NÃO FICARAM NA HISTÓRIA MAS FIZERAM HISTÓRIA
O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura fez-me chegar o texto ‘A nossa tarefa: Viver e morrer como seres humanos’ de Andrea Monda, publicado, em 13.09.2022, pelo L'Osservatore Romano. Começa por dizer:
“Nos últimos dias faleceram duas pessoas que marcaram a história do último século: Mikhail Gorbachev e Isabel II. Trata-se de pessoas que já entraram nos livros de História. Nestes manuais, estudam-se, com efeito, os “grandes” da História.
E continua: “Sabemos bem o quanto tudo isto, obviamente, é parcial, redutor, no fim de contas falso. Sabemos por isso que o papa tem razão quando nos recorda que «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns – habitualmente esquecidas – que, sem dúvida, estão a escrever hoje os acontecimentos decisivos da nossa História”.
Este texto fez-me lembrar o ‘Museu de Lagos – Rota da Escravatura’ que tem gravado na parede exterior: “Chegaram as caravelas a Lagos (…) e no outro dia Lançarote (…) disse ao Infante (…) ser bem que de manhã os mandeis tirar das caravelas e levar aquele campo que está além da porta de vila, (fazendo) deles cinco partes (…) e seja vossa mercê chegardes aí e escolher uma das partes, qual mais vos prouver” (Crónica do descobrimento e a conquista da Guiné”, G. Eanes de Azurara).
Dois nomes ficaram na história: Lançarote, o comandante que, em 1444, partiu de Lagos e aí regressou, em agosto desse ano, ‘com o primeiro grande contingente de escravos - 235 negros raptados nos litorais da Senegâmbia e vendidos em leilão na praça pública’; o Infante (D. Henrique), o impulsionador dos Descobrimentos que, em Lagos, fundara a Casa da Guiné para controlar o comércio dos produtos africanos, especialmente, ouro, marfim e escravos.
Ao percorrer o interior do museu, sentimos arrepios no corpo e flagelos da alma, ao ouvir, em fundo, as palavras com que Azurara descreve a divisão/separação dos escravos:
“No outro dia (…) começaram os mareantes de correger seus batéis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado. Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente; outros feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto”.
E conta emocionado: ”E começaram de os apartarem uns dos outros, a fim de porem seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade de se apartarem os filhos dos pais, e as mulheres dos maridos e os dos irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava! Os filhos, que viam os pais na outra parte, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as mães apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados!”
Os seus nomes não ficaram na história, mas fizeram história, uma história que foi silenciada, uma história que nos provoca e horroriza…
Lembrei-os nos ‘50 anos do Massacre de Wiriamu’, em Moçambique’ (1//12/1972) que o nosso Primeiro Ministro evocou perante o Presidente de Moçambique como um “acto indesculpável que desonra a nossa História”.
E relembrei-os ao ver, no Episódio I da série “Amantes na Fronteira” da RTP2, como, ainda na Lisboa do pós-terramoto de 1755, os escravos eram tratados a chicote e sujeitos às mais hediondas sevícias à ordem do seu proprietário.
Há nódoas que mancham a nossa memória coletiva. Gostaríamos que nunca tivessem acontecido. Mas não se podem ignorar nem reescrever a história.
Sem subterfúgios ou autojustificações. A essas atitudes, Sarte dá o nome de ‘má fé’, um autoengano, uma forma de mentirmos a nós próprios. (VP, 18/1/2023)
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