O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, novembro 14, 2006

ACADEMIA BEATO NUN'ÁLVARES



Ontem, quando jantava com o meu primo (mais-que-primo-irmão) Manuel Joaquim, que nessa tarde tinha chegado de Roma onde reside, ao falarmos sobre estes textos/memórias que tenho vindo a escrever, disse: - Então, anteontem, lembraste-te da Academia de Vilar. – Porquê, perguntei. – Porque foi o dia da festa do Beato Nuno. Este foi o contexto que me forneceu o pretexto para este texto que comecei a escrever no dia 8 de Novembro.
A Academia Beato Nun’Álvares era uma espécie de Associação de Estudantes no Seminário de Vilar frequentado pelos seminaristas do Porto, do 4º ao 7º Ano. A sua direcção era constituída pelo Reitor do Seminário, Dr. Moreira da Rocha, como presidente nato, e por três alunos (presidente em exercício, secretário e tesoureiro). Os representantes dos estudantes eram eleitos de entre os alunos finalistas, sem, à priori, qualquer interferência do Reitor, pelos seus condiscípulos. Nesse ano, fomos eleitos: eu, presidente; o Carneiro, secretário e o Alcino, tesoureiro. A Academia, com as verbas provenientes das colectas trimestrais que fazia junto dos alunos, era a responsável pela animação cultural do seminário que passava pela exibição de filmes alugados, festas (a que se chamava academias) com teatro, música, poesia que os alunos apresentavam com a presença dos seus familiares e outros convidados da cidade, e realização de outras actividades como palestras culturais, homenagens etc. A Direcção da Academia exigia muito trabalho que prejudicava o aproveitamento escolar, especialmente, do presidente, que, por princípio, deveria ser um aluno distinto. Razão tinha o Dr. Zacarias, professor de Biologia que, comentando uma minha nota de um teste, disse: - Pois é quando se vai para juiz da Confraria de Nossa Senhora da Pândega é o que acontece… Aprendi e, no final do ano, consegui obter a mesma classificação do ano anterior. Por isso, após o exame, quando eu com outros colegas, já de férias, púnhamos um chapéu na cabeça da imagem de Santo António no corredor do fundo, o Dr. Zacarias passou e disse-me: reza, reza, que ele é que te valeu! E riu connosco da nossa brincadeira. Licenciado pela Faculdade de Ciências do Porto, era um homem de vistas largas e de uma grande compreensão, era uma maravilha este Dr. Zacarias…

Da actividade da Academia, quero realçar/recordar apenas algumas peripécias.

