O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, fevereiro 23, 2022

PRÉMIO NOBEL DA PAZ

“Eu não quero ir para a prisão. Mas se for para a prisão por pregar o evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, que assim seja.”(Desmond Tutu) Faleceu no passado dia 26 de dezembro. Ativista anti-apartheid e dos direitos humanos, foi o primeiro arcebispo negro da Cidade do Cabo e o primeiro negro secretário-geral do Conselho Sul-Africano de Igrejas. Em 1984 recebeu o Prémio Nobel da Paz pela sua resistência não-violenta ao regime do apartheid; em 1986, o Prémio Albert Schweitzer para o Humanitarismo e, em 2005, o Prémio Gandhi da Paz. Após as eleições de 1994 presidiu à “Comissão para a Verdade e Reconciliação” que investigou os crimes da era do apartheid. A morte deste paladino da resistência pacífica e da reconciliação das pessoas e dos povos, levou-me a reler as três cartas que Nelson Mandela lhe escrevera da prisão. . A primeira, estava na ‘Prisão de Segurança Máxima de Pollsmoor’ (6/8/1984), e, procurando iludir a apertada vigilância a que estava sujeito, endereça-a a Trevor Tutu, filho de Desmond e Leah Tutu, com um pedido: “Ao longo dos últimos dez anos, não há praticamente nada que eu não tenha feito para entrar em contacto com o teu pai, mas todos os meus esforços têm sido em vão. Se esta carta chegar às tuas mãos, quero que ele saiba que é o mais próximo dele que consigo chegar.” ” (“As Cartas da Prisão de Nelson Mandela, página 539) A tentativa não resultou porque a carta foi retida pelo diretor da prisão que, por telex, a enviou ao Comissário das Prisões dizendo: “O preso continua a tentar estabelecer contacto com o Bispo Desmond Tutu. Agora escreve ao filho”. (Obr. cit. pág. 538) .Na segunda, (17/1/89), saúda Leah e Mpilo (nome africano de Desmond Tutu) e afirma: “Sois amplamente conhecidos como um casal que se preocupa com a sorte dos outros e que tem servido o nosso povo e o nosso país com notável coragem e humildade.” (Ob. cit, página 623) .A última (21/8/89), a mais longa, começa assim: “Caros Desmond e Leah, Vocês andam tão atarefados a viajar dentro e fora do país que poucos poderiam imaginar que encontram tempo para cuidar das esperanças e desesperanças, dos sonhos e frustrações, das alegrias e festejos dos outros; e no entanto, é um papel que desempenham na perfeição”. Estas palavras trazem-me ecos da Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem…”. Para, a seguir, confessar: “ Ao longo dos séculos, e em todos os países, a religião tem sido uma das forças mais poderosas da sociedade, e pode ser que sempre assim continue. Mas há homens e mulheres que têm a capacidade de a tornar ainda mais relevante”. E termina com palavras de reconhecimento e gratidão: “As Igrejas da África do Sul têm dado um contributo substancial no combate por mudanças concretas neste país, e a Igreja da Província (Igreja Anglicana) tem um lugar de honra nessa galeria. A sua consistência e frontalidade nas questões de âmbito nacional servem de inspiração para todos nós” (Obr. cit, página 652). Nelson Mandela e Desmond Tutu eram de tal modo solidários nos seus valores que, por vezes, surgiam episódios como o que este contou: “Um dia, em São Francisco, eu estava sentado em silêncio no meu canto, quando uma mulher me abordou. Visivelmente emocionada, cumprimentou-me com um Olá, Arcebispo Mandela”. (23/2/2022)

