DAI-ME, SENHOR, A FÉ DE MINHA MÃE
Ao longo de muitos anos, no dia dois de janeiro, fui à minha aldeia celebrar com minha mãe o seu aniversário natalício. Após a sua ‘passagem’, a romaria fez-se saudade e manteve-se, mas passou a incluir uma visita ao cemitério de Campo/Valongo. É sempre um momento de introspeção. Este ano, vieram-me à mente duas conversas.
. A mais recente aconteceu no passado dia 9, no funeral da minha comadre Olga Celeste, uma amiga que fez parte dos primeiros ‘Ministros Extraordinários da Comunhão’ nomeados, em 1974, por D. António Ferreira Gomes.
Como dizia Eduardo Lourenço, é verdadeiramente a morte dos outros o que nos faz sofrer. Não é impunemente que vemos os amigos partir. Anima-nos a Fé e a certeza de que ”Aqueles que passam por nós não vão sós: deixam um pouco de si; levam um pouco de nós”. (Sainte-Exupéry)
Após as exéquias, em romagem de partilha e saudade, peregrinámos pelos jazigos das nossas famílias.
No final, confortados com a presença dos amigos, falámos de conhecidos nossos que, depois da cremação, guardam em casa as cinzas dos familiares. E duas ideias nos solidarizaram.
Todo o homem é sagrado, também o seu corpo. “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual vos foi dado por Deus? (1Cor, 6,19)”. Durante a vida, deve ser cuidado e respeitado e, após a morte, deve ser acolhido num ‘chão sagrado’. “A ideia do sagrado… tem a ver com escrúpulo, com resguardo, separação. O que é intocável” (Siza Vieira in “A questão sobre Deus é o não saber explicar”)
Se os pais não são donos dos filhos também os filhos não o são dos pais, nem os cônjuges o são um do outro. Não é por terem morrido que seus corpos passaram a pertencer-lhes. Os filhos foram, certamente muito importantes, mas não esgotaram a sua vida. E vice-versa. Há familiares, vizinhos, amigos: toda uma vida de convivência e presença solidária. O falecido tem direito a um local onde quem quiser possa, livremente, prestar-lhe uma homenagem, fazer o luto, colocar uma flor, verter uma lágrima, fazer uma oração...
“Não me procures / Já não tenho encalço / Já não deixo rasto / Encontra-se agora / Em toda a parte” (Nuno Rocha Morais, poemas dos dias). Grande verdade que todos já experimentámos. Tudo nos fala dos nossos mortos.
O cemitério, porém, espaço sagrado da memória, é o local próprio para acolher os restos mortais daqueles que amamos.
. A conversa mais antiga, ouvi-a, há já uns anos, na Fundação António José de Almeida, na conferência de Torres Queiruga sobre o seu livro ’Repensar o Mal. Da Ponerologia à Todiceia’. No final, um assistente perguntou-lhe: - “O senhor, ilustre professor de filosofia na Universidade de Santiago de Compostela e teólogo de renome mundial, afirma-se como cristão. Por que acredita e como consegue conciliar a sua teologia com a Fé que professa?” Ao que ele, simplesmente, respondeu: - “Porque sou finito e peço todos os dias a Deus que me dê a fé de minha mãe”.
Esta resposta levou-me a parafrasear a velha afirmação, atribuída a Tertuliano, e dizer ‘creio porque sou finito’. Precisamos de alguém que seja fundamento do nosso ser porque nem nós nem nossos pais, finitos, o somos. Sem esse Outro, o mundo não tinha razão de ser e eu, na minha contingência, ver-me-ia, ontologicamente, como um absurdo existencial sem transcendência nem significado.
Minha mãe morreu vítima dum cancro que lhe desfigurou o rosto e causou grande sofrimento. Quando a íamos visitar, sempre repetia: - “Nosso Senhor sofreu muito mais. Seja em desconto dos meus pecados e pela conversão dos pecadores”.
Eu, por vezes, sentia-me esmagado, e, discretamente, saía do quarto para silenciosamente chorar no corredor. A enfermeira Maria do Carmo – o seu ‘anjo’ cuidador – rezava com ela o terço enquanto lhe curava as chagas. Como minha mãe se sentia confortada!
No início deste novo ano e de pé junto do seu túmulo, repeti a jaculatória com que terminava a ‘reza do terço’ na minha casa: “Meu Deus, eu creio em Vós, mas aumentai a minha Fé…”
E rezei o ‘Credo’ que me ensinou em criança: “Creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, Seu único Filho, Nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo…”.
“A vida espiritual alimenta-se da memória” - François-Xavier Bustillo. (11/1/2023)
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