O primeiro filme
* O Senhor Reitor aconselhou-me a ter cuidado com tipo de filme que ia alugar. Fomos à Pathé Baby (?), na rua de Santa Catarina. Falámos das nossas preocupações e, por conselho dos responsáveis da casa, alugámos um filme com o Abbot e Costelo porque, além deles, só entrava uma cabra. Quando cheguei ao Seminário, o Reitor perguntou-me que filme alugáramos e eu, todo descontraído, respondi: -Não há problemas, senhor Reitor. Só entram dois homens e uma cabra. Ele riu-se e, no dia da exibição, quando entrávamos no salão da academia, a rir, disse-me: - Cá vamos nós ver dois homens e uma cabra. E rimo-nos. O pior foi depois. O filme começou e logo surgiram no ecrã dois grupos de raparigas em exercícios de ginástica aquática. E, enquanto, a meu lado o Reitor se divertia, eu suava: - Ai que os tipos enganaram-me. Disseram-me que eram só dois homens e uma cabra e aparecem estas raparigas todas. O que vai sair daqui? Apeteceu-me pedir ao Reitor para mandar parar o filme. Mas aguentei até que as raparigas se foram embora e iniciou-se o filme. Com a minha preocupação nem reparei que as imagens iniciais faziam parte do documentário que costumava ser exibido antes do filme principal. Uff!... Ainda hoje sinto suores frios… Que susto!...
Academia do Carnaval
* Uma das Academias (creio que foi a do Carnaval, mas não tenho a certeza) foi preenchida com teatro, uma poesia dialogada à maneira dos Jograis de S. Paulo que estavam na moda e com o coro do Seminário a interpretar música tradicional portuguesa, recolhida por alunos e pelo Pe. Gabriel. A representação teatral, que incluiu também uma comédia, teve o seu auge com “A Muralha”. Este drama, que em Portugal teve Raul de Carvalho na figura do protagonista, gerou grande polémica, especialmente, em Espanha. O protagonista era um senhor da alta sociedade espanhola, Dom (já não me lembro do nome), homem muito rico que, de modo ilícito, se apropriara de grandes propriedades durante a Guerra Civil Espanhola. Acometido por uma angina de peito, confessou-se a um cura galego que, como condição para a absolvição, lhe impusera a restituição de todas essas propriedades. Todo o enredo se desenvolve no confronto, por vezes violento e dramático, entre ele que quer fazer o que lhe exigiu o cura e toda a sua família, mulher e filhos, que não querem ficar na miséria e dos amigos. A intensidade dramática atinge o seu clímax já no final quando o protagonista, com todas as pessoas que o contradiziam colocadas na sua frente em forma de muralha, diz, apontando para eles: “formou-se na minha frente uma muralha…” Nesse momento, cai fulminado por um novo ataque de angina de peito. Foi uma peça que marcou a minha experiência de actor amador.Simplesmente, extraordinária!...
Foi uma academia que nos deu muitas preocupações e dissabores. Combinei com os padres responsáveis a seguinte distribuição dos ensaios: o teatro ocuparia o intervalo após o almoço, o mais longo; a poesia seria ensaiada após o lanche, o intervalo mais curto; o coro ensaiaria após o jantar. Uma tarde, os alunos estavam na academia para ensaiarem a poesia e o Padre responsável pelo ensaio não aparecia. Fui à sua procura e encontrei-o a passear com os seus colegas, no recreio. Abeirei-me dele e, com modos educados mas não muito simpáticos, disse: “ Senhor Padre, estamos todos à sua espera para ensaiar”. O Dr. Marques, vice-Reitor, ao ouvir, repreendeu-me: - João não é assim que se pede um favor. – Não é um favor que estou a pedir porque, quando se assume um compromisso, não se pede por favor e o senhor Padre assumiu o compromisso de, após o lanche, ir ensaiar. O Dr. Marques e os outros padres presentes fizeram silêncio e o senhor Padre lá foi ensaiar. Noutro dia, foi com o Padre responsável pelo coro. Quando, após o almoço, o Alcino, tesoureiro da Academia, corria, como de costume, o recreio a chamar os alunos para o ensaio do teatro, o Padre disse-lhe que dois deles, do 4º ano, os mais novitos, não podiam ir porque ia ensaiar o coro. O Alcino respondeu-lhe: Eu obedeço ao presidente e não ao ensaiador (só que o presidente era um aluno e o ensaiador era um padre…) E os pequenitos, fingindo não terem ouvido, esgueiraram-se para o salão do teatro. Já o ensaio decorria, quando o Freitas Soares me veio dizer que o Padre estava furioso e que mandava os dois alunos irem para o coro. Nessa altura, saltei abaixo do palco onde ensaiava e dirigia-me para a porta para ir falar com o senhor Padre quando este me apareceu muito nervoso. Calmamente perguntei-lhe: Senhor Padre, o que é que nós combinámos? Não foi que o ensaio do Coro era à noite e a esta hora seria o teatro? - Foi, mas logo à noite eu não posso, respondeu. – E a quem o disse? Falou comigo? Os rapazes não saem dali onde estão a ensaiar. Então ele resmungou: - Pois é, nós queremos ajudar-vos e vós não colaborais. Se é assim, eu não ensaio mais. - Agradeço o seu apoio, mas isso não lhe permite fazer o que lhe apetece. Se não ensaiar, o Coro não actuará na Festa. E como o programa já está impresso, eu terei de informar a assistência do que se passou. E o senhor Padre saiu do salão e não cumpriu a promessa. O P. Delgado (o responsável pelo ensaio do teatro), quando chegou e soube o que acontecera, deu uma gargalhada: - ah!...ah!...!ah!...e comentou: - Bonito… muito bem feito!
Homenagem a Cícero
* A propósito dos 2 000 mil anos da morte de Cícero (faleceu em 43 a.C.), resolvemos realizar uma sessão de homenagem a esse grande escritor latino. O Senhor Reitor, formado em Clássicas pela Universidade de Coimbra, nosso professor de Grego, deu-nos todo o apoio. Para essa sessão foram convidadas as pessoas mais ligadas à cultura na cidade. O Justiniano foi encarregado de fazer um discurso em latim sobre o Cícero. Na véspera da homenagem, o Senhor Reitor, um grande humanista, homem muito marcado pelas praxes coimbrãs e muito respeitador da autonomia das associações dos estudantes, chegou à minha beira e disse-me: - João, prepare-se porque amanhã vai presidir à sessão. – Porquê, senhor Reitor? Não está presente? E o senhor Vice-Reitor?, perguntei. – Eu estarei presente e por isso o senhor vice-Reitor não me vai substituir. Trata-se de uma iniciativa dos estudantes, por isso é o seu representante que vai presidir. No dia, antes da sessão, os três da Direcção fizemos uma festa a experimentar os cadeirões de veludo vermelho onde nos iríamos sentar. No início da sessão, quando os reposteiros do palco se abriram e os alunos viram que éramos nós a presidir (não havia memória de tal coisa), as palmas encheram o salão, enquanto os padres se entreolhavam, espantados. Passados uns dias, na aula de Filosofia, cujo professor era o Vice-reitor, quando um aluno usou a palavra presidir, o Dr. Marques disse: - Por favor não fale em presidir porque quem sabe disso é ali o João. Eu, serenamente levantei-me e, muito reverencialmente , agradeci: - “ Muito obrigado, Senhor Vice-Reitor.

