O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, fevereiro 01, 2023

UM EXEMPLO QUE VEM DE LONGE...

Quando li a ‘Divina Comédia’, surpreendeu-me o relevo que o seu autor, Dante Alighieri, deu a Virgílio, o seu guia na viagem pelo mundo dos mortos, a quem enaltece: – ‘Tu és o meu mestre, o meu autor /és tu aquele só de quem tirei /o belo estilo que me deu valor’ (Canto I, 85). Esta invocação levou-me a ler a ‘Eneida’, obra-prima do grande poeta latino. Nela, também Eneias, no Canto VI, percorreu esses caminhos em busca do pai que, emocionado, o acolheu: “E quando (seu pai Anquises) viu Eneias que se dirigia para ele /através da pradaria, estendeu com alegre emoção ambas as mãos, /enquanto dos olhos brotavam lágrimas, da boca lhe saiam estas palavras: /Vieste finalmente e o teu amor filial, de que teu pai já estava à espera, /superou a dureza da viagem. É-me dado ver teu rosto, filho /ouvir a tua voz familiar e responder-te” (690). Esta epopeia descreve a longa viagem de Eneias e seus companheiros desde Troia, onde foram vencidos pelos gregos, até ao local em que irá nascer a cidade de Roma e o seu Império. Anquises, numa visão profética, antecipa acontecimentos e pessoas da história de Roma que Virgílio quer verberar ou exaltar: “E agora vamos, expor-te-ei brevemente que glória seguirá no futuro… (765)” Escrita no tempo de Augusto, glorifica o seu imperador, como, mais tarde, o nosso Luís de Camões, em “Os Lusíadas”, cantará ‘As armas e os barões assinalados / Que da ocidental praia lusitana…’ Ler tão belo poema foi consolo espiritual e momento de reflexão. Os deuses são diferentes, mas o homem que nele encontrei é o mesmo de todos os tempos, capaz das mais execrandas atrocidades, como atualmente podemos, desgraçadamente, comprovar, mas também das mais heroicas virtudes. No Canto II, depois de dizer a Eneias: “Ah, foge, filho, escapa-te, põe-te a salvo destas chamas. /O inimigo apoderou-se das nossas muralhas, Troia desmorona-se’ (321)”, o avô Anquises, velho e doente, ‘estendeu as mãos para o céu, dizendo, /Deuses dos meus pais, preservai a minha casa /salvai o meu neto (Julo)”. Nos netos, o sorriso do futuro… Eneias não quer fugir sem o pai. Depois de muito insistir, pede-lhe: “Então vamos, querido pai, sobe para as minhas costas, /que eu te carregarei aos ombros e não será esse esforço /que me custará. Para onde quer que as coisas se encaminhem, /correremos ambos o mesmo perigo, alcançaremos ambos /a mesma salvação. Acompanhe o pequeno Julo e que minha esposa siga de longe os nossos passos (780)”. Que belo exemplo para os filhos de hoje… Antes de dispersarem, Eneias combinou com os companheiros o local para se encontrarem: “Nesse sítio nos reuniremos, vindo cada um de seu lado”. E continuou a contar: “Dito isto… levanto o meu carrego. O pequeno Julo agarrou-se à minha mão. Creusa (a esposa) caminha atrás de nós e avançamos a coberto de lugares escuros”. Quando chegaram ao lugar combinado, a “esposa era ela a única que faltava’”. E Eneias, atormentado, logo decidiu: ‘Estou resolvido a correr novamente todos os riscos /e a regressar atravessando de novo a cidade /e a expor de novo a minha vida aos perigos (748)”. Depois descreve o que aconteceu: “Ousei bradar chamamentos por entre a escuridão, enchi /os caminhos com os meus brados. Desgostoso, repetindo em vão /chamei Creusa uma e outra vez”. E apareceu-me “diante dos olhos o espetro e a imagem da própria Creusa” que me disse: “De que te serve abandonares-te a tanto desgosto insensato, querido esposo? Afasta as lágrimas pela amada Creusa. (…) Quando isto acabou de dizer abandonou-me, derramado em pranto, /e com vontade de lhe dizer tanta coisa (858)”. Que bela página de amor familiar! E pensarmos nós que foi escrita, antes do nascimento de Jesus, num povo cujos deuses nada tinham a ver com o Deus-Amor… O Deus de Jesus praticou a ‘inclusão’ muito antes de esta palavra estar na ordem do dia. Ao falar da ‘maiêutica histórica da revelação’, escreveu Otávio Lemes: “Visto que o homem é um ser histórico, a revelação de Deus acontece na história e atinge a sua plenitude em Jesus Cristo que, como plenitude revelatória, se encarna na história humana” (cf. Heb1,1). (1/2/2023)