A serenidade no ajudar
Quando
me foi proposto o tema, comecei por reler o Evangelho (Lc
10,30)
que fala de um homem que caiu nas mãos de salteadores que o deixaram “meio
morto” e de um sacerdote e um levita que não lhe prestaram qualquer ajuda.
Interroguei-me: O que estará na origem deste facto? Ter-se-ão apercebido? O
evangelho diz apenas “viu e passou adiante”. Desciam de Jerusalém onde
trabalhariam. Dirigir-se-iam para suas casas. Que preocupações lhes encheriam a
mente? Que medos os atormentariam? Não iriam tão absortos que nem se aperceberam
da gravidade da situação? Pensemos em nós. Não é verdade que, por vezes,
andamos tão angustiados com a vida que nem reparamos no rosto triste de um
amigo, no silêncio de um filho, nos olhos húmidos de nossa esposa? Simplesmente
porque estamos enclausurados na nossa intimidade a remoer angústias? Falta-nos
serenidade interior para prestar atenção ao que nos rodeia.
O
texto sagrado fala-nos ainda do samaritano que “viu e moveu-se de compaixão” e
ajudou-o na medida das suas necessidades. Sem exageros… Desceu do cavalo,
tratou-lhe as feridas, deixou-o numa estalagem, comprometendo-se a pagar o que
fosse preciso pelo seu tratamento. E continuou viagem. O seu gesto faz-nos pensar
na serenidade que se exige a quem deseja ajudar alguém. É que há pessoas que,
embora bem-intencionadas, se tornam incómodas e intrometidas. Fazem-me lembrar
aquele jovem escuta que, para cumprir a sua “boa ação diária”, ajudou uma velhinha a atravessar a
passadeira. Só que ela não ia atravessar a rua porque seguia em sentido
contrário… E também aquele moleiro que, ao montar a mula, disse “Deus me ajude…”.
E, ao cair do outro lado devido ao exagero do impulso, acrescentou:” …Mas não
tanto”…. Há pessoas a quem apetece dizer: ajude… mas não tanto. Na ânsia de ser
úteis, não veem que estão a ultrapassar os limites. Até nas ofertas e nos
gestos de delicadeza pode haver violência… A ajuda deve ser proporcional à
necessidade e nunca pode invadir a intimidade do outro nem afetar a sua autonomia.
Ajudar, sim, mas com equilíbrio para que a virtude não se transforme em vício.
Razão tinha o grande Aristóteles que escreveu: “Sendo assim, um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta,
buscando e preferindo o justo meio. Estou falando da virtude, pois é esta que
se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e justa medida”.
E Séneca, filósofo latino, contemporâneo de Jesus, que dizia: Toda a virtude assenta na justa medida, e a
justa medida baseia-se em proporções determinadas. É
neste sentido que deve ler-se o que diz a Bíblia (Ecl 7, 16)
“Não sejas justo excessivamente, nem sábio além da medida. Por que te tornarias
estúpido”. Assim julgo poder interpretar o
que dizia um notável bispo do Porto: “Fico sempre receoso quando alguém me diz eu sou muito religioso. É que a religião deve ser como o sal na comida: nem de mais nem de
menos mas na justa proporção”.
Há situações em que este equilíbrio se torna mais difícil.
- É bom que os pais ajudem os
filhos mas sem nunca os substituir, nem infantilizar ou tornar
paterno-dependentes. O perigo cresce quando casam e se redobram as
atenções. Cuidado. Ajudar sim, mas apenas quando eles solicitarem. Há
matrimónios que se desfazem devido à demasiada intromissão da família. O
perigo redobra nos nossos tempos em que muitos filhos casados, por razões
económicas, voltam a viver com os pais. Ajudá-los, sim, mas sem interferir
na sua autonomia: não voltam a ser solteiros…
- É bom que nos preocupemos
com um amigo em hora de desgraça. Mas atenção. Há momentos em que as
palavras estão a mais. Sei de uma mãe que, cansada de ouvir a amiga dizer;
“tem paciência, foi a vontade de Deus”, rebentou em lágrimas e explodiu:
que Deus é esse que quer o meu filho ali morto no caixão enquanto o teu
ainda hoje te convidou para almoçar! Não. Esse não é o meu Deus”. Como é
reconfortante, nessas horas, a presença dum amigo, disposto a partilhar
dos nossos silêncios…
- Quão digno de louvor é quem
cuida de idosos. Exerce a sublime missão de apoiar aqueles em quem e por
quem Deus fez maravilhas. São tesouros em vasos de vidro: o invólucro é
frágil mas a joia é preciosa. Também aqui é preciso adequar a ajuda ao seu
ritmo e não esquecer a sua experiência de vida. Lembro aquela senhora que
entrou para um lar de idosos e, logo no dia seguinte, uma funcionária veio
dizer-lhe que estava na hora da ginástica. Perante a insistência, suplicou:
“ó menina, toda a vida fui criada de servir, cansei-me a correr de um lado
para o outro. Agora, ao menos, deixe-me ficar aqui a descansar”.
Devido às muitas preocupações, nem sempre se respeita a identidade, a
intimidade, a autonomia, os silêncios, os laços afetivos dos idosos. Eu sei que
fazê-lo não é tarefa fácil porque exige disponibilidade de tempo e muita paz
interior. Coisas que, nestes tempos conturbados, não abundam.
Em síntese… A repetição de atos, consciente e
deliberadamente assumidos, criam hábitos. E estes, à medida que se
interiorizam, vão dando origem às atitudes que nos predispõem para um agir mais
fácil e consistente. Assim, à medida que, no dia-a-dia, repetimos gestos de ajuda
bem ajustada e tranquila vamos fortalecendo a nossa serenidade interior. Ajudar
é bom. Saber ajudar é sublime.
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