O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, novembro 29, 2013

É bom estarmos aqui



À maneira de S. Pedro no monte Tabor (Mt 17,4), era este o meu sentimento quando, no passado dia 15 de junho, percorria, com um grupo de amigos, a “via-sacra” em Fátima. Um caminho longo que começa junto da “rotunda sul” e termina na capela do Calvário, depois de uma paragem no monumento a Nª Senhora, nos “Valinhos”. Longo, mas pouco íngreme, o que permite a subida mesmo àqueles, como acontecia a alguns do nosso grupo, a quem os anos já vão pesando nas pernas. Mais do que um sacrifício, é um espaço marcado pelo silêncio apenas entrecortado pelo cantar de um ou outro passarinho e pelo ciciar do vento nas folhas das oliveiras e azinheiras que bordejam o caminho. E nesse silêncio, associei-me à natureza que, em manhã de primavera, me convidada a louvar o Criador. - ” Creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do céu e da terra”. Evoquei o episódio bíblico em que “ Melquidesec, sacerdote do Deus Altíssimo (…) abençoou Abrão, dizendo: “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra!” (Gn, 14,18). Deu-se o encontro do Deus da Criação de Melquidesec com o Deus da Revelação de Abraão. E porque, em Jesus, o “ Verbo se fez carne” (Jo 1,14) e se realizou a plena manifestação de Deus, acrescentei -”Creio em Jesus Cristo, seu único filho, Nosso Senhor”.



A via-sacra é um convite à oração, feita de recolhimento e encontro interior. Num mundo aos berros onde a verdade se mede pela força dos gritos, é bom fazer silêncio, um silêncio não de solidão, mas de comunhão.

Comunhão com nós próprios que, mergulhados num presente sombrio, andamos descentrados do essencial, estranhos a nós mesmos. É o momento para cada um mergulhar na sua intimidade e interrogar-se sobre quem é e qual o sentido da sua vida. Comunhão com os outros. O Cristo padecente faz-nos vê-Lo nos mais frágeis. Numa sociedade em que tantos sofrem abandonados, é tempo de me perguntar o que posso fazer para atenuar a sua solidão, a começar pelos que me são mais próximos. “Põe tudo o que és na mais pequena coisa que faças”, dizia Fernando Pessoa.

Comunhão com aqueles que partilharam a vida connosco e já partiram para a “Casa do Pai”. -“Creio na Comunhão dos Santos”. E lembrei os amigos com quem, no passado, rezei por aqueles caminhos solidários. Escreveu Saint-Exupéry: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Senti que seguiam connosco naquela caminhada que também foi romagem de saudade. E dei graças a Deus por eles. -“Creio na vida eterna”.
 
 
Faz-nos bem calcorrear estes caminhos serranos que nos remetem para o tempo em que os “três pastorinhos” por eles corriam atrás das ovelhas. Limpa os pulmões, tonifica os músculos, refresca a alma e revigora o espírito. Fica como sugestão para o “Ano da Fé”.

A serenidade no ajudar



Quando me foi proposto o tema, comecei por reler o Evangelho (Lc 10,30) que fala de um homem que caiu nas mãos de salteadores que o deixaram “meio morto” e de um sacerdote e um levita que não lhe prestaram qualquer ajuda. Interroguei-me: O que estará na origem deste facto? Ter-se-ão apercebido? O evangelho diz apenas “viu e passou adiante”. Desciam de Jerusalém onde trabalhariam. Dirigir-se-iam para suas casas. Que preocupações lhes encheriam a mente? Que medos os atormentariam? Não iriam tão absortos que nem se aperceberam da gravidade da situação? Pensemos em nós. Não é verdade que, por vezes, andamos tão angustiados com a vida que nem reparamos no rosto triste de um amigo, no silêncio de um filho, nos olhos húmidos de nossa esposa? Simplesmente porque estamos enclausurados na nossa intimidade a remoer angústias? Falta-nos serenidade interior para prestar atenção ao que nos rodeia.

O texto sagrado fala-nos ainda do samaritano que “viu e moveu-se de compaixão” e ajudou-o na medida das suas necessidades. Sem exageros… Desceu do cavalo, tratou-lhe as feridas, deixou-o numa estalagem, comprometendo-se a pagar o que fosse preciso pelo seu tratamento. E continuou viagem. O seu gesto faz-nos pensar na serenidade que se exige a quem deseja ajudar alguém. É que há pessoas que, embora bem-intencionadas, se tornam incómodas e intrometidas. Fazem-me lembrar aquele jovem escuta que, para cumprir a sua “boa ação diária”, ajudou uma velhinha a atravessar a passadeira. Só que ela não ia atravessar a rua porque seguia em sentido contrário… E também aquele moleiro que, ao montar a mula, disse “Deus me ajude…”. E, ao cair do outro lado devido ao exagero do impulso, acrescentou:” …Mas não tanto”…. Há pessoas a quem apetece dizer: ajude… mas não tanto. Na ânsia de ser úteis, não veem que estão a ultrapassar os limites. Até nas ofertas e nos gestos de delicadeza pode haver violência… A ajuda deve ser proporcional à necessidade e nunca pode invadir a intimidade do outro nem afetar a sua autonomia. Ajudar, sim, mas com equilíbrio para que a virtude não se transforme em vício. Razão tinha o grande Aristóteles que escreveu: “Sendo assim, um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e preferindo o justo meio. Estou falando da virtude, pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e justa medida”. E Séneca, filósofo latino, contemporâneo de Jesus, que dizia: Toda a virtude assenta na justa medida, e a justa medida baseia-se em proporções determinadas. É neste sentido que deve ler-se o que diz a Bíblia (Ecl 7, 16) “Não sejas justo excessivamente, nem sábio além da medida. Por que te tornarias estúpido”. Assim julgo poder interpretar o que dizia um notável bispo do Porto: “Fico sempre receoso quando alguém me diz eu sou muito religioso. É que a religião deve ser como o sal na comida: nem de mais nem de menos mas na justa proporção”.