quarta-feira, fevereiro 16, 2022

NO RESCALDO DAS ELEIÇÕES

“Vou abster-me.”, ouviu-se, repetidamente nas últimas eleições…Abster-me? De quê? Da política, não é certamente… É vulgar dizer-se que o ‘homem é um animal social’. Porém, o grande filósofo Aristóteles foi mais longe e definiu o homem como um ‘animal político’ (zoon politikon). Qual a diferença? Podemos classificar como sociais os animais que estabelecem relações de interação com os membros da sua espécie, formando grupos. Já animal político pressupõe a existência dum poder organizado, com uma distinção clara entre quem manda e quem obedece. Só o homem o é. Se não, vejamos… Na dimensão filogenética (evolução da espécie), sabemos que o homem primitivo que vivia da recolha de frutos, raízes e pequenos animais começou por fazer parte duma família que se foi alargando até formar o clã que, mais tarde, dará origem à Nação: os seus membros estão unidos por laços de parentesco, afetividade, cultura, tradições, língua... Quando começou a caçar grandes animais teve necessidade de formar grupos para conseguir dominar animais bem mais fortes que ele. A caça em grupo exigia uma liderança forte e o melhor caçador assumiu o poder. Assim nasceu a tribo que está na origem do Estado - sociedade politicamente organizada com órgãos soberanos e aparelhos de persuasão (escolas) e de repressão (tribunais): Estado Português, Estado Francês…. Os seus membros estão unidos pelos laços do poder. Segundo a etimologia, político é tudo o que diz respeito à ‘polis’ (cidade), ou seja, ao Estado que goza duma dupla soberania: interna - todas as pessoas e instituições do seu território obedecem às suas leis - e externa – nenhum outro Estado pode interferir nos seus assuntos - o que levou à criação de fronteiras que são linhas imaginárias que limitam e separam os Estados. A Nação não tem fronteiras. Que o digam os naturais de Tourém, Rio de Onor ou Barrancos… Na dimensão ontogenética (evolução do indivíduo), logo que somos gerados, entramos no domínio do poder político que, através na nossa mãe, já interfere na nossa vida. Quando nascemos, somos, obrigatoriamente, registados e recebemos um número de cidadão que nos identificará ao longo da vida. Passamos a fazer parte dum Estado. Por isso, todos os nossos atos cívicos têm um significado político. A este propósito, lembro o escritor Agostinho Caramelo. Um dia, quis ir à Galiza com a família e foi impedido porque, na fronteira, a GNR pediu-lhe a documentação da sua filha recém-nascida e ele não a levava consigo. Dizia-me ele: -“Eu nem tinha pensado nisso… Fiquei a saber que a filha não era só nossa…” Pertencemos a um Estado, quer queiramos quer não. O que varia é o seu regime político que pode ser autocrático ou democrático. Nas autocracias (poder do próprio), o detentor do poder soberano recebe-o por herança, nomeação, cooptação, conquista e considera-o sua propriedade. Nas democracias (poder do povo), quem exerce o poder sabe que o faz por delegação dos cidadãos que o escolheram em eleições livres e universais. Não é dono do poder mas um simples mandatário. Em que regime quero viver? Então, porquê abster-me de expressar a minha opinião através do voto? Se não me identifico com nenhum partido, tenho sempre a possibilidade de recorrer ao ‘voto em branco’ – a forma mais inequívoca de afirmar o meu protesto. Abdicar do voto é um ato político de quem não cumpre um dever de cidadania e recusa o direito que está na base da democracia e muito custou a ganhar. (16/2/2022)

quarta-feira, fevereiro 09, 2022

COMO LAVANDISCAS...

A emoção invade-me quando assisto a um concerto de música clássica e conduz-me a uma introspeção que me leva por caminhos de interioridade e transcendência. Foi o que me aconteceu no dia 1 de dezembro, no ‘Recital de Piano’ que alunos da Academia de Música de Costa Cabral nos ofereceram no Auditório Municipal de Gondomar. A leveza daqueles dedos tão jovens a levitar sobre o teclado trouxe-me à lembrança o adejar das lavandiscas sobre as leivas das terras lavradas de fresco. E a beleza com que interpretavam obras de Bach levou-me até à “Igreja São Tomás” em Leipzig, famosa por nela ter trabalhado e estar sepultado este famoso compositor alemão. Aí, na memória e na arte, pairavam as sombras da morte. Aqui, numa espécie de contemplação, senti a sua vida transfigurada. Face a esta força vivífica da música, muitas perguntas me afluíram à mente. Em busca de respostas, fui ler, no volume V – ‘Da Música’- das “Obras Completas de Eduardo Lourenço”, as reflexões desse ‘gigante do pensamento português’ falecido havia um ano (1/12/2020). Quero, agora, partilhar convosco alguns dos seus apontamentos. Para que possais desfrutar, no silêncio, da profundidade do seu pensamento e da beleza da sua palavra, limitar-me-ei a perguntar. O que é a arte? “A Arte é o imerecido beijo da nossa ressurreição, o estranho beijo que a alma adormecida dos homens se dá a si mesma para despertar do encantamento mortal da floresta da vida.” (pag. 117) E a Música? “Música – linguagem universal que vai do coração ao coração. Revelação de tudo o que os homens trazem na alma sem o poder exprimir.”(pag. 69) Que lugar para a emoção na fruição musical? “Ora nada mais propício do que a Música para justificar o abismo que há entre senti-la e compreendê-la. Sentir é o grau ínfimo da apropriação: é só um ouvir com sentimentos possíveis de prazer, desprazer, deleite ou aborrecimento, em suma, um ouvir gostando ou não gostando.”(pag. 59) “O céu não será céu se lá não tocar João Sebastião Bach (…) as lágrimas correm sem vergonha na minha face de homem rendido e humilde e o cântico imortal rasga a minha carne até lá onde eu gosto de imaginar que está o mais profundo que me sustenta, com o grito inexplicável do chamamento à única presença que desde a infância eu sei que importa à minha vida.” (pag. 50) Será a música o limiar do divino? “Certamente se um dia voltar para Deus a nenhuma outra coisa o deverei senão a estas estradas de uma melancolia lancinante que desde o canto gregoriano até Messiaen devoraram em mim o sentimento da realidade do mundo visível. O que as palavras mesmo sagradas não conseguem a fabulosa arquitectura de um Requiem o alcança misteriosamente (…) Se nada mais ficasse da civilização passada que a música dos Bachs, dos Mozarts, dos Brahms, isso bastaria para que a ideia de Deus fosse imperecível na memória humana.” (pág. 93) “Através da música não só nos reapropriamos das delícias supostas do paraíso perdido, mas inventamos para ela caminhos que a sua perfeição dispensava e a que a nossa imaginação recorre para ascender de novo a esses céus que nem nos lembrariam, se Bach e os seus émulos não nos construíssem com as suas notas a única escada de Jacob plantada nos nossos corações para iluminar a vida.”(pag.175) Que bom!...Já o insigne teólogo Hans Urs von Balthasar dizia que a beleza “é a primeira forma de Deus nos atrair”. (9/2//2022)

