O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, setembro 27, 2023

MARROCOS - TERRA MÁRTIR - I

Se perguntasse qual o país, depois de Espanha, mais próximo de Portugal, certamente que alguém diria: França. Mas, bem mais perto fica Marrocos a pouco mais de quinhentos quilómetros do Algarve. Para além da geografia, também a história nos aproxima… Por lá e por cá, passaram fenícios, gregos e cartagineses, romanos e vândalos. A história marroquina começa nos finais do século VIII com a conquista árabe. Os Almorávidas, no século X – a que sucederam os Almóadas no século XII - fundaram um grande império com base no atual território marroquino que chegou à nossa terra e entrou na nossa história. No início do século XV, fomos nós que invadimos as suas terras com a conquista de Ceuta em 1415 a que outras se seguiram. Deixámos marcas no seu litoral que ainda perduram. “Marrocos - Sismo violento faz mais de 2 000 mortos.” (JN, 10/9/2023) “Foi sentido em Portugal e Espanha” (DN/Lusa, 14/9) Esta tragédia que, segundo a ONU, terá atormentado mais de 300 mil pessoas e destruído muitas povoações, levou-me a partilhar convosco a viagem que, na Páscoa passada, fizemos a essa terra martirizada: já em 1960, no terramoto de Agadir, morreram mais de 15 000 pessoas. Após pouco mais de uma hora de voo, aterrámos em Marraquexe. Fundada pelos Almorávidas no séc. XI, a segunda cidade imperial em antiguidade, é hoje considerada a capital turística de Marrocos a que chamam ´pérola do sul’ e ‘Filha do Deserto’. Situa-se num extenso oásis, onde se cruzam os ventos quentes do Sara e as águas frias que descem do ‘Alto Atlas’ com mais de 4.000 metros de altitude. Surpreende-nos pelo seu exotismo bem presente nos trajes, danças e instrumentos tradicionais e nos ‘encantadores de serpentes’ da famosa Praça de Jemaa El Fna. Encanta-nos o Palácio Bahia com mosaicos e jardins; e o Minarete da mesquita da Koutoubia que influenciou a bem conhecida ‘Giralda’ de Sevilha. Dentro da muralha do século XII, a ‘medina’ fervilha de gente e comércio: “Danos significativos verificaram-se ainda na cidade antiga de Marraquexe onde parte das muralhas históricas ruíram. Há fissuras significativas no emblemático minarete Koutoubia” (JN, 11/9/2023). A caminho da costa, passámos por aldeias que nos impressionaram pela debilidade das suas construções. E visitámos uma cooperativa de mulheres – “Coopérative Mariana, production d’huile d’Argan et ses dérivées”. Hoje, ao lavar o rosto com ‘sabonete de argão’, lembrei-as e desejei que o sismo não as tivesse afetado. Já no litoral, em Essaouira, a antiga Mogador, Património Mundial, demorámo-nos a percorrer a fortaleza, por nós construída no século XVI, ainda com peças de artilharia portuguesa. Na extensa praia que a bordeja, surpreendeu-me, de dia, a presença de muitos dromedários para turistas e, à noite, grupos e grupos de famílias a comer e conviver. Não o podiam fazer durante o dia: era o mês do Ramadão. Seguimos para norte e, em El Jadida, a antiga Mazagão, apreciámos os vestígios dos dois séculos de ocupação portuguesa: as velhas fortificações e a ‘Cisterna Portuguesa’ do século XVI e, hoje, ‘Património da Humanidade’. Até que chegámos a Rabat, a atual capital do reino. Com origens bem antigas, a cidade atual data do século VIII. Se o Palácio Real, com a ‘Guarda de Honra’ e a mesquita, é visita obrigatória, o que mais me cativou foi a Torre de Hassan, ‘cuja estrutura recorda o perfil arquitetónico da Kutubia de Marraquexe e o da Giralda de Sevilha’. É o minarete de uma mesquita destruída pelo terramoto de Lisboa de 1755, de que resta uma floresta de colunas partidas. Porém, o que mais me surpreendeu foi a alcáçova dos Udaya. É impressionante a imponência da sua fortaleza. Ao olhá-la do lado do mar, compreendemos a razão pela qual os portugueses nunca a conseguiram conquistar. Fletindo para o interior, chegámos a Volubilis, cidade romana fundada, no século I a.C., por um filho da famosa Cleópatra e de Marco António. Aí se encontram as ruínas romanas mais importantes de Marrocos. Se os mosaicos originais nos obrigam a uma cuidadosa observação, a nossa atenção é provocada pelo templo capitolino e pelo imponente Arco de Caracala. Extraordinárias obras de arte que o tempo respeitou. (27/9/2023)