Há situações em que este equilíbrio se torna mais difícil.

  • É bom que os pais ajudem os filhos mas sem nunca os substituir, nem infantilizar ou tornar paterno-dependentes. O perigo cresce quando casam e se redobram as atenções. Cuidado. Ajudar sim, mas apenas quando eles solicitarem. Há matrimónios que se desfazem devido à demasiada intromissão da família. O perigo redobra nos nossos tempos em que muitos filhos casados, por razões económicas, voltam a viver com os pais. Ajudá-los, sim, mas sem interferir na sua autonomia: não voltam a ser solteiros…
  • É bom que nos preocupemos com um amigo em hora de desgraça. Mas atenção. Há momentos em que as palavras estão a mais. Sei de uma mãe que, cansada de ouvir a amiga dizer; “tem paciência, foi a vontade de Deus”, rebentou em lágrimas e explodiu: que Deus é esse que quer o meu filho ali morto no caixão enquanto o teu ainda hoje te convidou para almoçar! Não. Esse não é o meu Deus”. Como é reconfortante, nessas horas, a presença dum amigo, disposto a partilhar dos nossos silêncios…
  • Quão digno de louvor é quem cuida de idosos. Exerce a sublime missão de apoiar aqueles em quem e por quem Deus fez maravilhas. São tesouros em vasos de vidro: o invólucro é frágil mas a joia é preciosa. Também aqui é preciso adequar a ajuda ao seu ritmo e não esquecer a sua experiência de vida. Lembro aquela senhora que entrou para um lar de idosos e, logo no dia seguinte, uma funcionária veio dizer-lhe que estava na hora da ginástica. Perante a insistência, suplicou: “ó menina, toda a vida fui criada de servir, cansei-me a correr de um lado para o outro. Agora, ao menos, deixe-me ficar aqui a descansar”.

Devido às muitas preocupações, nem sempre se respeita a identidade, a intimidade, a autonomia, os silêncios, os laços afetivos dos idosos. Eu sei que fazê-lo não é tarefa fácil porque exige disponibilidade de tempo e muita paz interior. Coisas que, nestes tempos conturbados, não abundam.

 

Em síntese… A repetição de atos, consciente e deliberadamente assumidos, criam hábitos. E estes, à medida que se interiorizam, vão dando origem às atitudes que nos predispõem para um agir mais fácil e consistente. Assim, à medida que, no dia-a-dia, repetimos gestos de ajuda bem ajustada e tranquila vamos fortalecendo a nossa serenidade interior. Ajudar é bom. Saber ajudar é sublime.

A afirmação da vida


 

Quando recebi o convite para refletir sobre este tema, acabava de viver, na Polónia, dois momentos de emoção forte e contrastante.
 
 
 
 
O primeiro ocorreu no “campo de concentração de Auschwitz ” em que foram exterminadas um milhão e trezentas mil pessoas. Num silêncio de horror, interroguei-me: como é possível ao coração humano comportar ódio tão hediondo?
 
 
O segundo aconteceu em Wadowice onde nasceu e brincou um menino chamado Karol Jósef que, hoje, conhecemos por Papa João Paulo II. Aí, o silêncio foi de louvor. E ao ver, entre as muitas placas que atapetavam a praça, uma que dizia “Portugália 1982,1983, 1991, 2000”, exclamei: que maravilha! Nesta terra, perdida no sopé dos Sudetos, nasceu um coração capaz de amar e ser amado em todo o mundo!

Se, segundo a “teoria dos opostos” de Heráclito, é a doença que faz sentir o gosto da saúde, este contraste fez-me pensar sobre o enigma que inquieta o pensamento de todos os tempos e lugares, pelo menos, desde o “Homem de Neandertal”: que animal é este que pode ser um monstro ou um anjo?

No dia 9 de maio, o P. Tolentino de Mendonça ao falar sobre “A sede de Deus”, afirmou que só o amor poderá dar sentido e congregar as diferentes sedes que se escondem no coração dos homens do nosso tempo.

 Os dois primeiros capítulos da Bíblia dizem que Deus (que é Amor), criou o homem à sua imagem. Mas como conhecia bem a sua obra, “disse: Não é bom que o homem esteja só” e, por isso, deu-lhe a mulher por companheira. E aos “dois numa só carne”, ordenou: “frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”. Vemos, assim, que Deus não criou o homem como ser solitário, mas deu-lhe, desde o início, a necessidade do outro, e é, em solidariedade, que o homem deve fazer frutificar a terra.

É interessante verificar que esta dicotomia solidário-solitário aparece em vários mitos cosmogónicos que enriquecem a cultura de muitos povos. Realço, apenas, o das Ilhas Andamão no Oceano Índico:“ O primeiro homem chamava-se Jutpu (“Solitário”). Jutpu sentia-se triste, cansado de viver só. Roubou um pedaço de barro de um formigueiro e moldou-o com forma de uma mulher. O barro tomou vida e a mulher tornou-se sua esposa. Chamava-se Kot (“Barro”)”.

Também a filosofia dá relevo a esta fome que o “eu” sente pelo “tu”.

Sem esquecer “o imperativo moral” de Kant “age sempre de maneira a tratar a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio”, gostaria de citar o filósofo francês Roberto Maggiori: “O homem não é homem sem os outros. Tal como a criança, o adulto está ligado ao outro, ligado numa teia de relações que o situam e definem, imerso num complexo social que lhe fornece uma linguagem, impõe ou propõe códigos, direitos, deveres, valores”.


 Afirmar a vida será, então, respeitar, em si e nos outros, a pessoa como valor absoluto, na sua singularidade e originalidade, dotada de autonomia, que se abre ao outro e dele se aproxima como o “bom samaritano” da parábola evangélica. Foi com este espírito e para que as populações mais marginalizadas da cidade tivessem “vida em abundância” (Jo 10,10) que D. Florentino criou, em 1964, a “obra dos Bairros”. Este é o lema que anima quem serve a Obra Diocesana.

