A BELEZA ESTÁ NOS PORMENORES
Quando passam cinquenta anos do sanguinário golpe militar que derrubou a democracia chilena (11/9/1973) partilho convosco uma reflexão que - embora não aborde essa tragédia que esteve na origem de “40.175 vítimas de execução, tortura, prisão política e desaparecimentos” (JN, 11/9/2023) - foi inspirada no romance “A longa pérola do mar”, de Isabel Allende, sobrinha de Salvador Allende, o presidente democraticamente eleito que morreu no momento em que a aviação bombardeava o palácio presidencial.
Já no final da vida, o protagonista diz a sua filha: “Os acontecimentos mais importantes na vida de um Homem, os que determinam realmente o destino, quase sempre escapam completamente ao nosso controlo. No meu caso, ao fechar este relatório de contas, se assim posso chamar-lhe, vejo que a minha vida foi marcada pela Guerra Civil (de Espanha) na minha juventude, pelos campos de concentração e pelos exílios. Não escolhi nada disso. Foram coisas que simplesmente me couberam em sorte.”
Esta confissão trouxe-me à mente a reflexão autobiográfica de François Jacob, prémio nobel da medicina (1965): “O que me intriga na minha vida é isto: como cheguei a ser quem sou? Como se elaborou esta personagem, eu, que reencontro todas as manhãs e à qual terei de me acomodar até ao fim? Trago assim em mim, esculpida desde a infância, uma espécie de estátua interior que dá continuidade à minha vida e que é a parte mais íntima, o núcleo mais duro do meu carácter. Essa estátua toda a vida a modelei. Nunca parei de lhe dar retoques. Aperfeiçoei-a. Poli-a.” (A estátua interior)
E eu que posso dizer? Porque nasci? Que fiz eu para ter nascido? Nada. E a vida é o suporte de tudo o que sou…
Sou produto de fatores hereditários e ambientais. É essa a matéria original da minha estátua interior. E que contributo tive nesses fatores? A carga genética veio de meus ascendentes. Nasci numa família, num tempo e num lugar que marcaram a minha vida. E nada disto foi escolha minha.
Também sou produtor. Não sou autor da minha estátua interior, é certo, mas as minhas opções vão torná-la mais bonita ou mais feia. Compete-me modelá-la. E quais as opções mais significativas na minha vida? Detenho-me apenas em duas.
O casamento - O casamento pressupõe o encontro de duas pessoas que se amam e se comprometem. Pessoas que se foram modelando por caminhos diferentes que um dia se cruzaram. No meu caso, não fora uma amiga em comum e, talvez, nunca conheceria a companheira que, um dia, livre, me acolheu. E comigo, na sacramentalidade do amor, encetou “uma viagem, da qual não podíamos conhecer de antemão todas as etapas, e que - há quase cinquenta anos - nos mantém em constante movimento, com situações novas, factos inesperados, surpresas, algumas dolorosas” (Papa Francisco, no X Encontro Mundial de Famílias).
Nosso filho José, já na sua fase terminal, dizia-nos – ‘Pais, quando olho para vós, vejo duas árvores tombadas. A sorte é que tombaram uma contra a outra. E assim aguentam-se de pé’.
Os filhos - Não bastou o meu querer, foi preciso o encontro de duas vontades. E mesmo assim… Não há tantos casais que os desejam e não têm? Somos instrumentos e não autores da vida nem seus senhores. Se o fôssemos, nenhum filho morreria enquanto os pais fossem vivos. A morte dum filho é a experiência mais dolorosa da finitude humana. Experimentei-o quando o nosso filho, na flor da vida, deu o último suspiro com a mão agarrada à minha. O sorriso que lhe iluminava o rosto sumiu-se para nunca mais: ficou-nos no coração. Eu, que tantas vezes não o deixei cair para não se magoar, não consegui segurá-lo na vida. Sempre o recordo quando olho minhas mãos…
É bem verdade o que disse Catarina Furtado: ”Os filhos não são meus. Estão apenas ao meu cuidado” (Notícias Magazine - 11/9/2022). E também Selma Uamusse, cantora gospel: “Sei que eu sou uma mera portadora da vida de quatro (filhas) Elas são minhas filhas mas não são propriedade minha. (7Margens, 5/3/2023)”
Também eles e os netos são flores que nos trazem outras pétalas…
A nossa vida é um edifício em construção. Os elementos estruturais nem sempre dependem de nós, mas sim os acabamentos. E são eles que o embelezam.
A vida, não, mas a sua formosura está nas nossas mãos. Mesmo com lágrimas…
(20/9/2023)
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