quarta-feira, setembro 20, 2023

A BELEZA ESTÁ NOS PORMENORES

Quando passam cinquenta anos do sanguinário golpe militar que derrubou a democracia chilena (11/9/1973) partilho convosco uma reflexão que - embora não aborde essa tragédia que esteve na origem de “40.175 vítimas de execução, tortura, prisão política e desaparecimentos” (JN, 11/9/2023) - foi inspirada no romance “A longa pérola do mar”, de Isabel Allende, sobrinha de Salvador Allende, o presidente democraticamente eleito que morreu no momento em que a aviação bombardeava o palácio presidencial. Já no final da vida, o protagonista diz a sua filha: “Os acontecimentos mais importantes na vida de um Homem, os que determinam realmente o destino, quase sempre escapam completamente ao nosso controlo. No meu caso, ao fechar este relatório de contas, se assim posso chamar-lhe, vejo que a minha vida foi marcada pela Guerra Civil (de Espanha) na minha juventude, pelos campos de concentração e pelos exílios. Não escolhi nada disso. Foram coisas que simplesmente me couberam em sorte.” Esta confissão trouxe-me à mente a reflexão autobiográfica de François Jacob, prémio nobel da medicina (1965): “O que me intriga na minha vida é isto: como cheguei a ser quem sou? Como se elaborou esta personagem, eu, que reencontro todas as manhãs e à qual terei de me acomodar até ao fim? Trago assim em mim, esculpida desde a infância, uma espécie de estátua interior que dá continuidade à minha vida e que é a parte mais íntima, o núcleo mais duro do meu carácter. Essa estátua toda a vida a modelei. Nunca parei de lhe dar retoques. Aperfeiçoei-a. Poli-a.” (A estátua interior) E eu que posso dizer? Porque nasci? Que fiz eu para ter nascido? Nada. E a vida é o suporte de tudo o que sou… Sou produto de fatores hereditários e ambientais. É essa a matéria original da minha estátua interior. E que contributo tive nesses fatores? A carga genética veio de meus ascendentes. Nasci numa família, num tempo e num lugar que marcaram a minha vida. E nada disto foi escolha minha. Também sou produtor. Não sou autor da minha estátua interior, é certo, mas as minhas opções vão torná-la mais bonita ou mais feia. Compete-me modelá-la. E quais as opções mais significativas na minha vida? Detenho-me apenas em duas. O casamento - O casamento pressupõe o encontro de duas pessoas que se amam e se comprometem. Pessoas que se foram modelando por caminhos diferentes que um dia se cruzaram. No meu caso, não fora uma amiga em comum e, talvez, nunca conheceria a companheira que, um dia, livre, me acolheu. E comigo, na sacramentalidade do amor, encetou “uma viagem, da qual não podíamos conhecer de antemão todas as etapas, e que - há quase cinquenta anos - nos mantém em constante movimento, com situações novas, factos inesperados, surpresas, algumas dolorosas” (Papa Francisco, no X Encontro Mundial de Famílias). Nosso filho José, já na sua fase terminal, dizia-nos – ‘Pais, quando olho para vós, vejo duas árvores tombadas. A sorte é que tombaram uma contra a outra. E assim aguentam-se de pé’. Os filhos - Não bastou o meu querer, foi preciso o encontro de duas vontades. E mesmo assim… Não há tantos casais que os desejam e não têm? Somos instrumentos e não autores da vida nem seus senhores. Se o fôssemos, nenhum filho morreria enquanto os pais fossem vivos. A morte dum filho é a experiência mais dolorosa da finitude humana. Experimentei-o quando o nosso filho, na flor da vida, deu o último suspiro com a mão agarrada à minha. O sorriso que lhe iluminava o rosto sumiu-se para nunca mais: ficou-nos no coração. Eu, que tantas vezes não o deixei cair para não se magoar, não consegui segurá-lo na vida. Sempre o recordo quando olho minhas mãos… É bem verdade o que disse Catarina Furtado: ”Os filhos não são meus. Estão apenas ao meu cuidado” (Notícias Magazine - 11/9/2022). E também Selma Uamusse, cantora gospel: “Sei que eu sou uma mera portadora da vida de quatro (filhas) Elas são minhas filhas mas não são propriedade minha. (7Margens, 5/3/2023)” Também eles e os netos são flores que nos trazem outras pétalas… A nossa vida é um edifício em construção. Os elementos estruturais nem sempre dependem de nós, mas sim os acabamentos. E são eles que o embelezam. A vida, não, mas a sua formosura está nas nossas mãos. Mesmo com lágrimas… (20/9/2023)

' A URGÊNCIA DA CIDADE: O PORTO E OS 100 ANOS DE FERNANDO TÁVORA'