 

 

 



quarta-feira, novembro 27, 2013

Deixem-nos sonhar...




Há dias, quando meu neto - sacramento da presença viva de Deus e da esperança- se entusiasmava ao ver, na bonita montra da “Voz Portucalense”, livros da Torre dos Clérigos que, nas suas palavras, “é muito alta, vê-se a cidade toda” e do Papa Francisco que ”tem o meu nome e um sorriso muito simpático”, um idoso que passava afagou-lhe a cabeça e, com mágoa na voz e no olhar, disse: “ó meu menino, como falas bem, mas é pena que tenhas nascido num tempo tão mau”. E eu respondi: “sim, vivemos numa época de privações, mas, olhe, que, quando nascemos, os dias não eram melhores. Vim ao mundo com a Segunda Guerra Mundial, em tempo da meia-sardinha e do naco de broa”. Concordou que também seus pais passaram por muitas dificuldades. Mourejavam de sol a sol por uma côdea. Lutavam pela vida. Não passavam o tempo a queixar-se dos outros ou a reclamar direitos. Cultivavam a simplicidade do essencial. Sentiam-se um elo imprescindível na cadeia de transmissão da vida Se nossos pais não tivessem sonhado com um futuro melhor, nunca teríamos nascido.

E, porque “o sonho comanda a vida”, gostaria de partilhar convosco, neste reinício de atividade, excertos do poema “O direito a sonhar” de Eduardo Galeano. “O mundo, que hoje está de pernas-para- o- ar, vai ter de novo os pés no chão. O ar será puro e vai existir apenas a contaminação que emana dos medos humanos e das humanas paixões. O povo não será programado pelo computador, nem comprado pelo supermercado, nem visto pela TV. A TV vai deixar de ser o mais importante membro da família, para ser tratada como um ferro de passar ou uma máquina de lavar roupa. Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem de qualidade de vida a quantidade de coisas. Os políticos não vão mais acreditar que os pobres gostam de encher a barriga de promessas. O mundo não vai estar mais em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza. Ninguém vai morrer de fome, porque não haverá ninguém morrendo de indigestão. Justiça e liberdade, gémeas siamesas condenadas a viver separadas, vão estar de novo juntas, bem juntinhas, ombro a ombro. A Igreja vai ditar um décimo-primeiro mandamento: Amarás a natureza, da qual fazes parte”.

 
Utopias? E para que servem? São como a linha do horizonte que, quanto mais avançamos, mais se afasta de nós. Nunca se alcançam mas ajudam-nos a caminhar. Radicam na vontade e abrem-se à esperança. Sejamos utópicos. Saibamos agradecer e apreciar as coisas boas que Deus nos dá. Vivamos “cada noite como se fosse a última” e “cada dia como se fosse o primeiro”. Exijamos que os nossos políticos sejam sérios e dignos deste povo que, do “Cabo das Tormentas”, fez “Cabo da Boa Esperança”. E gritemos, como na Catalunha, “Se não nos deixais sonhar, não vos deixaremos dormir”. 

terça-feira, novembro 26, 2013

Era uma vez uma tartaruga




No passado mês de agosto, passei por Beja para visitar a cidade a que os Romanos chamaram “Pax Julia” (Ainda hoje, para além de “bejense”, o nome gentílico das pessoas de Beja é, a lembrar essas raízes, “pacense” e “julianense”.) E o que resta da magnificência dessa velha cidade que foi colónia e sede de um convento jurídico romano? Que os visigodos constituíram sede episcopal no século VI? Onde cristãos e mouros, durante quatro séculos, se bateram numa guerra sem tréguas e sem fronteiras? Que passou a ser definitivamente portuguesa em 1162? Onde, em 1179, perdeu a vida Gonçalo Mendes da Maia, “O Lidador”, ao defendê-la da última arremetida árabe? A quem D. Afonso III deu foral em 1254? Que foi elevada a cidade em 1517 e teve o privilégio de cunhar moeda (ainda hoje existe a rua da Moeda a que aconselho uma visita até por motivos gastronómicos…)? Que foi berço de figuras insignes como a rainha D. Leonor, esposa de D. João II e fundadora das Misericórdias, dos três humanistas André, Diogo e António Gouveia e ainda de D. Frei Amador Arrais, um clássico da língua portuguesa, e de Soror Mariana Alcoforado que, no dizer de Raul Proença, se transformou na “glória eterna do sentimento português”?


Infelizmente muito se perdeu na voragem do tempo e no camartelo dos seus responsáveis. Mas ainda muito ficou a merecer uma visita (a começar pelo “posto de turismo” dentro do castelo). Ao passear descontraidamente pelas velhas ruas da cidade, a cada instante somos surpreendidos por um monumento: aqui, uma janela ou um portal manuelino, ali uma janela mudéjar, acolá uma porta gótica ou um arco romano, mais além uma igreja românica ou um convento renascença. Vale a pena subir à torre de menagem do castelo que, com 40 metros de altura, é uma das mais altas e, certamente, das mais belas de Portugal. O olhar alonga-se pelas lonjuras do entre Sado e Guadiana. Ali bem perto, Baleizão lembra-nos Catarina Eufémia, um grito de sangue no silêncio alentejano. Merece, ainda, uma demorada visita o Convento da Conceição que, se não de Portugal, foi certamente o mais rico convento feminino de todo o Alentejo. Para além de seu valor artístico (os azulejos mouriscos que revestem a sala do capítulo deixam-nos boquiabertos) e sentimental (todos querem tirar uma fotografia junto à celebre “janela de Soror Mariana” por onde terão passado as suas famosas cartas de amor), alberga o Museu Regional de Beja com um riquíssimo acerbo artístico que nos conta a vida de muitos séculos.

