O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, novembro 26, 2013

A lenda de São martinho de Vale Longo




Tempos atrás, revisitei o Seminário Maior do Porto dos anos sessenta. Hoje, vou recuar à década anterior quando era reitor o Dr. Domingos de Pinho Brandão, fundador do Museu de Arte Sacra e Arqueologia, e, depois, bispo e professor universitário. E faço-o, recordando o inquérito arqueológico que esse mestre insigne elaborou para toda a diocese. Ignoro quantos se realizaram e onde param. Passados mais de cinquenta anos, poderiam ter grande valor monográfico. Tenho na minha frente esse questionário, datado de 26 de julho de 1957. Das 19 entradas vou, a título de exemplo, transcrever apenas as duas primeiras:

“1.º - Conhecem-se nessa freguesia algumas grutas e cavernas que possam ter sido utilizadas nos tempos pré-históricos: - Algar, Argarinho, Cafurna, Cova, Covela, Coverna, Espiunca, Gruta, Furna, Lage, Lapa, Pala, Buraco dos Mouros, Cova do Lobisomem, Cova do urso, Mina dos Mouros, Poça da Moura Poço do Inferno, etc e ligar-lhes a ideia de serem do tempo dos Mouros ou de terem Moura encantada ou tesouros escondidos? Encontram-se estas ou outras designações semelhantes nessa freguesia, mesmo aplicadas a lugares ou sítios?

2.º - Existem na freguesia: - Cistas, Antas ou Dolmens já reconhecidos e estudados ou não estudados? Como são designados na toponímia local e regional? Existem quaisquer elevações ou montículos de terra, pedras levantadas ou caídas, sítios ou lugares, a que o povo ligue a ideia de habitação ou obra de Mouros, ou Povos Antigos, e a que dê algum dos seguintes nomes: - Anta, Antinha, Antela, Antões, Mama, Mámoa, Mamoa, Meimoa, Mamuela, Mamunha, Mamuinha, Mamona, Meimão, Mamoiro, Mamoalta, Mamaltar, Montilhão, Arca, Arcal, Arcela, Arquinha, Arcanha, Arcainha, Arcêlo, Pedra de Arca, Vilar de Arca, Orca, Tulha, Tumbe, Tumbeirinho, Tumbiadoiro, Madôrra, Madorrinha, Madorrões, Casa dos Mouros, Cova da Moura, Celeiro dos Mouros, Forno ou Fornelo dos Mouros, Lapa dos Mouros, Motas dos Mouros, Pala da Moura, Pedra dos Mouros, Penedo da Moura, Sepultura dos Mouros, Altar, Paradanta, Pedralta, Pedra de Altar, Palorca, Penedos Altos, Penedos das Antas, Penedo de Arcas e outros semelhantes?”

A enumeração exaustiva destas entradas indicia o rigor científico, a honestidade intelectual e a dedicação ao pormenor que o Dr. Brandão cultivava e incutia nos alunos.

Em homenagem a esta ilustre figura da Igreja portuense, convido-o a visitar o museu, instalado numa sala seiscentista do antigo colégio jesuíta, com “um acervo notável, rico e variado” onde sobressai a arte religiosa. Merecem especial destaque a galeria de exposição permanente com peças do século XIII ao XXI, e a “Sala Irene Vilar” com obras desta notável artista falecida no Porto em 2008. A entrada faz-se pela igreja de S. Lourenço (Grilos). Vale a pena!

Apresento, de seguida,
 um excerto do inquérito realizado no concelho de Valongo. Em honra de S. Martinho cuja festa se aproxima.

 “A Pia, que deu nome a toda a serra, é uma cisterna natural, aberta na rocha, no cimo do monte. A tradição diverge acerca da sua origem. Uns dizem que foi S. Martinho que passou por aqueles sítios. Ao chegar ao alto, o cavalo sentiu sede. Então S. Martinho bateu com o bordão naquele penedo e imediatamente se formou uma cavidade na fraga da qual brotou água que a encheu totalmente. Outros dizem que não foi S. Martinho, mas o seu cavalo que abriu a pia com uma patada, por isso, lá estão as duas ferraduras: uma no fundo, da pata que bateu, e outra fora, da pata pousada. Segundo outros, não se tratava de S. Martinho, mas dos mensageiros que tinham ido a Tours buscar relíquias do Santo para a igreja de Cedofeita. No regresso, ao passar pelo lugar onde hoje existe a Pia, sentiram sede. E a tradição agora diverge: alguns dizem que foi nesta ocasião que miraculosamente abriram a Pia para se saciar bem como aos cavalos; segundo outros, a pia, já existente, por matar a sede a tão santos mensageiros, recebeu dons especiais. Sempre que havia uma longa seca, o povo de S. Martinho, com o seu pároco à frente, partia da igreja, em procissão de penitência, para a “serra da Pia”. Chegados lá, escoavam a cisterna que o Senhor Abade limpava com uma toalha de seda. Quando a procissão regressava a meio da encosta, já a chuva caia abundantemente.

Saciados, os mensageiros descansam na planura que lhe fica junto, o chamado “campo de S. Martinho”. E desdobram os seus olhares pelo longo vale que se estendia a seus pés. Uma exclamação de prazer brota da sua alma cansada de tantos dias pelos caminhos das montanhas: “Que vale longo!...” Descem a serra e começam a pregar. Ao partir, gratos pelos dons recebidos, deixam como padroeiro o glorioso São Martinho. Ordenam que se levante uma igreja à qual legam relíquias do Santo. E “baptizam” aquela terra tão acolhedora: Para o futuro chamar-se-á S. Martinho de Vale Longo”.

À guisa de comentário… Ainda na minha infância, no tempo do P. Nogueira, subimos à serra em procissão a rezar para que chovesse. E minha mãe dizia-me: “vento à Pia à chuva assobia”.

Já em 897, um documento falava de “S. Martinho de Vallongo”. Em 1651, aparece como “S. Martinho do Campo de Luriz”. As “Memórias Paroquiais”, de 1758, referem “Sam Martinho do Campo”. Depois, roubaram-lhe o S. Martinho e ficou apenas Campo, mas os seus naturais continuaram a ser “saomartinhenses”. Este ano, o Estado, contra a vontade popular e ao arrepio da História, criou a espúria “União de Freguesias de Campo e Sobrado”!...Quanta ignorância e quão intolerável prepotência!...