Em assuntos académicos…

Nas festas da Academia, a entrada era por convites e estava reservada a familiares ou a outras pessoas que a Direcção ou os Padres quisessem convidar. Tínhamos sempre alunos que assumiam as funções de “arrumadores”. Um que sempre me pedia para exercer esse trabalho era o Bernardo. Numa das Academias, pediu-me também dois bilhetes para umas “primas” de Vila Nova de Cerveira. Muito em segredo, disse-me que não eram bem primas… Segredei-lhe que ignorava e, que para mim, elas eram suas primas. Uns dias depois da festa, ele queria agradecer-me e falar especialmente de uma prima, mas ninguém podia ouvir. Durante uma tarde, eu subi do corredor do fundo onde ficava o meu quarto ao corredor do meio onde era o quarto do Bernardo. O que fiz era absolutamente proibido. Entrei no seu quarto mas deixei a porta aberta. Quando estávamos na conversa, entrou o Pe. Alcindo que era o perfeito desse corredor e perguntou-me: - O que faz o João por aqui a esta hora? – Assuntos académicos, senhor Padre. – Posso saber de que se trata?Peço desculpa mas em assuntos académicos só posso informar o senhor Reitor, respondi muito serenamente. E o senhor Pe. Alcindo, com um sorriso amarelo, deu meia- volta e eu continuei a falar com o Bernardo. Atrevimentos e irreverências da juventude.
O hastear da Bandeira Nacional
* A bandeira nacional estava guardada no gabinete da Academia e eu era o responsável pelo seu hasteamento nos dias feriados. Após o pequeno almoço, subia ao telhado do seminário onde estava o mastro. Mas nunca ia só, havia sempre colegas que queriam ir comigo. (e eu, para evitar problemas, só levava um de cada vez…) Porquê? Porque, lá de cima, via-se para o “nabal”. O “nabal” era o colégio de freiras que existia, e existe, do outro lado da rua ( foi para este colégio que veio a Lúcia quando saiu de Fátima, antes de ir para Tui). Às suas alunas nós chamávamos “nabiças” (deturpando o termo noviças). E as nabiças existem no nabal. Era um regalo para os olhos: tantas meninas que, a essa hora, estavam no recreio!...
Academia da Despedida

* No final do ano, realizámos a Academia de Despedida do Seminário. Efectuou-se no dia 8 de Junho de 1958 (nunca esquecerei esta data porque coincidiu com as eleições para a Presidência da República em que o General Humberto Delgado era o candidato da Oposição contra o candidato do regime, da União Nacional, Almirante Américo Tomás- essa a razão por que o meu pai não assistiu à nossa festa: lá estavam a minha mãe, os meus dois irmãos, a madrinha da Quintã e o tio Domingos.). Na véspera, como de costume, tive de ir ao centro da Cidade buscar os adereços necessários para o teatro: as cabeleiras ao senhor Gomes da rua Formosa e a roupa ao senhor Valverde na rua de Santo Ildefonso. Porque, com as eleições, os ânimos anti-clericais andavam muito aquecidos, resolvemos que eu iria sozinho para não dar muito nas vistas. Quando, de batina, ia a sair do seminário, o Dr. Marques perguntou-me aonde eu ia. Quando expliquei o que ia fazer, disse: - E não tens medo? – Eu, não. Estou prevenido. E, sem mais dizer, tirei uma pistola do bolso e apontei-a para os seus pés. O Dr. Marques, assustado, berrou: - És maluco!... Vira para lá isso! E eu virei e expliquei-lhe que era a pistola de alarme que nós usávamos nas representações teatrais.
Ao projectarmos a festa, resolvemos cometer a ousadia de apresentarmos uma academia em que tudo fosse original e da nossa autoria. Os músicos e os poetas começaram a produzir. E o Zé Felismino escreveu um drama. Os ensaiadores, actores e os cantores (o hino da despedida foi cantado pelos 35 alunos do curso) eram exclusivamente do nosso ano. E, no dia, o programa-convite, que oferecemos ao convidados e de que aqui apresento uma adaptação , assim rezava:

O programa da Sessão de Despedida, constituído por poemas, músicas e teatro, tem como autores alunos finalistas

1ª PARTE
I – Hino da Academia
II – Na hora da despedida – discurso por João Alves Dias
III – Toque das Ave-Marias – coro a 3 vozes
Mús. de José Belarmino
Letra de José Felismino
IV – Alpinistas de Deus – poesia de Joaquim Moreira Branco, por Elisário Dias de Sousa
V – Actividades Académicas – por Alcino Gomes
VI – Gorjeio Matinal – coro a 3 vozes
Mús. de José Belarmino
Letra de J. Alves Dias
VII – Soldados de Cristo – poesia de Elisário Dias de Sousa, com música de José Belarmino
VIII – Encerramento
IX – Hino de despedida – a 2 vozes
Mús. de J.A.Freitas Soares
Letra de Elisário D. de Sousa
Saudade e gratidão
Eis a nossa despedida.
Saudade porque nos vamos,
Gratidão por toda a vida.”

