País de brandos costumes?
Ao ouvir um cd para crianças, duas letras me chamaram a atenção. Trata-se do muito popular “Sebastião come tudo, tudo, tudo (…) E depois dá pancada na mulher”. Este verso tem uma nova versão: “E depois dá beijinhos na mulher”. Alteração similar se encontra na canção “O mar enrola na areia”. O verso “ ai bate nela quando quer” é substituído por “pode vê-la quando quer”.
“Mea culpa”. Quantas vezes, cantei aqueles versos sem qualquer abalo da consciência! Nem me apercebia das barbaridades que estava a dizer, tal a força da tradição.
Quando me congratulava com esta benéfica mudança de mentalidades, fui abalado pela notícia do JN (23/11): “Violência doméstica já matou 30 mulheres só neste ano. (…) O número já é superior ao total do ano passado, mas as participações às forças de segurança estão a baixar. Quer por medo de represálias do agressor e desilusão com o sistema, quer por efeito da crise económica, do desemprego e dos cortes nos apoios que aumentam a vulnerabilidade das mulheres”. Um massacre que nos revolta e interpela. Está em marcha uma ”campanha nacional de sensibilização contra este flagelo”. O Advento é propício à introspeção, à coragem e à mudança de vida. Denunciar as injustiças é também missão dos cristãos.
E não se podem ignorar outras formas mais sub-reptícias de violência:
- Ameaçar que irá matar ou provocar lesões a si mesmo ou ao outro, cortar na mesada, abandonar o lar;
- Destruir os objetos do outro ou da casa, maltratar os animais de companhia, estragar os momentos festivos, atemorizar com palavrões, murros na mesa e outros gestos agressivos;
- Fazer com que o outro se sinta mal consigo mesmo e mentalmente diminuído ou culpado, humilhá-lo, inferiorizá-lo junto de amigos, obrigá-lo a tomar atitudes que, por cobardia, não quer assumir, fazer-se de vítima, ser violento ou fazer chantagem de índole sexual;
- Controlar o outro, as suas amizades, com quem fala, o que lê, as deslocações, o que veste, dificultar contactos com a família, obrigá-lo a cortar com velhos amigos, usar o ciúme como justificação, simular doenças;
- Fazer o outro sentir-se culpado relativamente aos filhos, usá-los para passar mensagens, ameaçar levá-los de casa, denegrir o outro junto dos filhos ou amigos, aliciá-los em seu favor;
- Tratar a mulher como criada, mesmo quando convida amigos para casa, tomar sozinho as decisões mais importantes da família, exigir “ser tratado como um senhor”, não reconhecer a violência dos seus atos;
- Evitar que o outro tenha um emprego; forçar o pedido de dinheiro; apossar-se do dinheiro do outro.
“Mas somos bons homens” diz o “silva” do romance a máquina de fazer espanhóis de Valter Hugo Mãe. Assim, não. Estes não pertencem, certamente, aos apregoados brandos costumes.
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