O Tanoeiro da Ribeira

domingo, dezembro 31, 2006

No último dia do ano…

Eu e meu primo Manuel Joaquim, quando éramos estudantes, tínhamos,nas férias, como confessor o senhor Abade de Sobrado, Pe. Agostinho Freitas.
Na tarde do último dia do ano, sempre lá íamos para fazer a “revisão” da consciência….Era um ano a ser passado a pente fino… Ora íamos de bicicleta, de bicicleta de motor ou a pé.
Recordo, especialmente, um ano em que fomos a pé. Quando íamos a entrar em Sobrado, veio-nos à mente a nossa situação de sãomartinhenses que sempre gostavam rir à custa dos de Sobrado, a “Terra do ÓH!...ÓH!...ÒH!... “
Começámos a comparar os marcos hectométricos e, logo, meu primo sentenciou: - os de Sobrado são “botrióides”. E eu, sabendo quão isenta era aquela opinião, logo dei a minha total anuência: - Não há dúvida: são botrióides, sim senhor!... E vimos que os marcos colocados em S. Martinho eram muito mais elegantes, os de Sobrado eram mesmo botrióides… E rimo-nos, a bom rir. Se os de Sobrado soubessem do que nos ríamos, correr-nos-iam à pedrada. Foi o início de uma longa brincadeira.
Sobrado é conhecido como a “terra do óh!”, porque, na festa de S. João de Sobrado, os Bugios (os cristãos), fazem grandes correrias, dão saltos e gritam, repetidamente: óh!...óh!...óh!... Enquanto os mourisqueiros (os mouros ) conservam uma atitude cheia de pompa e dignidade.
Sobrado também é conhecida como “a terra da broa d’unto”. Conta-se em S. Martinho que, certo dia, um homem de Sobrado, quando, à noite, vinha do moinho com a sua burra carregada de taleigas de farinha, viu uma coisa estranha no rio Ferreira.
Temendo tratar-se de coisa “roim”, seguiu o seu caminho. Quando chegou a casa, contou o sucedido e logo os vizinhos se juntaram para irem ver de que se tratava. Armaram-se de armas e sacholas e lá foram. Quando chegaram ao local, um gritou: - É uma broa de unto!... E logo todos se lançaram à água para ver quem era o primeiro a apanhar para si a famosa broa de unto. Agarraram, agarraram, mas a broa sempre lhes fugia… Até que regressaram a casa, desanimados, e a concordarem que deveria ser “coisa-do-outro-mundo” porque todos lhe deitaram a mão e não foram capazes de a apanhar… Cá par nós que ninguém nos ouve: a estranha broa de unto não era mais do que a lua cheia reflectida na água tranquila do rio…
Contava-se ainda que, certo dia, os de Sobrado resolveram construir um novo moinho. Homens empreendedores, logo deitaram mãos à obra e, passados uns meses, lá se levantava um belo moinho com um rodízio novo. Quando os foguetes já estrelejavam no ar, alguém lembrou-se: - e a água? - É verdade onde está a água?, repetiram todos… É que tinham construído o moinho no cimo de um monte e ninguém se lembrou da água para o moinho… E um moinho de água… sem água…
Mais ainda, dizia-se que, certo dia, tiveram que tocar o sino a rebate por causa de um incêndio. Mas o senhor abade não estava em casa e ninguém tinha a chave da torre para subir ao sino. Então, logo um resolveu a situação: - vamos a casa buscar gigas, pômo-las umas por cima das outras até chegar ao sino. Muito bem!... E todos correram a suas casas. E passados uns momentos, já as gigas se amontoavam umas sobre as outras…Quando já estava a chegar ao sino, as gigas acabaram. Pouca sorte! Só faltava uma para lá chegar… Mas, como pessoas resolutas e inteligentes, logo um dos presentes sugere: - Não há problema, tira-se a giga de baixo e põe-se em cima. - Correcto! exclamaram todos. E logo começaram a tarefa: tiravam a giga do fundo e colocavam em cima… repetiram várias vezes a operação mas nunca mais chegaram ao sino… E a cavada foi toda queimada…
E outras histórias fomos recordando, à medida que caminhávamos para a igreja de Sobrado… Também lembrámos que os de Sobrado diziam que os de S. Martinho, num dia de Compasso, quando viram um coelho a passar junto deles, logo lhe atiraram com a cruz… mas não mataram o coelho…
Não sei se meu primo se confessou ao senhor abade do pecado de irmos a gozar com a fama dos seus paroquianos. Se confessou, ele não me disse qual a penitência que o confessor lhe deu… Eu, cá por mim, para evitar complicações, não confessei. Não sei se se tratou de pecado mortal; se era, fiz uma confissão mal feita… e ainda estou em pecado porque nunca me confessei de tais maldades….