2ª PARTE

DEUS ESCREVE DIREITO

Drama em 2 actos
de José Felismino Marques da Cruz

PERSONAGENS

D. CAMILO, conde de Marialva – J.Alves Dias
AMADEU – José Felismino Marques da Cruz
DANIEL, criado do conde – Joaquim Branco
ABADE, Pe. MANUEL – Elisário Sousa
JOAQUIM, criado do Abade- Avelino Ricardo
ARTUR, ladrão – Manuel Correia
JOÃO, ladrão – José Bernardo
JORGE, negociante – António de Brito
JOSÉ, negociante – Cristiano Coelho
FRANCISCO, aldeão – António Peres

Ponto – Carneiro Dias

N.B.
Nos intervalos, JOSÉ BELARMINO interpretará, ao piano, música da sua autoria


A festa de despedida foi um êxito, o pior veio depois…

Despedida dos amigos
* Á medida que íamos fazendo as provas orais do exame final, muitos dos “35 soldados e todos que bem armados…” como dizia uma poesia da nossa Festa, comunicavam-nos que iam abandonar o seminário. Se alguns o faziam por vontade própria, muitos outros era porque foram expulsos devido, não a uma causa específica, mas por um complexo de motivos. Nós já perguntávamos uns aos outros: - também tens complexo? Lembro apenas alguns dos que, nesse ano, saíram do seminário: José Felismino, José Belarmino, Alcino, Cristiano, Matos Pinho, Bernardo, Ribeiro Soares. Porque quase todos esses alunos eram nós condiscípulos já desde o primeiro ano, decidimos realizar um almoço de despedida que foi marcado para o fim do retiro que iríamos fazer na primeira semana de Agosto. Como eu era o chefe do ano, liderei a organização desse encontro, tendo incumbido o Loureiro, sobrinho do Pe. Leão, capelão do Colégio do Sardão, de saber o preço num restaurante no Monte da Virgem. Durante as férias soube que a intenção subjacente ao nosso encontro fora deturpada pelos padres que dele tiveram conhecimento e agora ele era visto como um acto de protesto e represália contra o Seminário. Para evitar problemas, eu, logo no início do retiro, aproveitei o facto de o Loureiro me informar que cada almoço custaria 50$00, para convocar uma reunião. No recreio, subi a um banco de pedra e propus aos colegas que, devido ao preço elevado do almoço, este ficasse sem efeito. E assim foi decidido com a concordância de todos. E para mim era assunto resolvido. No final do retiro, quando me fui despedir do Senhor Reitor, ele mandou-me fechar a porta e, com lágrimas nos olhos, disse: - O cavalheiro (era assim que tratava os alunos quando queria repreendê-los) atraiçoou-me.. Fiquei estupefacto e muito chocado por ver a sofrer uma pessoa que eu tanto estimava e que tanto confiava em mim. Perguntei: - Mas o que é que eu fiz, Senhor Reitor? Fez silêncio… E eu acrescentei: - Se é por causa do almoço, devo informá-lo que já o desmarquei com o pretexto de ser muito caro. Mas quero dizer-lhe que a nossa intenção não era pôr o seminário em causa, mas apenas testemunhar a nossa amizade aos colegas com quem convivêramos durante sete anos. O senhor Reitor já me conhece há muitos anos e, por isso, tem a certeza que eu nunca faria nada que estivesse contra a sua vontade. Nunca fui ingrato na vida e o senhor Reitor sempre mereceu a minha estima porque também sempre me estimou. Posso penitenciar-me por, previamente, não lhe ter pedido autorização para a realização do almoço, mas nunca imaginei que a nossa intenção pudesse ser deturpada. Não pensei que houvesse mentes tão retorcidas que pusessem má intenção onde havia apenas amizade e sinceridade. Quem o informou, informou mal e deturpou os nossos sentimentos que eram honestos e humanos., foi mal intencionado. Ele ouviu-me e, já com um rosto mais aberto e um semblante mais desanuviado, disse: - O senhor D. António estava na disposição de expulsar todo o curso, se persistissem na realização do almoço. Então, pedi-lhe autorização para falar com o senhor Bispo a fim de o esclarecer e não deixar qualquer dúvida. Respondeu-me que não era preciso porque ele próprio iria falar com o Senhor D. António.
E o assunto morreu aqui e apenas ficou comigo, pois eu não disse nada disto aos









terça-feira, novembro 07, 2006

ARQUITECTO TÁVORA - UM HOMEM DE BEM



UM PROTESTO E UMA HOMENAGEM
Está anunciada para hoje à noite, às 00h45, a exibição na RTP2 de um documentário biográfico acerca do arquitecto portuense Fernando Távora com o título “ Fernando Távora, um Homem de Cultura” (este texto começou a ser escrito no dia 18 de Outubro).
Se fiquei contente com a apresentação do documentário, senti-me incomodado com o horário em que vai ser exibido. Perguntei-me: que pretende a TV2 ao colocá-lo a uma hora tão tardia? Será que as preocupações culturais atingem apenas aqueles que, de manhã, não tem horas para se levantarem? A Cultura é apenas apanágio dos noctívagos? O arquitecto Távora, professor durante 50 anos na Escola de Arquitectura do Porto, a quem “ se deve grande parte das transformações que levaram a escola a ser uma das mais importantes do país, onde se formaram, por exemplo, Siza Vieira e Souto Moura” ( Público – 18 de Outubro de 2006), não mereceria uma hora mais acessível aos comuns dos mortais? Quais os critérios de programação da TV2? Não entendo, mas, como sou daqueles que se levantam cedo para trabalharem, não posso dar-me ao luxo de ver o documentário, apesar do interesse que ele me despertou. Essa também uma das razões do meu protesto. Mas protesto também em nome de muitos que conheceram o Arquitecto Távora como homem empenhado em causas sociais junto de comunidades carenciadas, como agora “é bem” dizer. É que Fernando Távora não esgotou a sua actividade como arquitecto, professor, homem de cultura. O seu humanismo transbordou pelas comunidades mais pobres do Porto como o Barredo e os Bairros Sociais. É desse homem de bem, de um riso franco, de um humor desconcertante, de uma emoção à flor da pele, de um humanismo encantador, que eu quero falar.