E onde encaixa o título deste texto? Perguntar-se-á, com razão, o leitor. A história e o património de Beja...
Quando saia do castelo de Beja, vi que a Catedral estava aberta. Entrei e procurei uma lamparina que me indicasse a presença do “Patrão”. Vi-a no transepto e para lá me dirigi. Julgo ser este o gesto que nos identifica quando visitamos uma igreja: ajoelhar frente ao Santíssimo Sacramento. Na Eucaristia que se seguiu, logo me surpreendi ao ouvir o sacerdote dizer: “Hoje não há intenções particulares para esta Missa. Vou celebrar pelos cinco jovens que acabam de morrer num acidente na nossa diocese, perto de Ourique”. Não havia intenções (de quem?), mas ele congregou a assembleia na mesma oração. A diocese não é uma mera circunscrição eclesiástica…
Na homilia, contou que certa vez as tartarugas resolveram fazer uma corrida para ver qual delas chegaria primeiro ao cimo do monte. Os outros animais juntaram-se na berma do caminho, riam-se e zombavam delas: vós, com essas carapaças, nunca lá chegareis. E as tartarugas, ao ouvi-los, começaram a desanimar e foram, pouco a pouco, desistindo. Uma houve, porém, que conseguiu chegar ao cimo. Quando, admirados, lhe perguntaram: como conseguiste? Ela respondeu:- sou surda”. E o sacerdote concluía: “no meio do barulho em que vivemos, às vezes, precisamos de ser surdos”. Fiquei a pensar. Quem não se lembra de ter ouvido os meteorologistas dizer que este ano não iríamos ter verão? E o que aconteceu? Não nos faltam profetas da desgraça que se congratulam a anunciar males futuros. Como se os presentes já não nos bastassem. Quando escrevia este texto, li nos jornais “Programa de Portugal será mais duro do que o da Irlanda”. Já não nos chega o atual? Porquê massacrar-nos com hipóteses ainda mais macabras? Com que displicência os comentadores políticos falam de cortes nas pensões e despedimentos! E até parecem ter as soluções debaixo da manga. Às vezes, apetece-me desabafar: “é preciso não ter vergonha. A maioria deles já participou em Governos anteriores e que fizeram eles? Não serão também culpados? Falam como se fossem “extraterrestres”, ou “anjinhos” caídos do céu… E que dizer do maniqueísmo dos políticos para quem só é bom o que é feito por eles e nos outros só veem mal, como se tivessem o exclusivo da competência e da honestidade?
Fazem-me lembrar uma certa reunião. Estava um delegado do Ministério da Educação a arengar sobre os males do ensino, quando um professor pediu licença para o interromper e disse, com ar muito humilde: “sabe, senhor Doutor, qual é o mal do nosso ensino? É que quem sabe ensinar, como os senhores, não dá aulas…” Os outros professores bateram palmas. E a palestra pouco mais durou.
A propósito das eleições, D. Manuel Martins disse, no JN do passado dia 18 de setembro: “Com esta balbúrdia toda, até tenho dificuldade em decidir”.

A vida é como uma árvore



Na celebração das “bodas sacerdotais” de presbítero amigo, sua irmã mais nova fez uma citação de Ortega Y Gasset que, com vénia, transcrevo: “Sou um homem que ama verdadeiramente o passado. Os tradicionalistas, ao contrário, não o amam; querem que não seja passado, mas presente. Amar o passado é congratular-se com que efetivamente tenha passado”.

O tradicionalista vive a repetir “no meu tempo é que era bom”. O seu presente é um “ontem” que se quer perpetuar. A nossa vida decorre entre duas coordenadas: tempo e  espaço. O espaço é reversível. Podemos voltar atrás e refazer um caminho. O tempo não. Tem apenas uma direção que vem do passado e vai para o futuro. O que se fez feito está.



Ortega e Gasset “ama verdadeiramente o passado” porque as coisas, libertas das pressões do presente, ascendem “à vida mais pura e essencial que têm na reminiscência” Lembra o passado como passado e não anseia que ele se faça presente.

Como diz o mesmo filósofo, “eu sou eu e a minha circunstância”. Então, eu não posso querer ser o mesmo se a minha circunstância se alterou. O modelo que persigo obriga-me a buscar novas aproximações. Se o passado se concretizasse no presente já não seria o passado que vivi. Seria outra coisa. É ver a desilusão que foi, para quem viu a primeira, a nova versão da telenovela “Gabriela”. Como dizia Heráclito, “ a mesma água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte”.
 
 
 
A vida humana é como uma árvore. Quando é que a árvore é mais árvore? Despida no inverno, em flor na primavera, com frutos no verão? Não. Ela é o “todo” que se realiza em cada uma das determinações que vai assumindo ao longo do ano. Assim a nossa vida. Em cada “hoje” eu realizo a síntese do “ontem” que fui e do “amanhã” que serei. Cada dia que nasce é um dom de Deus – um Seu presente - onde o passado frutifica e germina o futuro. François Jacob, prémio Nobel da Medicina em 1965, diz que, ao longo da vida, vamos moldando uma estátua interior que dá unidade e sentido às nossas ações. Se é verdade que não há vida humana sem passado, também não há vida plenamente humana sem futuro. Armando Matteo no seu livro “A primeira geração incrédula” ao falar dos jovens atuais diz que eles “parece ter-se detido no limiar de um presente suspenso. E acrescenta que “É a ausência de futuro que (…) entrega os jovens aos braços niilistas do presente”. Com um passado que não cultivam e um futuro que não os motiva, muitos jovens, com honrosas exceções, vivem na fugacidade do presente sem bússola e sem norte.
 
 

Quando, nesta coluna, evoco nomes do passado não o faço por revivalismo. Diz Saint-Exupéry: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. É, sim por gratidão a esse “um pouco de si” que nos legaram.

"Estava enfermo e me visitastes"




As obras de misericórdia são catorze, sete corporais e sete espirituais. As corporais são: Dar de comer a quem tem fome. - Dar de beber a quem tem sede. - Vestir os nus. - Dar pousada aos peregrinos. - Assistir aos enfermos. - Visitar os presos. - Enterrar os mortos.

