Deixem-nos sonhar...
Há dias, quando meu neto - sacramento da presença viva de Deus e da esperança- se entusiasmava
ao ver, na bonita montra da “Voz Portucalense”, livros da Torre dos Clérigos
que, nas suas palavras, “é muito alta, vê-se a cidade toda” e do Papa Francisco
que ”tem o meu nome e um sorriso muito simpático”, um idoso que passava
afagou-lhe a cabeça e, com mágoa na voz e no olhar, disse: “ó meu menino, como
falas bem, mas é pena que tenhas nascido num tempo tão mau”. E eu respondi: “sim,
vivemos numa época de privações, mas, olhe, que, quando nascemos, os dias não
eram melhores. Vim ao mundo com a Segunda Guerra Mundial, em tempo da
meia-sardinha e do naco de broa”. Concordou que também seus pais passaram por
muitas dificuldades. Mourejavam de sol a sol por uma côdea. Lutavam pela vida. Não
passavam o tempo a queixar-se dos outros ou a reclamar direitos. Cultivavam a simplicidade
do essencial. Sentiam-se um elo imprescindível na cadeia de transmissão da vida
Se nossos pais não tivessem sonhado com um futuro melhor, nunca teríamos
nascido.
E, porque “o sonho comanda a vida”, gostaria de partilhar
convosco, neste reinício de atividade, excertos do poema “O direito a sonhar”
de Eduardo Galeano. “O mundo, que hoje está de pernas-para- o- ar, vai ter de
novo os pés no chão. O ar será puro e vai existir apenas a contaminação que
emana dos medos humanos e das humanas paixões. O povo não será programado pelo
computador, nem comprado pelo supermercado, nem visto pela TV. A TV vai deixar
de ser o mais importante membro da família, para ser tratada como um ferro de
passar ou uma máquina de lavar roupa. Os economistas não chamarão de nível de
vida o nível de consumo, nem de qualidade de vida a quantidade de coisas. Os
políticos não vão mais acreditar que os pobres gostam de encher a barriga de
promessas. O mundo não vai estar mais em guerra contra os pobres, mas contra a
pobreza. Ninguém vai morrer de fome, porque não haverá ninguém morrendo de
indigestão. Justiça e liberdade, gémeas siamesas condenadas a viver separadas,
vão estar de novo juntas, bem juntinhas, ombro a ombro. A Igreja vai ditar um
décimo-primeiro mandamento: Amarás a natureza, da qual fazes parte”.
Utopias? E para que servem? São como a linha do
horizonte que, quanto mais avançamos, mais se afasta de nós. Nunca se alcançam
mas ajudam-nos a caminhar. Radicam na vontade e abrem-se à esperança. Sejamos
utópicos. Saibamos agradecer e apreciar as coisas boas que Deus nos dá. Vivamos
“cada noite como se fosse a última” e “cada dia como se fosse o primeiro”. Exijamos
que os nossos políticos sejam sérios e dignos deste povo que, do “Cabo das
Tormentas”, fez “Cabo da Boa Esperança”. E gritemos, como na Catalunha, “Se não
nos deixais sonhar, não vos deixaremos dormir”.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home