Quando, em 1969, D. António Ferreira Gomes, recém-regressado do seu exílio político de 10 anos, quis renovar a Direcção da Obra Diocesana de Promoção Social do Porto, já o Arquitecto Távora, como sempre foi conhecido, afirmara a sua componente de homem do povo e com o povo no Centro Social do Barredo que se construiu no largo sob o tabuleiro inferior da Ponte de D. Luís, onde agora se localiza o mercado.
Por isso, D. António temia que ele não pudesse aceitar mais um compromisso de voluntariado social, uma vez que, à data, já era, ou estava para ser, o director da Escola de Belas Artes do Porto . No entanto, encarregou-me, como sacerdote responsável pela Obra, de o abordar. Assim fiz. Telefonei-lhe, solicitando uma audiência, não explicitando o que pretendia e apresentando-me apenas como P.e João e representante do senhor Bispo. No dia e à hora combinada, compareci no seu atelier. Como sempre, lá me apresentei, de camisa sem gravata e sem o tradicional cabeção clerical, com um capacete enfiado no braço dado que, na cidade, sempre me deslocava numa Sachs- Minor de duas velocidades. Recebeu-me cordialmente e, após um longa conversa, acabou por aceitar pertencer à nova Direcção da Obra.
Mais tarde, no meio de um almoço que o D. António oferecera aos elementos da Direcção, na Casa Episcopal, o Arquitecto Távora, com aquele ar descontraído e divertido que todos lhe admirávamos, perguntou:
- O Senhor D. António sabe por que é que eu aceitei pertencer à Obra? Perante o ar interrogativo de todos os presentes, respondeu: - deve-se a esse homem que se senta ao seu lado. E contou: “ quando, certo dia, recebi, com surpresa, um telefonema de um sacerdote a pedir-me uma audiência, que se apresentou, como vosso representante, eu interroguei-me: que é que me quererá o Senhor Bispo? Se for para me pedir mais alguma colaboração, vou dizer que não, ele compreenderá que eu não queira abandonar o Barredo, e isso já me chega. No dia marcado, vesti-me com maior cuidado e dispus-me a receber com a maior dignidade possível tão ilustre representante. Imaginei logo, um sacerdote de idade, vestido de fato preto e de chapéu alto. Qual não foi o meu espanto quando vi entrar um jovem, todo descontraído, camisa à sport , capacete no braço e logo pensei: “ não, a este gajo eu não posso dizer que não”. Até o D. António se riu…
Da convivência que mantivemos semanalmente nas reuniões da Direcção a que sempre comparecia, realçarei apenas alguns momentos.
* Na época em que ele pertenceu à Direcção da Obra, o Director dos Serviços de Habitação da Câmara do Porto era o Senhor Engenheiro D. Luís de Távora com quem nem sempre as relações da Obra foram fáceis, atravessando mesmo certos momentos de conflito aberto. Quando, nós, em tom de brincadeira, dizíamos “ aqui o Arquitecto é que podia resolver a situação, falava com o primo Engenheiro e tudo se resolvia”, ele logo atalhava ”não, não somos primos, eu não tenho títulos e o único brasão que possuo é o do meu trabalho. (E eu nunca soube se pertencia ou não à família dos Távoras).
* Num momento de grande tensão entre o Ministério da Assistência e a Obra Diocesana, quando procurávamos encontrar caminhos para resolver/atenuar o conflito, o Arquitecto, com aquele seu ar de quem parecia ausente diz “ estamos aqui tão preocupados com o Marcelo, e daqui a algum tempo quem vai mandar nisto vai ser aqui o Chico.” Rimo-nos, incluindo o Francisco Sá Carneiro. E foi… Grande profecia!… (Já referi este caso no texto "Conversando com um amigo...)
