A PAZ DO OLHAR...
A Comunicação Social informou: O ‘Prémio Vida Literária Vitor Aguiar e Silva’, iniciativa conjunta da Associação Portuguesa de Escritores e da Câmara de Braga, foi atribuído a Lídia Jorge, “personalidade de invulgares méritos e reconhecimento na atividade cultural” (28/4/2023).
Nessa data, acabava eu de ler ‘Misericórdia’, o seu ‘mais recente romance’, editado pelas ‘Publicações D. Quixote’.
Nele, a autora transcreve, com as alterações decorrentes da adaptação do código oral ao escrito, “um arquivo áudio com duração de 38 horas contendo os depoimentos” duma residente no lar chamado ‘Hotel Paraíso’. “Mas as palavras, a respiração e o ritmo correspondem por inteiro ao original” (Pág. 9).
É tal a sua dinâmica vivencial que se leria de fio a pavio, de modo contínuo, não foram as suas 457 páginas.
Dada a riqueza de conteúdo, limitei-me a respigar algumas vivências que, com vénia, agora partilho.
Cedo nos apercebemos do estado de alma de quem vive num ‘Lar’, mesmo quando, como é o caso, se trata duma residencial de 5 estrelas e resulte duma opção pessoal:
“Este é o meu lugar de exílio. Aqui me depositaram a meu pedido e por minha livre vontade. (…) O que não quer dizer que não sofra.” (pág. 119).
E ouvimos os seus desabafos…
“Não há gaveta, não há bolso, não há bolsa, não há travesseiro, nem colchão, nem fundo de bainha nem sola de sapato a que só eu, sozinha, tenha acesso. E essa é a dificuldade de me encontrar a viver no Hotel Paraíso. Exílio. Não há mais nada que seja só meu, nem o meu corpo, nem o meu espírito. “(pág. 266)
Quem com eles convive não pode ignorar estes sentimentos silenciosos…
- Os cuidadores no seu dia-a-dia.
Há gestos contrastantes dignos de:
. Louvor - “Nina lavou-me o rosto com algodão embebido em água-de-rosas, depois água simples, perfumou-me, colocou-me o colar, o anel de pedra azul, pendurou-me os brincos de balanço e acomodou-me na cadeira. (Pág. 21)
. Repulsa - “Enquanto removiam as minhas roupas falavam e riam muito alto. (…) Sem terem chegado a dizer-me bom dia ou outra palavra de saudação, conduziram-me até à Sala Azul (…) As raparigas alojaram-me na mesa, empurraram-me a cadeira de modo a que o meu peito ficasse rente à toalha, partiram, não chegaram a dizer-me bom dia.” (pág. 24)
- Os diretores, na sua azáfama, não podem ignorar que estão a tratar com pessoas de longas e diversificadas histórias de vida.
Merece reflexão a sua fala sobre a estagiária Anita que, entretanto, foi nomeada diretora.
“Olhava-nos então pausadamente nos olhos, o seu olhar percorria os nossos rostos contemplando o que eles guardavam, vagarosa, como se tivesse tempo para visitar as nossas próprias almas. (…)
Agora (que é a diretora) os olhos da antiga Anita passam rápidos sobre todas as superfícies sem se deter em nenhuma delas (…) E eu penso que, por ter de mandar em tudo, agora já não possui nada daquilo que havia feito dela uma pessoa amada. Anita transformada em doutora Noronha perdeu a paz do olhar“. (pág. 46)
- A família deve levar-lhes apenas os seus ‘miminhos’ e não os seus preconceitos.
“Ambos (filha e genro) entraram, vinham carregados de sacos. Mas ele, (…) ficou admirado por não ver a televisão no seu lugar. (…) Ficou embravecido, escancarou o armário onde desde há muitas semanas o aparelho se encontra. (…) Eu disse-lhe – ‘Não a ligue, se faz favor. (…) E levantei a mão direita o mais alto que me foi possível’. Ele, então disse que eu assim iria afundar-me, ficar enrolada sobre o meu próprio corpo. (…) Finalmente, calou-se. (pág 158)
Concluindo… Quando as debilidades e as dependências se acentuam, as pessoas, mais do que de coisas, precisam de se sentirem acarinhadas e amadas. Como diz o adágio, ‘de velho se torna a menino’… O que pedem a quem deles cuida é ‘paz no olhar’ e disponibilidade para ouvir as suas histórias, mesmo quando, pela enésima vez, repetidas. Têm tanto para contar… Sem conselhos ou admoestações. Já lhes bastou a vida…
Um voto - Que este ‘cheirinho’ suscite a leitura integral dum romance que nos mexe por dentro e cuja protagonista é inspirada na própria mãe da autora (DN, 20/11/2022). (14/6/2023)
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