terça-feira, dezembro 26, 2006

EM BUSCA DA PAZ DE ESPÍTITO

Hoje, de manhã, na minha “sala de leitura matinal”, veio-me à mão a revista Noticias Magazine publicada pelo JN, na véspera de Natal. Comecei a ler com alguma curiosidade porque, logo no editorial, se afirmava: “ Este ano partimos em busca do Natal mais português distante dos centros comerciais e das árvores cheias de enfeites”.
Depois de ler o artigo “ Os burros mostram a sua raça” que fala longamente sobre a “preservação dos burros mirandeses”, dei de caras com uma entrevista em que o articulista escrevia: “ Paz de espírito é tudo o que procuramos na vida. O melhor presente de Natal que podíamos receber. Mas onde encontrá-la, em que gene ou prateleira de hipermercado? Nem num nem noutro lugar, mas talvez nas palavras do padre e biólogo Luís Archer, oitenta anos dedicados a Deus e à ciência”

A Entrevista – Paz de espírito

Li com a máxima atenção, não só porque também eu busco a “Paz de espírito” mas também porque este padre, sem o saber, marcou profundamente a minha vida. Assim nasceu este texto.
Achei curiosa a forma como a jornalista Isabel Stilwell inicia a entrevista: “ Sabe quantas entradas encontrei na Internet quando escrevi no Google as palavras “paz de espírito”? Nove milhões trezentas e quarenta mil. Pelos vistos há muitos à procura do mesmo…”
Não vou transcrever toda a entrevista, embora ela o merecesse, mas limitar-me-ei a algumas das falas do entrevistado que mais me tocaram.
. A alegria e a tranquilidade moram na paz de espírito, são sintomas de quem se sente inteiramente bem consigo mesmo e com os outros. Em que tudo está certo.
. A paz de espírito pode discutir-se de muitos pontos de vista: o filosófico, o médico, o biológico, o psicológico. Sobretudo o religioso. Todas as religiões dão uma importância enorme à paz interior. Para algumas, como o hinduísmo e o budismo, é uma preocupação central. Aliás, também o é na religião cristã, ao contrário do que muitas vezes se pensa. Isaías profetizou, muitas vezes, a vinda do “Príncipe da Paz”. E quando Cristo nasceu os anjos cantaram “Paz aos homens por Ele amados”. Ou seja, a todos. A paz de espírito para o cristão está na consciência muito enraizada de ser amado por Deus. Mas isto não acontece de um dia para o outro, é um processo de maturação. E a paz verdadeira e completa é um dom de Deus.
. Sim, um presente de Deus. Não é qualquer coisa que resulte de truques nossos. Ele é que nos traz a paz, se nós deixarmos. Mas é um dom oferecido a todos.
. Pode e deve-se. Sem perder a paz de espírito, reconhecer a injustiça e fazer tudo para a combater. Mas esse combate é uma actividade, mas não uma inquietação; aí é que está a diferença. Não me afasta de mim mesmo nem de Deus, nem me faz perder a cabeça. A irritação é o contrário da paz, é um conflito entre aquilo que acho que devia acontecer e aquilo que vejo que acontece. Mas numa posição cristã a pessoa olha para os injustos não com raiva mas com amor.
. (…) devo fazer tudo o que está nas minhas mãos (como se tudo dependesse só de mim) mas em paz de espírito, e depois confiar que Deus me dará o que é melhor para mim e não necessariamente aquilo que queremos.
. (…) Formei-me em Biologia e depois entrei para a Companhia de Jesus e fui ordenado padre. Em seguida fui trabalhar para o mundo da ciência porque os jesuítas acharam que era importante ter gente nessa área.
. A paz de espírito só se consegue quando superamos o ódio, a inveja e todos esses sentimentos que nos impedem de amar os outros como a nós mesmos.
. ( Quando olhava pelo microscópio e descobria qualquer coisa nova) é uma sensação extraordinária de ser cocriador com Deus. Mais do que descobrir, fazem-se organismos novos, continua-se a criação… E acima de tudo isso louva-se a Deus.
. É obvio que essas ideias ( Deus castigador e vingativo; pecado e culpa) tiram a paz de espírito e são contra a mensagem de Cristo e dos Apóstolos. Essa mensagem é de salvação, de esperança e fé no amor de Deus e na Sua misericórdia, no Seu perdão para todos os homens de boa vontade.
. Ter paz de espírito não significa que se está isento de passar, ou ter passado, pela noite escura, por provações. Cristo diz, a certa altura, “Pai, porque me abandonaste?”, mas consegue sempre dizer” que seja feita a Tua vontade”. Morreu de forma violenta, mas em paz, sem revolta, entregando voluntariamente ao Pai o seu espírito. E nota-se quem vive essa paz! Vê-se na cara…
. Nota-se na cara, nas pequenas reacções, não passa despercebido. Lembro-me, de repente, do dia em que no Instituto Gulbenkian da Ciência ficou tudo inundado e perdemos todos o nosso trabalho. Aí distinguem-se logo as pessoas para quem o seu deus é o trabalho e as pessoas para quem Deus está acima. Estas ficam tristes, claro, mas pensam: “ O importante é que a Ti, Senhor, não te perdi.” Vê-se a paz profunda a léguas, mesmo se à superfície houver uma turbulência horrível.
. ( A ideia da morte, do envelhecer e do sofrimento) Não complicam, porque o meu Deus não envelhece nem morre. Identifico-me com o que Teilhard de Chardin escreveu na sua obra Le Milieu Divin: “ Quando o meu corpo começa a mostrar os sinais do desgaste dos anos, no momento doloroso em que eu reconheço que estou doente ou que estou a ficar velho, especialmente no momento final quando quiser sair de mim próprio, absolutamente sem controlo das grandes forças desconhecidas que me formaram, nessas horas de escuridão, dá-me , meu Deus, a compreensão de que Tu separas dolorosamente as fibras do meu ser para que possas penetrar na medula da minha substância e levar-me para junto de Ti”.