* Houve um acontecimento que me obrigou a uma tomada de posição que muito incomodou a Câmara do Porto, para quem eu passei a ser o “padre comunista da Obra Diocesana”. Eu conto. De acordo com os regulamentos dos bairros camarários, um homem que iniciasse uma mancebia (agora diz-se “união de facto”), vivendo já num bairro, era expulso de qualquer bairro da Câmara. Aconteceu que, no Bairro da Pasteleira, uma mulher abandonou a casa, deixando o marido com três filhas, todas com menos de quatro anos, tendo, a mais nova, menos de um ano. Depois disso, o marido/pai trouxe para sua casa uma colega da fábrica onde trabalhava. Passaram-se três anos e, quando as crianças já chamavam mãe a esta senhora (a mais nova nunca conheceu outra mãe), alguém os denunciou à Câmara e esta pôs o seu inquilino perante a seguinte dilema: ou mandava a mulher embora ou era expulso do bairro não podendo, nunca mais, viver num bairro camarário. Soubemos do caso e, em reunião de Direcção, já tínhamos decidido intervir a favor daquela família junto da Câmara, quando o Dr. Abel Monteiro, chefe da divisão dos bairros camarários, me telefonou para saber a minha opinião como sacerdote da Obra Diocesana, convencido de que eu iria apadrinhar a atitude da Câmara, dando-lhes a cobertura moral de que muito precisavam. Foi uma conversa longa e dura. Comecei por lhe dizer que, como sacerdote e como representante da Obra, estava em total desacordo com a Câmara. Ataca o Dr. Abel: - Então, o senhor como sacerdote é a favor das mancebias.” Retorqui: “não sei do que sou a favor, só sei, como sacerdote e homem, que o que vocês estão a fazer é uma violência desumana porque querem retirar a três crianças a mulher a quem elas chamam mãe.” – “Mas é uma imoralidade!”- protestou o Dr. Abel. “Imoralidade?” Perguntei. “Diga-me a que título querem actuar junto deste casal, como senhorio ou como instituição pública?” – “Como instituição pública que deve velar pela moralidade e pelos bons costumes”, respondeu o meu interlocutor. “Foi esperto, senhor Doutor porque se dissesse que era como senhorio eu dizia que, como tal, não tinham esse direito (e exemplifiquei com uma hipótese: eu sou padre e se metesse uma mulher em minha casa o meu senhorio não tinha nada com isso.) Mas já que é como instituição pública preocupada com a sanidade moral da cidade, pergunto-lhe: sabe que há grupos de casais que, ao sábado à noite, se reúnem na Foz e, no fim, colocam as chaves de casa em cima da mesa e cada homem tira à sorte a chave da casa da mulher com quem vai dormir nessa noite. Que tem feito a Câmara perante esta pouca vergonha que escandaliza toda a cidade?” – “Bem, isso é outra coisa”, responde o Dr. Abel. – “Pois é, Dr. Abel, esses não dependem de vós, mas aos desgraçados que precisam duma casa para albergar os seus filhos vocês escorraçam-nos, preocupados com a moralidade. Coitados, esses nem dinheiro têm para fazerem asneiras!... É contra isso que nós somos. Deixem-se de hipocrisias! O Dr. Abel não quis ouvir mais e desligou, não sem antes se despedir.
Quando, na reunião semanal da Direcção, narrei o sucedido recebi um abraço do Arquitecto Távora e o apoio de todos. Terminada a reunião, permaneci a conversar com O Arquitecto e o Dr. Sá Carneiro sobre a imoralidade que grassava na cidade e eles comentaram: pois é, Padre João, quanto mais se sobe, maior é a podridão! Nunca mais esqueci esta frase.
* Quando, em 1975, decidi pedir dispensa do exercício do ministério sacerdotal, o D. António impôs-me que eu saísse sem dizer nada e sem me despedir de ninguém quer na Paróquia quer na Obra Diocesana. Na paróquia não obedeci. Mas na Obra, sim. Na última reunião em que participei, nada informei, mas, no final, já fora da Casa Episcopal, sede da Obra, retive o Arquitecto Távora e disse: Senhor Arquitecto queria despedir-me de si. Pensou que se tratava de uma habitual despedida até à semana seguinte. Quando lhe expliquei que ia deixar a Obra e o exercício do sacerdócio, ficou pensativo e perguntou-me por que não dissera na reunião. Contei-lhe da exigência feita pelo D. António e que eu, pela última vez, cumpriria o voto de obediência ao Bispo que fizera no dia da minha ordenação (É interessante dizer que o único voto que os padres diocesanos fazem é o voto de obediência porque, contrariamente aos religiosos, não fazem voto de castidade nem de pobreza). Ficou desgostoso com a atitude do D. António mas não fez qualquer comentário depreciativo, nem eu. Pedi-lhe, então, que apresentasse as minhas despedidas e as minhas desculpas aos restantes membros da Direcção. Deu-me um forte abraço e disse: conte comigo sempre que precisar e muitas felicidades para si e para a sua futura esposa. Para mim, será sempre o Pe João da Obra Diocesana.