Este é o título da exposição que abriu ao público, no passado dia 24, na “Antiga Casa da Câmara” no Morro da Pena Ventosa (Sé). Na inauguração, Rui Moreira falou dum ato de homenagem ao arquiteto que revelou “sempre um grande respeito pela memória, património e identidade da cidade”. Esta afirmação fez-me recuar a uma conferência do prestigiado arquiteto, na década de oitenta, e recordar a sua emoção ao falar da ‘patine’ nos granitos da cidade que nasceu e cresceu numa dialética de confronto entre o monte e o vale; o bispo e a burguesia: o Porto fez-se episcopal, no topo do ‘Morro da Pena Ventosa’, cresceu, burguês, ao descer para o rio da Vila e expandiu-se, monástico, ao subir o ‘Morro do Olival’. Tudo começou quando, em 1120, a rainha D. Tereza doou o “Couto do Porto” a D. Hugo, fazendo da cidade um senhorio episcopal. Como símbolo maior do seu domínio, os bispos, ao longo do século XII, levantaram a imponente Sé do Porto. Para atrair povoadores e desenvolver a economia, D. Hugo, logo em 1123, concedeu foral aos seus moradores. E o Porto galgou a velha ‘cerca sueva’ de origem romana… Os conflitos com o clero regular fizeram-se bem notados, em 1233, quando o bispo e o cabido se opuseram à fixação dos franciscanos na cidade. Símbolo maior da afirmação do poder monástico é o monumental mosteiro beneditino no topo do ‘Morro da Vitória’ rivalizando, em grandeza, com a Sé episcopal. Os conflitos com os Cidadãos do Porto foram-se acentuando à medida que mesteirais e comerciantes foram crescendo em riqueza e poder. Não foi por acaso que D. Afonso IV nomeou Afonso Martins Alho, um burguês do Porto, para, em 1353, negociar com Eduardo III o primeiro acordo comercial com Inglaterra. E a sua argúcia foi tal que deu origem ao dito portuense: ‘é fino como o Alho’ que, numa pequena deturpação, derivou para ‘é fino como um alho’. Esses conflitos só viriam a terminar quando D. João I, em 1405, comprou por ‘três mil libras de moeda antiga’ o senhorio da cidade ao bispo do Porto. A construção da “Casa dos 24” - também ela um símbolo - no século XV, “a apenas sete metros das paredes da catedral, com cem palmos de altura (cerca de 22 m)” foi uma afirmação do poder crescente da burguesia que quis, assim, perpetuar a memória desse clima de confronto. Primeira sede do poder autárquico do Porto, aí se reuniu, até final do século XVII, a assembleia dos ‘homens-bons’, ou os representantes dos ‘24 ofícios’ da cidade. Destruído o edifício por um incêndio, em 1875, as suas ruínas ficaram abandonadas até que, em 1995, a Câmara Municipal da época encomendou ao Arquiteto Fernando Távora um projeto de recuperação “para perpetuar a história da cidade”. A recriação, inaugurada em 2002, foi objeto de críticas contundentes e o seu autor alvo de acusações de anticlericalismo como se fora o seu criador, quando ele se limitou a recriá-lo, procurando ser fiel à história e à “volumetria original”. No 100.º aniversário do seu nascimento, associo-me à homenagem que tão justamente a Cidade lhe presta. Conheci-o em 1970 - já ele era “homem de cultura” na Escola de Belas Artes do Porto e “homem do povo e com o povo” no Centro Social do Barredo - quando, mandatado por D. António Ferreira Gomes, o fui convidar para a nova direção da Obra Diocesana de Promoção Social que seria presidida por D. Maria Elisa Acciaiuoli Barbosa e de que fariam parte, também, os doutores Sá Carneiro, Silva Ramos e Silva Carneiro. O compromisso com que abraçou o espírito da Obra e a convivência, durante cinco anos, nas reuniões semanais da direção a que nunca faltava, permitem-me reafirmar o que escrevi: “Para além da vertente cultural, foi também homem empenhado em causas sociais junto de comunidades carenciadas. Não esgotou a sua atividade como arquiteto, professor, homem de cultura. O seu humanismo transbordou pelas comunidades mais pobres do Porto como o Barredo e os Bairros Sociais. Era um homem de bem, de riso contagiante, de emoção à flor da pele, de humor desconcertante e afabilidade encantadora” (VP, 9/9/2020) que partilhava com D. António grande estima e mútua admiração. (13/9/2023)

quarta-feira, setembro 06, 2023

"A ÁRVORE CONHECE-SE PELO SEU FRUTO"

