'A GRATIDÃO FAZ-NOS VOLTAR À VERDADE'
Esta afirmação de D. Tolentino, ao receber o primeiro ‘Grande Prémio Fundação Ilídio de Pinho (20/12/2022), fez-me recordar o encontro que, no Natal, tive, na casa onde nasci, com filhos dos vizinhos da minha meninice. Ofereci-lhes o meu último livro e demorámo-nos no capítulo ‘Sons da madrugada’ em cujo átrio bruxuleia uma pequena centelha de A Papoila e o Monge’ de José Tolentino Mendonça: ‘Quando saíres das cidades /Onde ouvires risos /É a minha casa.
Nele, evoco memórias de tempos difíceis, de muita penúria e sofrimento mas também de grande entreajuda. O texto que, com alguma adaptação, partilho convosco, é como que uma oração por esses amigos, todos já na ‘terra da Verdade’. Todos tios e tias.
“Das muitas famílias que povoam as memórias da minha infância, lembro, agora, os “Sapateiras”. Eram filhos da tia Isabel, a ‘parteira’ que assistiu ao meu nascimento. Era ela quem ajudava minha mãe nos dias da ‘barrela’ e fiava o linho cultivado em minha casa. E que bem fiava!... Ainda estou a vê-la com a roca no regaço e o fuso a girar entre os dedos…
O ti’Domingos, o mais velho, foi o primeiro ‘criado de lavoura’ de meu pai. Quando nasci, já era barbeiro, junto da ponte de Luriz. Quantas vezes lá fui cortar o cabelo e brincar com o seu filho Manuel que era da minha idade… À noite, sempre se rezava o terço em sua casa. E quando morria alguém, no final, acrescentava-se uma Ave-Maria por sua alma. E o pequenito, a cair de sono, logo resmungava: - “Já temos mais um cliente…”
O ti’Américo era o ‘nosso criado’ quando vim ao mundo. Foi ele quem me levou a apartar. ‘Ir a apartar’ era uma espécie de instituição familiar. Quando a mãe achava que era tempo de o filho deixar de mamar, mandava-o para casa dum familiar. Eu fui para casa da avó paterna.
O ti’Serafim, o mais novo, tinha muitos filhos. Certo dia, sua esposa lamentou-se e eu, já adulto, falei com ele. Ao que me respondeu: - ‘Não tenho culpa. Basta eu pôr as calças em cima da cama e a Maria logo alcança’. E sorrimo-nos…
O ti’António, apaixonado por ciclismo, era ‘doido’ pelo Fernando Moreira, o ‘Mana’ de Sobrado. Quando este não ganhava, os amigos, disfarçados e a coberto da noite, rodeavam-lhe a casa a imitar as carpideiras, berrando: - “Ó Mana! Onde está o Mana? Desapareceu? Ai que desgraça!” E choravam em coro. Nessas alturas, tinham que fugir porque ele saltava da cama mesmo em ceroulas e atirava-lhes com tudo o que tivesse à mão: - “Seus…, se vos apanho…”.
Mineiros nas pedreiras de ardósia, não tinham horário, trabalhavam, dizia-se, «à contrata». Como eram muito trabalhadores, ‘arreavam’ cedo. Depois, vinham para minha casa ajudar quando o serviço apertava. Em contrapartida, meu pai emprestava-lhes os bois e demais instrumentos agrícolas para cultivar as pequenas leiras que traziam arrendadas e ajudavam a alimentar as muitas bocas que tinham em casa.
Sempre prontos a ajudar. E com que lanço o faziam… Nada os assustava.
Gente de bem. Na simplicidade do seu viver, eram amigos, de uma só face, de alma lavada e bom coração. Como os recordo…
Nesta evocação saudosa, presto homenagem à vizinhança que encheu a minha infância de carinho no meio de muitas privações. A minha gratidão.” Que Deus os tenha na Sua Paz!
À medida que os anos se vão alongando, os ‘sons da madrugada’ vão-nos chegando, cada vez mais, em tons de louvor e saudade.
Ao apresentar este testemunho da vivência comunitária das nossas aldeias, sei que muitos de vós a quem os anos já vão pesando poderíeis subscrevê-lo, com outros nomes e outras circunstâncias, é certo, mas com o mesmo sentimento de pertença e gratidão.
Como a distância ajuda a esbater o volume dos montes na amplitude dos horizontes, assim o tempo ajuda a relativizarmo-nos face ao mundo dos outros. Já no século XII, Bernardo de Chartres dizia, ‘somos anões aos ombros de gigantes’…
Como uma garrafa cheia não tem espaço para receber mais água, assim ‘quem-está-cheio-de-si’ não tem lugar para acolher mais ninguém nem sabe agradecer.
E quem-assim-é vive na ilusão da sua grandeza e na mentira da sua autossuficiência. Quando agradecemos, reconhecemos a verdade da nossa interdependência e da nossa contingência… (22/2/2023)
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