E as espirituais: Dar bom conselho. - Ensinar os ignorantes. - Corrigir os que erram. - Consolar os tristes. - Perdoar as injúrias. - Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo. - Rogar a Deus por vivos e defuntos.

Assim aprendíamos e assim dizíamos no exame da Comunhão Solene.

Recordei-as, no dia 14 de setembro, quando, entre os irmãos da Irmandade das Almas de S José das Taipas, vi um rosto que jamais esqueci mas de quem nunca soube o nome. Fiquei-lhe grato pelo apoio que nos deu quando nosso filho esteve internado no IPO a fazer quimioterapia. Durante a adoração do Santíssimo, dei graças pelo bem que, de forma generosa e anónima, os voluntários prestam nos nossos hospitais. E, porque, estava próximo o de Santo António, a minha memória fez-me regressar ao Seminário Maior do Porto dos inícios da década de sessenta. Vivia-se então em rigoroso regime de internato, apenas quebrado por um passeio semanal na tarde de 4ª feira. Inspirados pela espiritualidade de Charles de Foucauld, o missionário dos Tuaregues assassinado em 1916 e beatificado em 2005, alguns seminaristas aproveitavam essa saída para visitar doentes naquele hospital, com o apoio do seu capelão, P. Vieira Mendes. Não havia telefone acessível aos doentes, nem telemóvel nem internet. Muitos dos doentes vinham do interior do país e eram analfabetos. As viagens eram demoradas e caras. Com a hospitalização, ficavam longe dos seus familiares. Para além da doença, atormentava-os o isolamento a que eram obrigados. Quando os seminaristas entravam numa enfermaria, logo havia braços no ar a pedir-lhes para ler ou escrever uma carta. Para além das confidências dos doentes, esta tarefa criava uma grande proximidade com o seu mundo e a sua dor e eles aprendiam a partilhar o sofrimento. Era a sua “via-sacra” semanal. E quão enriquecedora!...

A perceção das necessidades hospitalares levou-os a inscrever-se como dadores de sangue. Ainda há pouco, vi um cartão de dador que assinalava: “primeira colheita em 29 de setembro de 1961”

Mais, na Quaresma, com autorização do reitor, P. Miguel Sampaio, havia alunos, já diáconos, que iam ajudar o P. Mendes a distribuir a Sagrada Comunhão pelas muitas enfermarias do hospital. Ainda a cidade dormia e já eles calcorreavam as velhas ruas do Porto histórico. Às 9 horas, estavam novamente no seminário para as aulas. Sem tolerâncias nem desculpas.
Assim, no estudo, na oração e no serviço se iam formando os futuros presbíteros diocesanos.

Nossa mãe é um tesouro



 Aí pelas quatro da tarde do dia 2 de outubro, a tempestade abateu-se sobre a Padrela, serra que se levanta abrupta sobre Vila Pouca de Aguiar e desce suave para as bandas de Murça. Lá nas alturas, bátegas de água fustigavam, impiedosas, a multidão que, vinda de muitas e variadas terras, enchia o adro da capela de Raiz do Monte em Vreia de Jales. A capela de S. João Batista tornara-se pequena para abrigar as muitas pessoas que nela se comprimiam. Mas ninguém arredou pé. Todos queriam prestar a última homenagem à “senhora Aninhas”, mulher de “olhar doce” que, mesmo no sofrimento, tinha um sorriso acolhedor, como disse o jovem pároco que acompanhou a sua longa doença.

Eram de ouro as minas onde seu marido trabalhou e em cujo bairro, em Campo de Jales, criaram os filhos. De ouro era o coração desta “mulher forte”, costureira hábil, que soube criar nove filhos que, depois, se dispersaram por Portugal inteiro mas nunca deixaram de regressar ao berço que os embalou. Antes do funeral, um deles disse: ”andei a vida toda a tentar expulsar Deus da minha vida e nunca o consegui porque sempre regressei ao colo de minha mãe”. E esse regaço falava-lhe de Deus e de Nossa Senhora. Em sua honra, leu o “pranto” que lhe dedicara: “Vem/ ó mãe/água pura/raiz do bem/fonte da ternura/o céu tem o teu rosto/nas estrelas incrustado/e eu trago em mim exposto/teu amor sagrado/mas sou refém/da saudade/que arde/mãe!”

https://mail.google.com/mail/u/0/images/cleardot.gif E foi ele que, no velório, rezou e cantou o “terço”, hinos tradicionais à Virgem e um poema da sua autoria: Querida Mãe de todos nós, fonte de toda a ternura, deixa-nos sentir crianças, dá-nos força e esperanças, traz-nos à tua procura”. Com os amigos da Associação “Os sinos da Sé” de Braga, cantou a missa do funeral. E, no cemitério, por convite seu, cantámos: Coração Virginal de Maria/ Sede luz e guia…”.

O título desta crónica foi-me sugerido pela mensagem que lhe enviou um amigo, missionário no Paraguai. Deixo-a à vossa reflexão.Vi a notícia do falecimento da tua mãe neste dia 1 de Outubro, dia de Santa Teresinha do Menino Jesus, a padroeira das missões. A nossa mãe é um tesouro. A sua partida provoca uma dor que não sabemos explicar. Vivemos muito tempo dentro dela e muitos anos com ela. Guardamos em nosso corpo e no nosso espírito as marcas da sua maternidade. Choras certamente como todos quando lhes é dado viver este momento. Pelo que te ouvi algumas vezes a tua mãe era uma verdadeira missionária. Foi no dia da padroeira das missões, Santa Teresinha, que o Senhor a chamou a si. Para quem não tem fé, é uma simples coincidência; para quem tem fé, é um sinal que Deus premiou o seu ardor missionário e a sua bondade”.

Ser missionário é partilhar a Fé, diz o Santo Padre. Obrigado, ó mães! Que Deus vos agracie.

