O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, fevereiro 24, 2021

SENTIR A FINITUDE

Foi com alívio e íntima felicidade que, no passado dia 11, vi D. António Marto a presidir à Eucaristia em Fátima. Um amigo comum ia-me falando da sua doença mas a informação completa chegou-me, nesse mesmo dia, através da Agência Ecclesia, onde D. António partilhou “um pouco a experiência” que viveu. No início… “Foi uma febre que surgiu num domingo à noite. Pensei que fosse uma gripe, tomei um «Brufen», mas sem grandes efeitos. De seguida, pensei que fosse a Covid-19 e imediatamente agendei um teste que deu negativo. A temperatura continuava a subir, telefonei à médica e ela disse que a melhor coisa seria ir para as urgências do hospital.” No hospital… “O primeiro diagnóstico foi surpreendente. Indicava uma infeção sistémica, de todo o organismo, o que poderia levar a uma septicemia e faria ver a morte muito próxima.” “Mandaram-me para os cuidados intensivos. É uma experiência um pouco dura para quem lá passa: estamos ligados às máquinas, sem noção do tempo, sem poder contactar com alguém conhecido. Depois invade-nos uma incerteza, uma ansiedade, porque não se sabe o que é.”. “Depois passei para uma enfermaria.” “A primeira semana foi só para fazer exames análises, radiografias, ecografias para detetar qual o foco de onde vinha a febre.” Finalmente o diagnóstico… Senti uma dor aguda no abdómen, disse à médica e logo mandou fazer a ecografia e, a partir daí, chegou-se a identificar o foco que era uma infeção do fígado. Foi uma surpresa completa e sem saber os tratamentos a que seria submetido, sem saber quanto tempo é que ficaria no hospital.” “Entretanto, durante esse tempo no hospital, desde que saí dos cuidados intensivos, chegavam as chamadas ao telemóvel, as mensagens, era de todo lado e eu não conseguia responder, nem tinha disposição para isso! A gente fica sem disposição. Recordo-me de uma noite em que senti quase o desespero, o mal-estar, a ansiedade, a dor – foi nessa noite que senti a dor aguda. A gente sente impotência, a incapacidade, a fragilidade que uma pessoa conhece teoricamente e depois experimenta de uma maneira única… E eu não tenho palavras até para traduzir tudo que o que senti, mas foi a incapacidade e impotência.” Depois de duas semanas… “Lá chegou uma equipa médica e me explicou tudo o que se passava a respeito da doença e me disse que ia sair, mas que ficaria no internamento domiciliário. Foram sete semanas – duas no hospital e cinco em casa.” Que lições? - “É verdade. Uma coisa é falarmos aos outros e até estar com quem sofre; outra coisa é quando nos toca a nós, na carne, na própria carne, e sentimos esta fragilidade, o confronto com a finitude..” - “Uma pessoa de fé vive o sofrimento nessa perspetiva também.” “A fé não nos tira, porventura, a dor ou o sofrimento mas dá-nos a força interior para o viver em união com o Senhor.” - “Havia algo que me confortava muito: sentia-me rodeado, com as mensagens que recebi e telefonemas que atendi.” “Uma pessoa sente conforto, aquele conforto e proximidade e o afeto das pessoas.” Com os subtítulos e a seleção que fiz, espero ter respeitado o espírito duma entrevista que merece ser lida na sua versão integral. “Felizmente já me encontro completamente restabelecido”, escreveu D. António no passado dia catorze. Que bom! (24/2/2021)

quarta-feira, fevereiro 17, 2021

A VERDADE É COMO O AZEITE...

