O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, março 29, 2023

ANÓNIMOS NO DRAMA DA PAIXÃO

As ‘cenas da Paixão de Cristo’ publicadas em ‘’ A questão sobre Deus é o não saber explicar - Uma conversa sobre arte, arquitetura e espiritualidade’ entre Álvaro Siza e José Tolentino Mendonça, estão na origem desta reflexão. A narrativa histórica é como um arquipélago em que as águas escondem o fundo do mar é só deixam à superfície as ilhas e algum ilhéu cujo nome não consta do mapa. Assim acontece também na ‘Paixão de Jesus’. Os quatro evangelhos canónicos (Mateus, Marcos, Lucas, João) nomeiam, entre outros, Pilatos e Herodes; Anás e Caifás; Pedro e João; Judas e Barrabás; Maria e Madalena; Nicodemos e José de Arimateia. Mas deixam no anonimato o “soldado que traspassou o lado (de Jesus) com uma lança (Jo 19, 34)” e os “malfeitores (que foram crucificados com Jesus) um à direita e outro à esquerda (Lc 23,33)”. Não se sabia o nome? Tenho um primo que se chama Longuinhos e sempre me disseram ser esse o nome do soldado que tinha ferido o lado de Jesus com uma lança no Calvário e, depois, se fizera Seu discípulo. A “Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura “, da Verbo, confirma esta tradição. Diz: “Longuinhos - Mencionado no Martirológio Romano a 15 de março. O nome Longuinhos deriva do grego ‘lança’. Antiquíssimas tradições relacionaram-no com a morte de Cristo: uma identifica-o com o soldado que abriu a chaga do lado em Cristo já morto…” E interroguei-me: Que ‘antiquíssimas tradições’? Em busca de resposta, fui consultar o livro “Evangelhos Apócrifos”, na tradução de Frederico Lourenço. . A respeito do soldado, consta, no ‘Evangelho de Nicodemos =Atos de Pilatos’: “E vimos que ele apanhou bofetadas e cuspidelas na cara dele; e que os soldados lhe puseram uma coroa de espinhos; e que foi flagelado e recebeu a sentença de Pilatos; e que foi crucificado no lugar do Crânio e dois saltadores com ele; e que lhe deram a beber vinagre com fel; e que Longino, o soldado, traspassou o flanco dele”. É curioso que o médico do ‘Hotel Paraíso’ de que fala Lídia Jorge no livro ‘Misericórdia’ chama-se Longino… . E os ‘dois salteadores’? Na ‘Narrativa de José de Arimateia’, encontrei esta afirmação bem explícita: “Decorrido o julgamento, o governador Pilatos ordenou que ele fosse pregado na cruz com dois salteadores. Foram pregados com ele, juntamente com Jesus; à esquerda, Gestas; à direita, Demas”. Também o ‘Evangelho de Nicodemos’ os refere com uma leve diferença no nome do bom ladrão a quem chama Dismas que diz a Jesus: “Lembra-te de mim, Senhor, no teu reino”. O que são os Evangelhos Apócrifos? – podemos perguntar… Na ‘Nota Introdutória’, Frederico Lourenço começa por esclarecer que apócrifo não é sinónimo de falso ou herético e termina dizendo: “Sendo certo que nenhum evangelho apócrifo pode ser comparado, em termos de importância, com os quatro evangelhos do Novo Testamento, não deixa de ser verdade que a leitura destes textos marginalizados nos deixa vislumbrar o modo fascinante e diferenciado como as várias gerações de cristãos entenderam e veneraram a figura de Jesus”. E o nosso estimado biblista, Frei Geraldo, na referida enciclopédia, ensina: “Chamam-se Apócrifos, os livros que, embora tenham semelhanças literárias e até mesmo doutrinais, com os da Sagrada Escritura, não são, todavia, inspirados e, portanto, estão fora do cânone. (…) O seu valor teológico é escasso; no entanto, são de utilidade para o conhecimento das ideias religiosas e morais do seu tempo e do próprio ambiente histórico em que nasceram”. É interessante verificar que várias informações dos ‘Evangelhos Apócrifos’ relativos à infância de Jesus e à vida de Nossa Senhora foram assumidas na tradição da Igreja. Um exemplo… Se perguntasse como se chamam os pais de Nossa Senhora, todo a gente saberia, até porque, na sua festa litúrgica (26 de julho), celebra-se o ‘Dia dos Avós’: Santa Ana e São Joaquim. Mas se a pergunta fosse sobre a fonte dessa certeza, talvez poucos o soubessem já que nenhum dos evangelhos canónicos os referem. Porém, o apócrifo ‘Natividade de Maria’ começa assim: “Ora, a bem-aventurada e gloriosa sempre virgem Maria, (…) nascida na cidade de Nazaré, foi criada no templo do Senhor em Jerusalém. Seu pai era Joaquim; sua mãe chamava-se Ana.” Estes nomes são confirmados pelos apócrifos ‘Evangelho de Tiago’ e ‘Evangelho de Pseudo-Mateus’. (29/3/2023)