Deus ainda não disse a sua última palavra



“A vida (dos jovens) acusa uma surdez geral a tudo o que diga respeito a Deus, à fé, à oração, à comunidade. Uma surdez, ainda, aprovada por uma cultura difusa completamente estranha ao Cristianismo que tem influenciado fortemente as novas gerações”. Estas e outras afirmações de Armando Matteo em “A primeira geração incrédula” avolumaram e explicitaram preocupações que, já há muito, me inquietam.

Foi, pois, com redobrado interesse que participei no Colóquio “Deus ainda tem futuro?” que abriu com a palestra “A situação espiritual do nosso mundo” pelo professor Jean-Paul Willaime, “um dos maiores sociólogos das religiões do Mundo”.

Porque os dados da sociologia, sem atenuar razões de inquietação, indicam caminhos para o agir da Igreja e abrem horizontes de esperança, resolvi partilhá-los convosco. Respiguei algumas afirmações que, com vénia, transcrevo.

Começou por dizer “à partida, podemos, aliás, afirmar que os aspetos simbólicos da condição humana, que as representações e as práticas religiosas são, têm um grande futuro pela frente, de tal modo o facto religioso constitui um facto cultural e social massivo, que atravessa os séculos e as culturas”. E acrescentou: “Fechar-se na alternativa opondo uma sociedade religiosa a uma sociedade ateia é um beco sem saída. O desafio do futuro de Deus é também o desafio do seu lugar nas sociedades democráticas, respeitando os direitos de cada um e tendo em conta a pluralidade das religiões e das convicções não religiosas. Uma laicidade bem compreendida é, portanto, uma condição sine qua non do futuro de Deus”.

Após bem fundamentada exposição, concluiu: “As religiões são recursos identitários e éticos que podem exercer um papel positivo nas sociedades democráticas e laicas. (…) As religiões também são fontes de sentido, de solidariedade e de esperança que podem ser tanto mais pertinentes quanto as sociedades ocidentais um pouco desencantadas não estão imunes às derivas que podem pôr em causa o humanismo democrático. O paradoxo seria que as religiões (…) se tornassem os melhores garantes, nomeadamente para assegurar o futuro de um ideal humanista e solidário. Deus não disse ainda a sua última palavra.”

Gostei de ouvir um sociólogo corroborar o que o nosso bispo D. António escrevera nas “Cartas ao Papa”, em setembro de 1983: “Parece-me que as próprias condições de exaustão das civilizações e a necessidade de paz dão ao Evangelho novas oportunidades de aparecer como a boa Nova e aos cristãos o convite a serem homens do futuro”.

Faço minhas as últimas palavras dessa carta: “Cremos e professamos que o Bem supera o Mal, que onde abundou o pecado aí superabundou a Redenção. É isto que dá sentido à História, da qual Deus nos confiou o encargo na Esperança teologal”.

A lenda de São martinho de Vale Longo




Tempos atrás, revisitei o Seminário Maior do Porto dos anos sessenta. Hoje, vou recuar à década anterior quando era reitor o Dr. Domingos de Pinho Brandão, fundador do Museu de Arte Sacra e Arqueologia, e, depois, bispo e professor universitário. E faço-o, recordando o inquérito arqueológico que esse mestre insigne elaborou para toda a diocese. Ignoro quantos se realizaram e onde param. Passados mais de cinquenta anos, poderiam ter grande valor monográfico. Tenho na minha frente esse questionário, datado de 26 de julho de 1957. Das 19 entradas vou, a título de exemplo, transcrever apenas as duas primeiras:

“1.º - Conhecem-se nessa freguesia algumas grutas e cavernas que possam ter sido utilizadas nos tempos pré-históricos: - Algar, Argarinho, Cafurna, Cova, Covela, Coverna, Espiunca, Gruta, Furna, Lage, Lapa, Pala, Buraco dos Mouros, Cova do Lobisomem, Cova do urso, Mina dos Mouros, Poça da Moura Poço do Inferno, etc e ligar-lhes a ideia de serem do tempo dos Mouros ou de terem Moura encantada ou tesouros escondidos? Encontram-se estas ou outras designações semelhantes nessa freguesia, mesmo aplicadas a lugares ou sítios?

2.º - Existem na freguesia: - Cistas, Antas ou Dolmens já reconhecidos e estudados ou não estudados? Como são designados na toponímia local e regional? Existem quaisquer elevações ou montículos de terra, pedras levantadas ou caídas, sítios ou lugares, a que o povo ligue a ideia de habitação ou obra de Mouros, ou Povos Antigos, e a que dê algum dos seguintes nomes: - Anta, Antinha, Antela, Antões, Mama, Mámoa, Mamoa, Meimoa, Mamuela, Mamunha, Mamuinha, Mamona, Meimão, Mamoiro, Mamoalta, Mamaltar, Montilhão, Arca, Arcal, Arcela, Arquinha, Arcanha, Arcainha, Arcêlo, Pedra de Arca, Vilar de Arca, Orca, Tulha, Tumbe, Tumbeirinho, Tumbiadoiro, Madôrra, Madorrinha, Madorrões, Casa dos Mouros, Cova da Moura, Celeiro dos Mouros, Forno ou Fornelo dos Mouros, Lapa dos Mouros, Motas dos Mouros, Pala da Moura, Pedra dos Mouros, Penedo da Moura, Sepultura dos Mouros, Altar, Paradanta, Pedralta, Pedra de Altar, Palorca, Penedos Altos, Penedos das Antas, Penedo de Arcas e outros semelhantes?”

A enumeração exaustiva destas entradas indicia o rigor científico, a honestidade intelectual e a dedicação ao pormenor que o Dr. Brandão cultivava e incutia nos alunos.

Em homenagem a esta ilustre figura da Igreja portuense, convido-o a visitar o museu, instalado numa sala seiscentista do antigo colégio jesuíta, com “um acervo notável, rico e variado” onde sobressai a arte religiosa. Merecem especial destaque a galeria de exposição permanente com peças do século XIII ao XXI, e a “Sala Irene Vilar” com obras desta notável artista falecida no Porto em 2008. A entrada faz-se pela igreja de S. Lourenço (Grilos). Vale a pena!

