 1872/1915) a respeito de quem o libreto dizia: “ Costumava estabelecer, na exposição, a contraposição dos elementos masculino e feminino – entendidos como forças espirituais – que são transformados e interagem no desenvolvimento até alcançar, na recapitulação, a consumação. Fez das suas obras explícitas profissões de fé mística e emanações diretas do seu «eu interior» fundido, sem limitações, com o universo.”

Que bela imagem para a vida matrimonial. Homem e mulher são bem mais que dois corpos que se encontram. São duas “forças espirituais que interagem” ao longo dos anos na busca de um “desenvolvimento até alcançar, na recapitulação, a consumação”. Só, então, realizam o “serão os dois uma só carne” (Gn 2,24). É curioso que este ditame bíblico sobre o Homem, que Deus criou à Sua imagem - “e criou-os homem e mulher” (Gn 1,27)- , só aparece na “Segunda Narrativa da Criação” que, na tradução que uso, é introduzida pela palavra “Recapitulação”. Que coincidência! Na verdade, e contrariamente ao que pressupõe a linguagem jurídica, o casamento, penso, vai-se consumando no decurso da vida na medida em que essas duas forças espirituais vão interagindo em ordem ao mútuo aperfeiçoamento. Para isso, há que criar ou aproveitar momentos da vida propícios à recapitulação.
Não é fácil realizar a sentença bíblica porque o “uma-só-carne” não anula “os dois” que permanecem na sua individualidade. Um não se submete ao outro, nem os dois se aniquilam para criar um novo ser. Cada um respeita-se e respeita o outro como ele é. E realizam-se na medida em que se ajudam no aperfeiçoamento de ambos e de cada um. A fecundidade do casal começa na sua própria intimidade, para depois encarnar nos filhos e extravasar para outras atividades, “fundindo-se, sem limitações, com o universo”.
Amar é “fazer das suas obras explícitas profissões de fé mística e emanações diretas do seu eu interior”, numa comunhão de espírito que está para além das contraposições entre duas pessoas com genéticas e histórias bem diferenciadas. E desta recapitulação nasce a sinfonia espiritual que eleva os esposos acima das vicissitudes diárias e os faz sinal do Amor de Cristo à Igreja. Só então, são sacramento.

Importa que cada um, à sua maneira, se reveja no apelo de D. Manuel Martins: - “A minha vida tem que ser sempre uma harmonia. Que eu nunca seja causa de qualquer desafinação.” (Partilhar é bom)

(13/3/2019)

quarta-feira, março 06, 2019

PARTILHAR É BOM!


Este é o título do livro escrito por D. Manuel Martins que, no passado dia 23, foi apresentado na igreja dos Clérigos. Foi uma homenagem carregada de emoção, feita saudade. Um livro surpreendente que nos faz mergulhar na intimidade de um bispo com Deus: “Há muitos anos que, logo pela primeira manhã no meu encontro com Deus através da liturgia, procuro descobrir o grande apelo para esse dia, fazendo dele a luz do meu caminhar, do meu fazer”. 

E esta espiritualidade faz-se carne e fundamenta todo o seu agir, como bem diz D. Carlos Azevedo: “A face profética de D. Manuel atravessava a sua conversão e adesão pessoal a Cristo, antes de propor a crentes e não crentes uma revolucionária ternura”. E acrescenta: “Estas provocações matinais orientavam a mansidão do seu coração e norteavam a defesa determinada da dignidade humana e a lucidez perante esquemas que oprimem e não libertam”.

 

Neste início de Quaresma, quero fazer-me caixa-de-ressonância da intenção de D. Manuel ao permitir a sua publicação: “Agora, passou-me pela cabeça que podia ajudar alguém, pelo menos a fazer o mesmo, publicando tais pensamentos”…

Eis algumas das suas “interrogações evangélicas”, como se diz no Prefácio.

 
- “Procura viver em paz com todos. És um construtor. Os teus pés foram pensados para anunciar a paz.”

- “Em tudo e sempre espírito de serviço – humilde, interessado, em comunhão com o outro. O outro é Ele…”

- “À medida que me deixar encher de mim, esvazio-me de Cristo.”

- “A primeira e insubstituível evangelização faz-se pelas obras. Terá sido sempre assim comigo? Será que em todo o lado «cheiro» a Jesus?”

- “Deus é Bondade. Com a Sua Ressurreição, o Senhor encheu a Terra da Sua Bondade. Também a mim. Tenho que o dizer a toda a gente.”

-“Como me atrevo a julgar tudo e todos – e condenar, tantas vezes! – se Ele não veio para julgar nem condenar, mas para salvar?”

-“O mundo está cheio de chagas. Não posso esquecer que, através dessas chagas, encontro o Senhor.”

-“Que pena ver o que se passa em tantas das nossas Comunidades! Somos sempre agentes da paz. Sempre.”

- “Há tanto jovem bom e com ideal! Há tantos casais «de nazaré». Há tanto Santo por esses caminhos. O Senhor concedeu-me a graça de conhecer em toda a minha vida, ontem e hoje, tantas e tantos. Compete-nos anunciar e cantar madrugada. Sempre”. 


Nesta Quaresma e “Sempre”, procuremos “fazer o mesmo” que D. Manuel. Vivamos “em paz com todos” e, em vez de lamentos de sol-posto, aprendamos a “ anunciar e cantar madrugada”.

(6/3/2019)