No dia em que a VP anunciava a inauguração, na cidade do Porto, do “primeiro Museu do Holocausto da Península Ibérica”, o meu amigo Mané escrevia no facebook: “27 de janeiro- Dia Internacional em memória das vítimas do Holocausto. ‘Fotografias, façam filmes, reúnam testemunhos. Em algum ponto da História, um idiota vai erguer-se e dizer que isto nunca aconteceu’ (General Eisenhower). Para jamais esquecer.” Este apelo, fez-me recordar o aforisma afixado à entrada do campo de concentração de Auschwitz, na Polónia: “Aqueles que não podem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo”. Estima-se que, nessa ‘fábrica da morte’, foram assassinados um milhão e trezentos mil prisioneiros, mas não é possível saber-se o número exato. É que, ao descer do comboio, eram examinados pelos médicos nazis e os que não serviam para ‘bestas de trabalho’, como deficientes, doentes, crianças, velhos, mulheres grávidas e com bebés, seguiam logo para a câmaras de gás, sem qualquer registo. Os outros iam para os campos de “trabalho escravo” onde morriam de “morte lenta”. Quando, em 2013, o visitei, senti um estremecimento geral. Fazia-se silêncio em todas as vozes e, nalguns olhos, brilhavam lágrimas. De dor e de vergonha. Que animal é o homem? Como foi possível? Horrível. Há imagens que jamais esqueceremos. Nesse mesmo dia, através do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura tive conhecimento da publicação do livro “Pio XII e gli Ebrei” (Pio XII e os Judeus), assinado por Johan Ickx. Como “diretor do Arquivo da Secção para as Relações com os Estados da Secretaria de Estado da Santa Sé, pôde consultar e estudar documentação inédita nunca antes publicada, e reconstruir assim a intensa atividade realizada por Pio XII e pelos seus mais estreitos colaboradores para procurar salvar milhares de pessoas de origem judaica das deportações nazis” «Os documentos inéditos de Pio XII contrariam a falsa narração aceite precedentemente por muitos», escreve Ickx. O papa, com efeito, «organizou uma rede de vias de fuga para as pessoas em perigo e supervisionava uma rede de sacerdotes que operava em toda a Europa com um único objetivo: salvar vidas onde fosse possível». “É a denominada lista de Pio XII, isto é, a "série Judeus" do Arquivo histórico da Secretaria de Estado. Uma série que contém cerca de 2800 pedidos de intervenção ou de ajuda, e que atesta o quanto a sorte daquela pobre gente estava no coração do papa. Mostra o destino de mais de 4000 judeus. Nem sempre foi possível salvar todos, mas a "série Judeus" «demonstra para além de qualquer dúvida razoável - afirma Icks - que Pio XII e os seus colaboradores fizeram todo o possível para oferecer assistência inclusive àqueles que professavam a fé judaica». Espero que estes trabalhos de investigação reponham a verdade e retirem o labéu lançado, em 1963 pela peça de teatro «O representante» de Rolf Hochtruch, onde surgia a imagem dum Pio XII, silencioso, senão cúmplice, face ao extermínio de milhões de Judeus. “A verdade é como o azeite, vem sempre à tona.”, mas a nódoa do azeite expande-se e não é fácil de tirar…… ( 17/2/2021)

quarta-feira, fevereiro 10, 2021

"A INSEPULTA NOSTALGIA DE DEUS"

Dois meses são passados … “Foi numa conversa pessoal, entre amigos e de coração descalço, que Eduardo Lourenço tropeçou na palavra ‘Jesus’. Quem o revela é esse outro explorador e cartógrafo do espírito, digno herdeiro daquele decifrador de signos, a quem Portugal deve também maior entendimento de si. Tolentino Mendonça, na sua homilia no funeral do professor, revelou a ‘única vez’ que viu Eduardo Lourenço chorar: Ele tropeçou, como o Apóstolo Paulo terá tropeçado, na palavra ‘Jesus’. E os seus olhos encheram-se de água e a sua voz de silêncio, de lentidão e de soluços. Passou muito tempo para que me dissesse, chorando: ‘não há nada superior a Jesus. Já se imaginou um Deus que diz: «Bem-aventurados os pobres, os humildes, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que constroem a paz»? Não há nada superior a isto’. São palavras maravilhosas e comoventes do nosso grande filósofo e ensaísta (1923-2020) que se sentia católico, mas também – confessou-o – um místico sem fé”. Este início do artigo Tropeçar com Eduardo Lourenço na palavra ‘Jesus’ (Mário Rui de Oliveira, in 7Margens, 13/12/2020), levou-me a reler essa homilia. E fi-lo em estado de contemplação. Face à sublimidade das palavras e das ideias, só me resta, no silêncio, fazer eco de algumas perícopes, como incentivo à sua leitura integral. Vale a pena. “Há lutos que se vivem no domínio pessoal, pois dizem respeito à nossa pequena história. E há lutos que excedem esse domínio, pois se configuram como uma experiência de perda coletiva. Teixeira de Pascoaes, que escreveu Arte de Ser Português, quis ser enterrado num caixão em forma de lira. O caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal, do qual ele foi (e será para muitas gerações futuras) um explorador e um cartógrafo, um detetive e um psicanalista do destino, um sismógrafo e um decifrador de signos, uma antena crítica e um instigador generoso e iluminado. Depois dele, todos podemos dizer que nos entendemos melhor a nós próprios. A história do livro é, antes de tudo, a história do desejo humano de permanecer, de vencer a morte, de experimentar sobre a terra algo mais do que uma precária verdade destinada ao esquecimento. Voltamos sempre à mesma sede de transcendência, à mesma desabalada paixão de eternidade, ao mesmo dramático grito para que a existência humana não se consume como mera passagem. Tornamos sempre, para recorrer a uma expressão de Lourenço, à ‘insepulta nostalgia de Deus. Nostalgia de Deus que era também a dele. Um dia na televisão alguém o interrogou: ‘Professor, o que pensa de Deus?’. E a resposta dele abriu um alçapão, trazendo à superfície aquele arrepio sideral do infinito de que falava Pascal. ‘Sabe – respondeu ele calmamente –, mais importante do que dizer o que penso de Deus é saber o que Deus pensa de mim’. Agradeçamos ao Deus das Bem-Aventuranças as palavras que Eduardo Lourenço nos iluminou sorrindo e aquelas para cujo sentido ele nos abriu chorando.” (10/2/2021)