Apresento, de seguida,
 um excerto do inquérito realizado no concelho de Valongo. Em honra de S. Martinho cuja festa se aproxima.

 “A Pia, que deu nome a toda a serra, é uma cisterna natural, aberta na rocha, no cimo do monte. A tradição diverge acerca da sua origem. Uns dizem que foi S. Martinho que passou por aqueles sítios. Ao chegar ao alto, o cavalo sentiu sede. Então S. Martinho bateu com o bordão naquele penedo e imediatamente se formou uma cavidade na fraga da qual brotou água que a encheu totalmente. Outros dizem que não foi S. Martinho, mas o seu cavalo que abriu a pia com uma patada, por isso, lá estão as duas ferraduras: uma no fundo, da pata que bateu, e outra fora, da pata pousada. Segundo outros, não se tratava de S. Martinho, mas dos mensageiros que tinham ido a Tours buscar relíquias do Santo para a igreja de Cedofeita. No regresso, ao passar pelo lugar onde hoje existe a Pia, sentiram sede. E a tradição agora diverge: alguns dizem que foi nesta ocasião que miraculosamente abriram a Pia para se saciar bem como aos cavalos; segundo outros, a pia, já existente, por matar a sede a tão santos mensageiros, recebeu dons especiais. Sempre que havia uma longa seca, o povo de S. Martinho, com o seu pároco à frente, partia da igreja, em procissão de penitência, para a “serra da Pia”. Chegados lá, escoavam a cisterna que o Senhor Abade limpava com uma toalha de seda. Quando a procissão regressava a meio da encosta, já a chuva caia abundantemente.

Saciados, os mensageiros descansam na planura que lhe fica junto, o chamado “campo de S. Martinho”. E desdobram os seus olhares pelo longo vale que se estendia a seus pés. Uma exclamação de prazer brota da sua alma cansada de tantos dias pelos caminhos das montanhas: “Que vale longo!...” Descem a serra e começam a pregar. Ao partir, gratos pelos dons recebidos, deixam como padroeiro o glorioso São Martinho. Ordenam que se levante uma igreja à qual legam relíquias do Santo. E “baptizam” aquela terra tão acolhedora: Para o futuro chamar-se-á S. Martinho de Vale Longo”.

À guisa de comentário… Ainda na minha infância, no tempo do P. Nogueira, subimos à serra em procissão a rezar para que chovesse. E minha mãe dizia-me: “vento à Pia à chuva assobia”.

Já em 897, um documento falava de “S. Martinho de Vallongo”. Em 1651, aparece como “S. Martinho do Campo de Luriz”. As “Memórias Paroquiais”, de 1758, referem “Sam Martinho do Campo”. Depois, roubaram-lhe o S. Martinho e ficou apenas Campo, mas os seus naturais continuaram a ser “saomartinhenses”. Este ano, o Estado, contra a vontade popular e ao arrepio da História, criou a espúria “União de Freguesias de Campo e Sobrado”!...Quanta ignorância e quão intolerável prepotência!...

Eu quero o Jesus que reza.


 


Em 28 de outubro, o nosso neto, que ainda não fez três anos, foi connosco à missa. Ao ver o acólito anunciar as “intenções”, logo me perguntou: “onde está o Jesus?” Indiquei-lhe uma imagem do altar. - Não é esse. Eu quero o Jesus que reza. Perguntava pelo celebrante. Recordei, então, as palavras de Jesus: “ Da boca dos meninos tirastes o vosso louvor” (Mt 21,16).

Ao ver o sacerdote como “alter Christus”, fez-me lembrar, na ternura da sua inocência, o poema “Deus no sacerdote” de Miguel Trigueiros e o cântico “sacerdote que é na terra outro Jesus”. - “Alter-ego” de que Jesus? - Do Jesus que reza.

X. Léon-Dufour diz que “não há nada no Evangelho que revele melhor a necessidade absoluta da oração que o lugar que ela mesma ocupa na vida de Jesus”. Ele reza com frequência na solidão da montanha: Subiu a montanha para orar na solidão. E, chegando a noite estava lá sozinho (Mt, 14,23). Com os discípulos. Num dia em que Ele estava a orar a sós como os discípulos (Lc9,18). Mesmo quando todos o procuravam: Antes do amanhecer, Ele saiu e foi para um lugar deserto e ali se pôs em oração (Mc,1,35). Para além de buscar a intimidade silenciosa com o Pai, Jesus queria preparar os momentos fortes da Sua missão e do Seu magistério. Esta conexão é clara logo nos quarenta dias do deserto onde se assume como o Moisés da Nova Lei que vence o projeto satânico de tentar a Deus: Não tentarás o Senhor teu Deus (Mt  4,7). Depois, na manifestação da Sua divindade: no batismo Tu és meu Filho bem-amado (Lc 3,21) e na transfiguração (Lc 9,29). Também antes da eleição dos apóstolos (Lc 6,12); quando os ensina a rezar o Pai Nosso (Lc11,1) e na última Ceia (Jo 17,1). Essa ligação entre a oração e a missão de Jesus atinge o seu clímax na solidão do Getsémani: Abba! O Pai! (Mc 14,36).

A. Matteo, ao analisar a situação da Igreja, diz “Se nela entrar uma qualquer pessoa que não saiba rezar, dificilmente encontrará alguém disposto a ensinar-lhe como se reza. E como é importante a oração, sobretudo no nosso tempo… Estamos sempre com pressa, sempre nervosos, sempre distraídos. Ora, a oração irrompe como ar fresco no coração e na mente: é como abrir as janelas do nosso próprio eu e deixarmo-nos inundar pelo ar puro de Deus. Pois bem, onde é que se ensina a rezar? E, se não há oração, não há fé”.

Quão reconfortante é ver um sacerdote a rezar junto ao Santíssimo ou a acompanhar o terço orientado por leigos. Ou ouvir um presbítero dizer que, em terra sem jovens, o essencial da sua pastoral é rezar com os doentes. E aqueloutro que aproveita a solidão para “ler, escrever e rezar”.

