PARA QUE SE GUARDE A MEMÓRIA
‘Vinde ver um mundo que está a acabar…’ foi o apelo que, na década de oitenta, o P. Fontes fez na sua ‘Etnografia Transmontana’ sobre a ‘Terra do Barroso’.
Idêntico convite pareceu-me ouvir, fez ontem um mês, na inauguração da exposição ‘Afurada Anos 60’, nas palavras da sua ‘alma-mater’.: “Uns simples cliques transportam-nos à Afurada dos anos 60 do século XX. O objectivo é mostrar aos mais novos o que foi a terra que também os viu nascer”.
Faço-me eco deste apelo quando a Afurada já está toda engalanada para a festa em honra do seu padroeiro que, à sua medida’ quer rivalizar com o S. João do Porto.
Vem da Idade Média esta devoção pelo Santo-Pescador nas ‘póvoas marítimas’ do que é testemunha a grande romaria que, ainda hoje, anima as gentes da Póvoa de Varzim.
Também, bem cedo, as populações piscatórias das zonas ribeirinhas do Porto se puseram sob a sua proteção.
Já, em 1120, na doação do Couto do Porto, de D. Teresa a D. Hugo, se referia a ‘igreja de S. Pedro’ em Miragaia onde desagua o rio Frio que, segundo os Bispos do Porto, definia os limites ocidentais do seu Couto
A atual igreja, dos séculos XVII/XVIII, conserva o seu orago, mas já nada resta da sua antiga alma piscatória.
No limite oriental, o Couto Episcopal incluía os ‘pesqueiros de Campanhã” na foz dos rios Torto e o Tinto onde as povoações ribeirinhas edificaram duas capelas em honra de S. Pedro. Uma, em Campanhã, é a atual matriz de S. Pedro de Azevedo, mas, já nada resta da tradição piscatória.
A outra, em Valbom, sobranceira à ‘Ribeira de Abade’ onde se podem observar os típicos barcos valboeiros. Na estrada marginal, ainda se veem placas que dizem ‘vendem-se lampreias’. Mas quase nada resta da antiga atividade no rio e muito menos da sua comunidade.
É, contudo, na Afurada, na margem esquerda do estuário do Douro, que sobrevive a povoação, tipicamente piscatória das redondezas do Porto. Pouco a pouco vai perdendo o caráter que lhe conheci quando, em 1958, fui aí representar o drama ‘Deus escreve direito’ escrito, pelo filho desta terra que, passados 65 anos, a presenteia com uma impressiva exposição fotográfica.
E quem é este “jovem privilegiado, mas solidário” que, num ambiente de tanta pobreza, possuía, já, “máquina e laboratório fotográfico” e teve a intuição e arte de fixar para a posteridade os rostos e ‘artes’ dos seus vizinhos?
Cátia Oliveira, doutoranda em Estudos do Património, termina assim o texto ‘Navegar à vista’ que enriquece a ‘folha de sala’: “Resta-nos agradecer, ao jovem ‘Zé Felismino’, o privilégio que agora temos de medir o tempo em imagens. O jovem que se fez J. Marques da Cruz, mas manteve na Afurada morada afectiva”.
A exposição, com trinta e seis fotografias e um vídeo, “convoca a memória e reveste-a de significado. Dá-lhe rostos e olhares que nos fitam, testemunha práticas, vivências e momentos que nos impactam. São, por isso, estas imagens, um retrato social, económico, educacional e devocional de uma Afurada que, na década de 60, bolinava entre o desenvolvimento e a genuína teimosia das suas gentes.” (‘Navegar à vista’)
No dia da inauguração, Marques da Cruz ofereceu ao Centro Interpretativo do Património da Afurada o seu riquíssimo acervo fotográfico sobre a Afurada da década de sessenta. O que levou Cátia Oliveira a escrever “este espólio fotográfico, composto por centenas de valiosos documentos visuais que retratam a segunda metade do século XX, amplia e fortalece o arquivo do CIPA”.
Está diferente a velha Afurada. Afidalgou-se para os turistas. As tascas e tabernas aperaltaram-se. Proliferaram as esplanadas. Até os preços se aprimoraram…
Um Mundo a acabar? A Afurada perdeu algum do seu pitoresco e alinhou por modas ‘made in’, mas a alma das suas gentes manter-se-á viva enquanto houver pessoas como a ‘Lola das Lampreias’ que, na abertura da exposição, interrompeu a cerimónia e, virada para o vídeo que acabava de ver, exclamou:
‘Bonita, bonita é esta Afurada e não a que temos agora. Estamos para aqui fechados, sem transportes”.
A exposição, de que o programa ‘Portugal em Direto’ da RTP1, na passada segunda-feira, fez uma criteriosa reportagem, estará patente até ao dia 4 de julho, no CICA.
Merece uma visita. Pelo valor histórico-etnográfico; pela riqueza documental, pela beleza da fotografia feita de luz e sombra – símbolo dum povo trabalhador e devoto que, mesmo em grande penúria, nunca deixou de festejar o seu santo padroeiro.
(28/6/2023)
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