* Depois disso, só voltámos a encontrar-nos duas vezes: uma foi nas vésperas da morte do Dr. Sá Carneiro, quando ele, como Primeiro-Ministro, veio inaugurar o novo centro social do bairro de S. Roque, como já recordei no texto “Conversando com um amigo…” ; a outra foi no dia em que ele proferiu a sua última lição como professor da Faculdade de Arquitectura. A sua magistral lição foi pronunciada no salão nobre da reitoria da Universidade. Estava repleto e só fora aberto a convidados. Foi brilhante. Mais uma vez soube aliar a competência científica e o seu sentido de humor a uma visão humanista da arte. No final, fui cumprimentá-lo e estreitámo-nos num abraço longo. Nunca mais nos vimos.

* Das suas muitas obras de arte, espalhadas pelo país e pelo estrangeiro, quero realçar duas, na cidade do Porto, que considero emblemáticas não tanto pelo seu valor artístico mas sim pelo que simbolizam do seu carácter democrático e humanista: a recuperação do Palácio do Freixo e a reconstrução da antiga Câmara Municipal do Porto.
O Palácio do Freixo, jóia do barroco, “ o mais notável edifício civil produzido por Nazoni” (F.Távora) para o seu mecenas, o Deão da Sé do Porto, D. Jerónimo de Távora, senhor de grandes propriedades na província do Entre Douro e Minho, cuja residência habitual se situava em Vandoma, junto da Sé Catedral. Quando se sentia cansado do bulício da cidade e das actividades do Cabido, descia das alturas da Pena Ventosa até à Ribeira onde tomava o seu barco que o conduzia, rio acima, até à sua casa de campo, o seu faustoso palácio, construído num morro sobranceiro a um largo meandro do rio Douro, junto ao esteiro de Campanhã. Por essa razão, a frente principal do palácio está virada ao rio com uma majestosa e elegante escadaria. As traseiras, viradas à terra, passavam despercebidas a quem circulava pela estrada que lhe corria rente. Eu próprio passei muitas vezes por essa estrada e, quando quis conhecer o palácio, senti dificuldades para o encontrar. Era um palácio de costas viradas para o povo, próprio de um rico senhor eclesiástico que vivia no seu mundo fechado e exclusivo. O que fez Fernando Távora deste edifício que, depois de ter passado por mais dois donos, actualmente é propriedade da Câmara Municipal do Porto? Adaptou-o à sua prevista nova função como sede da Junta Metropolitana do Porto (era para servir a vasta região do Grande Porto) e abriu-o à comunidade. Como? Mantendo o edifício original, integrou-o no morro que lhe é sobranceiro e que passou a fazer parte da cerca do palácio. Para isso, deslocou a estrada que lhe passava junto e aproveitou o arvoredo que coroava o morro para projectar um edifício, tipo casa de chá, com uma belíssima paisagem semi-circular sobre o palácio, um extenso trecho do rio, a ponte do Freixo e as quintas da outra margem. Os jardins, a cerca e a casa de chá seriam abertos ao público que deles usufruiria, enquanto o palácio ficaria reservado para os serviços da Junta. Assim, o Arquitecto Távora transformou um palácio fechado, exclusivo de um senhor/tipo feudal, virado ao rio, num local aberto à comunidade e ao serviço da causa pública. Mas…Arquitecto já não viu que o seu projecto foi totalmente desvirtuado: já não será a sede da Junta Metropolitana, a casa de chá não foi construída, os jardins e a cerca mantêm-se agressivamente fechados. O Palácio vai servir para uma Pousada. E o morro? Não se sabe…
A Casa da Câmara- O Porto viveu e cresceu numa dialéctica de confronto: territorialmente, foi a oposição entre os montes e os vales; socialmente, foi o conflito entre o Bispo e a Burguesia. Esta foi a teoria que o Arquitecto Távora defendeu numa conferência a que assisti sobre a cidade do Porto.
Como símbolo do poder eclesiástico, lá está a velha Sé fortificada (Castelo?), construída no século XII (nunca entendi o porquê daquela fortaleza medieval: de quem se defendia o Bispo? Não era de Leão porque, à data da sua construção, Portugal já era independente e o Porto não se situava numa linha de fronteira; dos Mouros, também não, porque a fronteira-sul já se afastara definitivamente para Além-Mondego e já chegava ao Tejo. Penso que os Bispos defendiam-se do povo do seu Couto, especialmente dos Burgueses, e do Rei com quem estiveram em litígio durante toda a Primeira Dinastia. Como símbolo da afirmação do poder civil face ao poder eclesiástico, os vizinhos/burgueses do Porto, no século XV, ergueram uma casa-torre, com 22 metros de altura, onde se reuniu a Câmara do Porto até 1539. Esta casa, entretanto, caiu em total ruína: restavam apenas os alicerces.
Decidida a sua reconstrução pela edilidade, foi o Arquitecto Távora o escolhido para a projectar. E a torre ergueu-se por entre muitos protestos que chegaram a acusá-lo como se fosse um laico que queria afrontar o Bispo. E porquê? Porque a torre, vinda lá do fundo da rua de S. Sebastião, levanta-se bem próxima do flanco-poente da Sé, quebrando o seu isolamento e afrontando a sua imponência. Três faces do prisma são quase completamente fechadas, com especial incidência para a que está virada para a Sé. Já a face voltada para o Porto-Burguês que desce até ao rio, está completamente aberta. Deste modo, o Arquitecto quis fornecer uma vista única sobre o Porto e, simultaneamente, realçar o poder burguês no seu confronto com o poder episcopal. É uma lição de história aquela casa e uma homenagem ao labor das gentes do Porto. Mais uma vez, é o homem do povo e com o povo que está subjacente ao arquitecto: o cristão que afirma a sua cidadania. As minhas homenagens, Arquitecto Távora.






sexta-feira, novembro 03, 2006

"CAMPO DA EGUALDADE"