Como será difícil a padres sempre a correr de um lado para o outro arranjar tempos de intimidade silenciosa com Deus! E, no entanto, a oração é a flor da espiritualidade. Sem ela…

Um mergulho na história


 


Foi o que me aconteceu quando, tempos atrás, visitei o mosteiro de Grijó.

O Dr. Babosa da Costa, que teve a amabilidade de nos guiar nessas visitas, afirmou que “não pode estudar verdadeiramente a história de Portugal quem desconhecer a história de Grijó”. Deixo aqui alguns retalhos dessa memória.

Em 922, nasceu em terras de Nuno Gonçalves, - guerreiro que auxiliou Afonso III de Leão, na reconquista de Lamego e Viseu, - um pequeno cenóbio que se “integrava na tradição dos pequenos mosteiros familiares do monaquismo ibérico anterior à reforma cluniacense”. Esta modesta existência só foi quebrada nos finais do século XI, quando Soeiro Fromarigues - descendente de Nuno o Velho, morto em Santarém na luta contra os mouros - chamou a si a sua restauração. Em 1132, aderiu à regra dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. D. Teresa deu-lhe carta de Couto e D. Afonso Henriques aumentou-lhe as terras que se estendiam pelo ”Entre Douro e Vouga”. Com o apoio destes e de D. João Peculiar (quem o conhece?), ascendeu à categoria de priorado. A Santa Sé concedeu-lhe proteção apostólica e o prior passou a usar as insígnias episcopais: anel e cruz peitoral, o báculo e a mitra. Esta excessiva e não muito evangélica prosperidade levou a abusos por parte dos descendentes dos seus antigos padroeiros que “espoliavam o mosteiro com exigências de comedorias para eles e famílias, criados, escravos e cães”. Face a estas queixas, D. Pedro reduziu e D. João II extinguiu esses direitos de padroado.

Em 1536, D. João III deixou o padroado do mosteiro para ele se unir à congregação de Sta. Cruz de Coimbra.

No século XVI, os cónegos, alegando que o local era doentio (ou para viver mais próximos do Porto?), transferiram-se para a quinta de Quebrantões, onde fundaram o conhecido Mosteiro da Serra do Pilar. Pouco depois, alguns voltaram para Grijó, tendo o Papa Pio V, em 1560, separado os dois mosteiros. Os cónegos regressados a Grijó encontraram os edifícios muito arruinados e, no desejo de melhorar as suas acomodações, decidiram, em 1564, reconstruir totalmente o mosteiro. É esse, com pequenas alterações, que agora nos acolhe.

Em 1770, por influência do Marquês de Pombal, o Papa Clemente IV determinou a sua extinção e grande parte dos bens passaram para o convento de Mafra. No reinado de D. Maria I, os cónegos regressaram a Grijó. Mas, “em 1834, com a extinção das ordens religiosas, a quinta do mosteiro foi vendida em hasta pública”. A sua cerca ainda hoje testemunha a velha grandeza na imponência dos muros e no porte de suas árvores.

O que resta do Mosteiro que mereça a nossa visita? O que terá levado os gaienses a classificá-lo como uma das “sete maravilhas de Gaia”?




Vamos, agora visitar o mosteiro cuja história já conhecemos. Antes, porém, paremos no “Cruzeiro velho”, o local onde, em 1245, na “lide de Gaia”, morreu D. Rodrigo Sanches cujo túmulo, só por si, justifica uma visita a este mosteiro. No exterior, comecemos por admirar a beleza campesina de Nossa Senhora, da escultora Irene Vilar. Depois, deixemos os olhos subir pela fachada da igreja que se eleva para as alturas em três corpos horizontais. Sobre a galilé, rasga-se um grande janelão central ladeado por dois nichos com S. Pedro e S. Paulo, sobrepostos por janelas. De dentro da igreja, contemple os modernos vitrais, de Júlio Resende, que, tão harmoniosamente, embelezam essas aberturas.

Transposta a galilé, ficamos surpreendidos com amplidão do interior da igreja, de matriz maneirista com aflorações barrocas. O olhar alonga-se pela capela-mor “com revestimento de azulejos em tapete de bela policromia” e deixa-se fascinar pelo fulgor da talha dourada que enriquece o altar-mor e os dois altares do transepto. No retábulo do primeiro, do século XVIII, destacam-se colunas torsas e figuras de anjos entre folhagem, típicas do barroco joanino. Os dois restantes, dos finais do século XVII, com capitéis coríntios, denotam influência renascentista. A riqueza iconográfica torna impossível a sua descrição. Terei, porém, de mencionar, na capela-mor, as imagens de S. Teotónio, cofundador e primeiro prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, e de Santo Agostinho; no transepto, as imagens que dão nome aos altares: Nossa Senhora das Dores e Senhor da Agonia.

O património artístico prolonga-se pelas capelas que ladeiam a nave central. Do lado direito da entrada: capela de S. Sebastião cujo retábulo de madeira imita pedra jaspe; Senhor dos Passos, do século XVIII, de talha dourada e azulejo polícromo; Sª. do Rosário, em talha dourada e revestido de azulejos em azul e branco. A partir do transepto: capela de Santo António com o hábito de “cónego regrante” a lembrar que, com apenas 20 anos, antes de ser franciscano, entrara para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra; de Santa Luzia que possui, também, as imagens dos cinco Mártires de Marrocos e de S. Francisco de Assis; de S. Caetano com uma imagem do século XVII.

E ainda, a sacristia com paredes “revestidas a azulejo em tapete polícromo”; o claustro de duas galerias sobrepostas com colunas jónicas e coríntias, painéis de azulejo representando os evangelistas e doutores da Igreja, e uma fonte do século XVII. Finalmente, o túmulo de D. Rodrigo Sanches, recentemente transferido, uma joia e talvez, “o mais antigo exemplar dos monumentos funerários portugueses a possuir estátua jazente”.

Conheçamos e valorizemos o que é nosso.