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

BEM MAIS QUE UM 'DEVER CÍVICO'

“Nec recisa recedit (Nem mesmo quebrado, retrocede)”. Este era o lema dum jovem que se tornou recordista mundial dos 200 metros planos e foi tema do filme “A Flecha do Sul” transmitido pela RTP2 (27/12/2020). Era um menino pobre de Barletta, uma ignorada aldeia de pescadores do sul de Itália. Era tão pobre que nem podia frequentar o clube de atletismo da sua terra. A primeira vez que, por um buraco na rede, entrou na pista de atletismo, os meninos-bem que o frequentavam iam expulsá-lo não fora a intervenção do treinador que o pôs a correr com o mais rápido dos seus alunos. Com espanto, ele ganhou, mas pagou caro a sua ousadia. A mãe fechou-o em casa durante uma semana porque ele, na corrida, rompera os “sapatos que deveriam durar mais um ano” e os outros meninos, por desprezo, passaram a chamar-lhe “Pietro dos sapatos rotos”. Ao longo da vida, foi marcado por pensamentos que nunca esqueceu. Do seu treinador, ouviu: “Quanto maiores são os sonhos, mais temos de trabalhar” e “Nas estafetas da vida, os testemunhos são os sentimentos”. Sua mãe dissera-lhe: “Jesus disse que os últimos são os primeiros. E se Jesus disse…”. Animava-o uma vontade férrea e uma esperança inquebrantável de vencer. Por coincidência, nesse mesmo dia, foram notícia as palavras do Dr. António Sarmento, diretor do Serviço de Doenças Infeciosas, no Hospital de São João, o primeiro português a receber a vacina contra o Covid-19: “Estou confiante e com esperança”. Foi bom ouvir palavras de confiança da parte de um especialista que honra a Associação dos Médicos Católicos, o seu hospital e a Universidade do Porto. Quando a epidemia nos atemoriza, gostaria de reter as últimas palavras deste prestigiado médico católico, na entrevista que deu na RTP2 em 18 de janeiro: “Mas há uma coisa que nós temos de preservar até ao fim que é a esperança. A esperança é a base da nossa capacidade de lutar. Não vamos perder a esperança, não vamos desistir. Não podemos cair no laxismo mas também não podemos cair no pânico que corta a esperança. E sem esperança não há trabalho, não há luta, não há perseverança”. Face à ameaça do novo vírus, a humanidade não entrou em pânico. Cientistas, empresas farmacêuticas e governos deram-se as mãos e, em tempo recorde, ofereceram-nos a vacina da esperança. O SNS deu resposta a todas as necessidades, mas, agora, está numa situação-limite e seus trabalhadores em estado de exaustão.. E nós? Para nós, cumprir, sem subterfúgios, as normas decretadas pelo Governo, para além de um ‘dever cívico’, é uma exigência do 5º «Mandamento da Lei de Deus» que ordena: “Não matar (nem causar outro dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao próximo)”. Se a salvação está no «ficar em casa», então fiquemos e só saiamos em casos imprescindíveis. Há que ‘travar a fundo’, sem desculpas nem obsessões.…mas com muitos cuidados. Que a esperança nos ajude a cumprir a nossa obrigação por mais custosa que ela seja. Como Pietro Mennea, a ‘flecha do sul’, que nos anime “uma vontade férrea e uma esperança inquebrantável de vencer”. ( 3/2//2021)