quarta-feira, fevereiro 02, 2022

SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

O texto publicado na VP a propósito da morte do cardeal Alexandre dos Santos, arcebispo emérito de Maputo, fez-me rebobinar o tempo e recordar o Dr. Franclim que conheci em 1973, na faculdade de filosofia de Braga, onde foi meu professor. Jamais o esqueci: simples, acolhedor, discreto, afável, sorriso no rosto. Dizia-se à boca pequena que Salazar o proibira de regressar a Angola, e que não podia sair de Braga. Nossos caminhos não mais se cruzaram. Só em 2006, aquando da sua morte, soube que, após a independência de Angola, tinha regressado à sua terra de Cabinda e, em 1975, fora ordenado bispo. Nomeado arcebispo de Huambo em 1977 aí permaneceu até que, em 1986, foi transferido para a arquidiocese de Lubango. Estas memórias levaram-me a recordar a conferência “As missões cristãs nas colónias portuguesas de África – submissão e resistência ao Colonialismo durante o Estado Novo” que havia lido no 7Margens. Nela, Frei José Nunes, dizia: “O Arcebispo de Luanda, D. Moisés Alves de Pinho - natural de Fiães, Feira - sempre defendeu o seu Vigário Geral, Padre Manuel das Neves, mas isso não impediu a sua vinda forçada para Portugal, aliás como o P. Manuel Franklin, ambos acabando por ser ‘colocados’ com residência fixa em Braga”. Nessa conferência, o autor afirmou que as “sucessivas teologias da missão são facilmente reconhecíveis na presença de três igrejas no contexto colonial lusófono. Poderíamos designá-las por Igreja colonial (ou Igreja dos brancos), Igreja evangelizadora (ou Igreja dos autóctones) e Igreja profética (ou Igreja da resistência). A propósito da “Igreja profética” em Moçambique, destacou a ação doutro bispo natural da Feira – Milheirós de Poiares - D. Sebastião Soares de Resende que, em 1944, escreveu: «impera a escravatura na Beira! Não há maneira de se convencerem de que os pretos são pessoas humanas», e, em 1956, disse: «A escravatura existe em Moçambique, não há dúvida, e em forma bem rígida». Frei José Nunes afirmou ainda que, em 1967, o bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, também ele natural da nossa diocese – Aboim, Amarante -,“deu continuidade à acção de D. Sebastião, o que lhe valeu forte repressão e vigilância por parte do Estado Novo”. Continuando em Moçambique, realçou ainda “as denúncias que os chamados ‘padres do Macuti’ fizeram dos massacres de Mukumbura em Novembro de 1971”, e não esqueceu o Padre Adrian Hastings que deu a conhecer “os horrendos massacres de Wiriyamu” em Dezembro de 1972. Já no que respeita a Angola, realçou que a PIDE, em 1961, expulsou e exilou em Portugal “três padres, professores no Seminário Maior de Luanda” com destaque para Joaquim Pinto de Andrade que esteve preso no Aljube e Alexandre do Nascimento que, “vinte anos mais tarde, foi feito arcebispo e cardeal de Luanda”. E, em jeito de síntese, concluiu: “A Igreja conheceu momentos de grande entendimento e submissão ao ‘Estado Novo’ mas também assumiu posturas críticas de profundo distanciamento das políticas governamentais”. A mesma atitude se verificou na Metrópole. E ficaram bem conhecidos os nomes mais proeminentes desta dicotomia…(2/2/2022)