Nas nossas deambulações por terras de fronteira, chegámos a Salvaterra do Extremo, na Beira Baixa. Fomos simpaticamente recebidos pelo senhor Flores que, depois de nos mostrar as ruínas do velho castelo, lamentando a sua degradação, e nos indicar ao longe, na margem esquerda do rio Erges, o castelo de Penafiel que D. Dinis cedeu a Castela pelo Tratado de Alcanises (foi para mim uma grande surpresa porque, sem contar, descobri um castelo cuja localização procurava há muito tempo), nos levou até ao “campo santo” , fazendo realçar a inscrição em ferro forjado que encimava o portão: " CAMPO DA EGUALDADE” (sic) .
- Aqui, somos todos iguais, comentou.
Lembro este episódio neste dia de “Todos-os-Santos/Fiéis Defuntos" em que a ostentação e o luxo invadem os nossos cemitérios. Apreciei o que, a este propósito, disse D. Carlos Azevedo (para mim é sempre o Pe. Carlos Alberto, como lhe disse aquando do congresso do 1º centenário do nascimento do D. António: -desculpe mas ainda não me habituei a chamar-lhe D. Carlos. - Nem eu, parece-me título de rei … , sorriu.) : “ Mas a ostentação do triunfo das sepulturas ou a simplicidade da igualdade, reflecte, apenas, a projecção que as pessoas fazem da sua concepção de vida para além da morte. Se se guiarem por valores cristãos saberão encontrar uma atitude simplista e a de austeridade” (JN- 1/11/06). Não, amigo, os nossos cemitérios não são cristãos apesar da proliferação das cruzes, não são “campos de egualdade”. O que neles campeia não é a austeridade e simplicidade mas a vaidade. Vai longe o tempo em que as pessoas se limitavam a enfeitar as suas campas com flores campestres ou que criavam, de propósito, nos seus jardins. Uma oração era bem mais importante que uma flor. Agora são autênticos concursos florais com coroas e arranjos comprados nas floristas. Uma verdadeira ofensa para os pobres que não podem comprar as flores que atingem preços proibitivos: uma flor de crisântemo custa entre 1 e 2 euros. É uma feira de vaidades e de afrontamento onde as flores são bem mais abundantes que as orações e, mesmo, que as lágrimas de saudade. Que sociedade esta em que a morte, o grande sinal da fraqueza humana, serve para uma afirmação de orgulho e vanglória!...
O sentido cristão está ausente dos nossos cemitérios nestes dias, até porque o culto da morte não é cristão. O cristão acredita na vida. Nestes dias, a Igreja celebra a vida daqueles que já ressuscitaram. Não, não festeja a morte. A exploração do sofrimento nas cerimónias litúrgicas é também uma forma desumana de celebrar a vida. Sempre estive contra esta exploração do sentimento.
Recordo que, em 1970 - ano em que faleceu o meu pai – estive para me retirar , mesmo paramentado, do cemitério de Campanhã, quando um pregador usava toda a sua eloquência para fazer chorar. Avisei o pároco que nunca mais participaria na tradicional procissão ao cemitério se um padre explorasse o meu sofrimento. A procissão continuou a fazer-se mas não houve mais pregador convidado. Nós, os párocos da três paróquias (Santa Maria de Campanhã, S. Pedro de Azevedo e Nª Senhora do Calvário), passámos a fazer, rotativamente, a homilia na igreja; no cemitério, para além de uma oração, apenas era dita uma palavra de esperança.
Também,recordo o dia de Todos-os-Santos de 1963. Era eu um jovem sacerdote, ordenado em Agosto desse ano. Estava a coadjutor em Santo Ildefonso, no Porto, quando recebi o pároco da minha paróquia, o Pe. Nogueira, e o meu padrinho José Joaquim, irmão de minha mãe. Vinham convidar-me para fazer o sermão no dia de Todos-os-Santos que a casa da Ponte, donde era a minha mãe, mercê de um legado deixado pelos meus antepassados, tinha a obrigação de mandar pregar. Não pude dizer que não, embora isso me custasse porque sabia como, nesse dia, era difícil não fazer chorar.
E eu aprendera a não explorar os sentimentos. Preparei-me e, no dia, lá subi ao púlpito. Falei sobre a grande novidade cristã da comunhão dos santos e da ressurreição. Quando senti que algumas pessoas começavam a chorar, dei nova orientação às minhas palavras. Isso valeu-me, no final, uma repreensão do meu pai: - ó filho, tu andaste a aprender ou a desaprender? Então tu que, na missa nova do primo, fizeste chorar toda a gente, agora, quando as pessoas começavam a chorar, paraste e mudaste de assunto? – Tens razão, pai. E mais não disse. (Realmente, um grande pregador tem de fazer chorar toda a gente. Lá se foi a minha fama de grande pregador.)
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E interrogo-me:
- Porquê celebrar a memória de alguém num local com o qual nada nos identificamos?
- Porquê reviver momentos de partilha com alguém perante as pedras frias de um túmulo?
- Porquê celebrar a vida num espaço carregado de morte?
- Porquê expor ao controlo social a exposição dos nossos sentimentos pessoais?
- Porquê criar obrigações aqueles que amamos?