Lembrei-me deste dito de Jesus (Lc,6 ,44), quando passa o 105.º aniversário da morte (31/8/1918) do ‘nosso’ venerável D. António Barroso. E fi-lo a propósito da reportagem “A Lista do padre Carreira’ que a ‘TVI/CNN-Portugal’ transmitiu no dia 31 de maio. Já em 13 de março de 2013, sob o título “Herói esquecido” invoquei o artigo ‘O padre que foi de Leiria para Roma salvar Judeus’, de António Marujo (Público, 23/12/2012) o mesmo jornalista que, em 28 de maio passado, publicou, em ‘7Margens’, o artigo “A Lista do padre Carreira numa reportagem 7Margns /TVI com documentos inéditos” O P. Carreira, “durante o ano lectivo 1943-44, deu refúgio e abrigo a meia centena de perseguidos, antifascistas, judeus e outros resistentes à ocupação nazi-fascista da capital italiana”. (…) Além das pessoas que salvou na casa que dirigia, o padre Carreira ajudou a esconder mais cerca de centena e meia de mulheres e crianças em casas religiosas femininas. O que significa que terá ajudado a salvar pelo menos cerca de duas centenas de pessoas”. (…) “Um terço dos 750 conventos e casas católicas da cidade esconderam naqueles meses mais de quatro mil judeus, cerca de um terço da comunidade”. Como disse Luigi Priolo, o único refugiado ainda vivo: “Era a pessoa mais extraordinária que alguma vez conheci” (…) “Porque para fazer aquilo que ele fez, a ajuda que deu aos outros, tem de se ter uma coragem infinita. Porque os nossos ‘amigos’ alemães não brincavam…” E o artigo em análise esclarece: “Foi no final do ano lectivo de 1944 que Joaquim Carreira escreveu o relatório escolar da instituição, onde incluiu uma lista de nomes das pessoas a quem concedera “asilo e hospitalidade” por serem “perseguidas na base de leis injustas e desumanas.” Uma decisão que o levou a tomar um “maior contacto com as misérias, as dores e as tragédias em consequência da guerra”. O seu nobre serviço em prol da Humanidade foi reconhecido, em 2014, pelo Yad Vashem – Centro Mundial para a Memória do Holocausto, de Jerusalém, ao atribuir-lhe “o título de ‘Justo Entre as Nações’, que distingue as pessoas que, durante a Segunda Guerra Mundial, salvaram vidas de judeus arriscando as suas vidas e sem esperar qualquer recompensa”. E também o reconheceu o Estado Português, em abril de 2015, quando a Assembleia da República aprovou um voto de louvor àquele que se tornou no quarto “Justo” português – a par dos diplomatas Aristides de Sousa Mendes (Bordéus) e Carlos Sampaio Garrido (Budapeste) e do operário José Brito Mendes, emigrante em França.” As perguntas poderão surgir… - Como é que um português nascido em Caranguejeira, Leiria, se encontrava em Roma? E como lhe foi possível levar a cabo tão benemérita ação? A resposta é simples. Entre 1940 e 1954, foi vice-reitor e reitor do Colégio Pontifício Português em Roma. - E a que propósito se fala em D. António Barroso, o nosso bispo venerável? História responde. A ideia do Colégio Português começou a corporizar-se, em 28 de abril de 1898, quando, em Roma, se reuniu a ‘Comissão Promotora’ presidida por D. António Barroso que autenticou a ata e fez a ponte com o Papa Leão XIII. Como escreveu o P. Arnaldo Pinto no seu livro ‘O Pontifício Colégio Português em Roma’, “a figura de D. António Barroso, com a aura de prestígio de que usufruía junto do Governo Português e também da Cúria Romana, iria constituir a chave da solução do problema. Com o seu carisma de Pastor e a sua arte diplomática reunia condições ideais para fazer avançar o projecto.” E assim foi… Em 20 de outubro de 1900 o Colégio via reconhecida a sua ereção canónica. Na visita que fez ao Colégio em 1985, o, então, Papa João Paulo II disse: “A história da Igreja em Portugal e noutros territórios e nações de expressão portuguesa, neste século, não poderá ser escrita sem referir a participação que nela tiveram os antigos alunos do Pontifício Colégio Português”. Da Igreja, sim, mas também do País e mesmo, como no caso do P. Carreira, da Humanidade. Um louvor para os meus professores – e foram muitos - que nele viveram. Uma palavra de gratidão para os reitores que conheci: D. José Cordeiro e Padre José Caldas. E uma oração pela beatificação/canonização de D. António Barroso, o ‘bispo santo’ de que falava minha mãe, o ‘bispo dos pobres’ como ficou na memória do Porto. “Toda a árvore boa dá bons frutos… Mt, 7,17. (6/9/2023)