A lenda de São martinho de Vale Longo
Tempos atrás, revisitei o Seminário Maior do Porto dos
anos sessenta. Hoje, vou recuar à década anterior quando era reitor o Dr.
Domingos de Pinho Brandão, fundador do Museu de Arte Sacra e Arqueologia, e,
depois, bispo e professor universitário. E faço-o, recordando o inquérito
arqueológico que esse mestre insigne elaborou para toda a diocese. Ignoro
quantos se realizaram e onde param. Passados mais de cinquenta anos, poderiam
ter grande valor monográfico. Tenho na minha frente esse questionário, datado
de 26 de julho de 1957. Das 19 entradas vou, a título de exemplo, transcrever
apenas as duas primeiras:
“1.º - Conhecem-se nessa freguesia
algumas grutas e cavernas que possam ter sido utilizadas nos tempos pré-históricos:
- Algar, Argarinho, Cafurna, Cova, Covela, Coverna, Espiunca, Gruta, Furna,
Lage, Lapa, Pala, Buraco dos Mouros, Cova do Lobisomem, Cova do urso, Mina dos
Mouros, Poça da Moura Poço do Inferno, etc e ligar-lhes a ideia de serem do
tempo dos Mouros ou de terem Moura encantada ou tesouros escondidos?
Encontram-se estas ou outras designações semelhantes nessa freguesia, mesmo
aplicadas a lugares ou sítios?
2.º - Existem na freguesia: - Cistas,
Antas ou Dolmens já reconhecidos e estudados ou não estudados? Como são
designados na toponímia local e regional? Existem quaisquer elevações ou
montículos de terra, pedras levantadas ou caídas, sítios ou lugares, a que o
povo ligue a ideia de habitação ou obra de Mouros, ou Povos Antigos, e a que dê
algum dos seguintes nomes: - Anta, Antinha, Antela, Antões, Mama, Mámoa, Mamoa,
Meimoa, Mamuela, Mamunha, Mamuinha, Mamona, Meimão, Mamoiro, Mamoalta,
Mamaltar, Montilhão, Arca, Arcal, Arcela, Arquinha, Arcanha, Arcainha, Arcêlo,
Pedra de Arca, Vilar de Arca, Orca, Tulha, Tumbe, Tumbeirinho, Tumbiadoiro,
Madôrra, Madorrinha, Madorrões, Casa dos Mouros, Cova da Moura, Celeiro dos
Mouros, Forno ou Fornelo dos Mouros, Lapa dos Mouros, Motas dos Mouros, Pala da
Moura, Pedra dos Mouros, Penedo da Moura, Sepultura dos Mouros, Altar,
Paradanta, Pedralta, Pedra de Altar, Palorca, Penedos Altos, Penedos das Antas,
Penedo de Arcas e outros semelhantes?”
A enumeração exaustiva destas entradas
indicia o rigor científico, a honestidade intelectual e a dedicação ao pormenor
que o Dr. Brandão cultivava e incutia nos alunos.
Em homenagem a esta ilustre figura da Igreja
portuense, convido-o a visitar o museu, instalado numa sala seiscentista do
antigo colégio jesuíta, com “um acervo notável, rico e variado” onde sobressai
a arte religiosa. Merecem especial destaque a galeria de exposição permanente
com peças do século XIII ao XXI, e a “Sala Irene Vilar” com obras desta notável
artista falecida no Porto em 2008. A entrada faz-se pela igreja de S. Lourenço
(Grilos). Vale a pena!
Apresento, de seguida,
um excerto do inquérito realizado no concelho de Valongo. Em honra de
S. Martinho cuja festa se aproxima.
“A Pia, que deu nome a toda a serra, é uma
cisterna natural, aberta na rocha, no cimo do monte. A tradição diverge acerca
da sua origem. Uns dizem que foi S. Martinho que passou por aqueles sítios. Ao
chegar ao alto, o cavalo sentiu sede. Então S. Martinho bateu com o bordão
naquele penedo e imediatamente se formou uma cavidade na fraga da qual brotou
água que a encheu totalmente. Outros dizem que não foi S. Martinho, mas o seu
cavalo que abriu a pia com uma patada, por isso, lá estão as duas ferraduras:
uma no fundo, da pata que bateu, e outra fora, da pata pousada. Segundo outros,
não se tratava de S. Martinho, mas dos mensageiros que tinham ido a Tours
buscar relíquias do Santo para a igreja de Cedofeita. No regresso, ao passar
pelo lugar onde hoje existe a Pia, sentiram sede. E a tradição agora diverge:
alguns dizem que foi nesta ocasião que miraculosamente abriram a Pia para se
saciar bem como aos cavalos; segundo outros, a pia, já existente, por matar a
sede a tão santos mensageiros, recebeu dons especiais. Sempre que havia uma
longa seca, o povo de S. Martinho, com o seu pároco à frente, partia da igreja,
em procissão de penitência, para a “serra da Pia”. Chegados lá, escoavam a
cisterna que o Senhor Abade limpava com uma toalha de seda. Quando a procissão
regressava a meio da encosta, já a chuva caia abundantemente.
Saciados, os mensageiros descansam na planura que
lhe fica junto, o chamado “campo de S. Martinho”. E desdobram os seus olhares
pelo longo vale que se estendia a seus pés. Uma exclamação de prazer brota da
sua alma cansada de tantos dias pelos caminhos das montanhas: “Que vale longo!...”
Descem a serra e começam a pregar. Ao partir, gratos pelos dons recebidos,
deixam como padroeiro o glorioso São Martinho. Ordenam que se levante uma
igreja à qual legam relíquias do Santo. E “baptizam” aquela terra tão
acolhedora: Para o futuro chamar-se-á
S. Martinho de Vale Longo”.
À guisa de comentário… Ainda na minha infância, no
tempo do P. Nogueira, subimos à serra em procissão a rezar para que chovesse. E
minha mãe dizia-me: “vento à Pia à chuva assobia”.
Já em 897, um documento falava de “S. Martinho de
Vallongo”. Em 1651, aparece como “S. Martinho do Campo de Luriz”. As “Memórias
Paroquiais”, de 1758, referem “Sam Martinho do Campo”. Depois, roubaram-lhe o
S. Martinho e ficou apenas Campo, mas os seus naturais continuaram a ser
“saomartinhenses”. Este ano, o Estado, contra a vontade popular e ao arrepio da
História, criou a espúria “União de Freguesias de Campo e Sobrado”!...Quanta
ignorância e quão intolerável prepotência!...
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