O Pe. Archer na minha vida

Que me leva a afirmar que este Jesuíta, doutorado em Biologia e licenciado em Filosofia e em Teologia, especialista em questões de Bio-Ética, marcou a minha vida?
Eu conto.
Andaria eu no 2º ou 3º ano de Teologia, quando, certa tarde, me apareceu, no Seminário Maior do Porto, um sacerdote de Lisboa, chamado Pe. Fernando Maurício, que desejava falar comigo. Surpreendido, porque ignorava os motivos para essa conversa e nunca ouvira falar em tal sacerdote, recebi-o no meu quarto. Disse-me quem era e ao que vinha.
Era sacerdote da Diocese de Lisboa e acabava de fazer um ano de retiro nos Jesuítas em Braga. O seu objectivo era fundar um Instituto Religioso (“Regnum Dei” ) para evangelização do Alentejo. Já falara com o senhor Arcebispo de Évora que ficara muito satisfeito e disponibilizara, para sede do Instituto, um Convento em Alcácer do Sal. Andava, agora, pelos seminários de todas as dioceses do País a contactar com os seminaristas. Conversava com os padres e convidava dois seminaristas dos que lhe fossem aconselhados: queria que Portugal inteiro estivesse presente nessa acção evangelizadora. Era a vocação missionária portuguesa a concretizar-se dentro do próprio território nacional. O meu nome tinha sido apontado como um dos escolhidos e, logo, me indicou o nome do outro, que seria o Elisário (é curioso que o Elisário, na véspera deste Natal, telefonou-me a desejar um Santo Natal). Fiquei contente com a escolha do colega porque éramos amigos desde o primeiro ano do seminário. Faríamos um ano de noviciado/retiro. Depois, iríamos para Roma completar o curso de Teologia e fazer uma especialização (no meu caso, faria Direito Canónico para tratar da criação jurídica do Instituto). Depois de ordenados, ficaríamos a residir em Alcácer e, de carro, percorreríamos o Alentejo em missão evangelizadora. O projecto pareceu-me interessante até porque correspondia ao meu ideal de um sacerdócio ao serviço da missionação e da pobreza.
Depois de aprofundar a minha reflexão, com longas conversas com o Director Espiritual do Seminário, Peº Agostinho Cunha, acabei por aderir ao projecto. Pedi ao Reitor do Seminário, Monsenhor Miguel Sampaio, para soliciatr autorização ao Senhor Bispo D. Florentino, Administrador Apostólico da Diocese, durante o exílio do Bispo Residencial, D. António Ferreira Gomes. D. Florentino mandou-me dizer que não se opunha à minha vontade mas que, se era meu desejo trabalhar com os pobres, também o poderia fazer na nossa Diocese. Expus aos meus pais os meus planos. Também estes não se opuseram à minha vontade, embora minha mãe tivesse vertido algumas lágrimas. Ficou tudo decidido. Ainda me lembro de num retiro, quando o conferencista falava do cuidado que os padres deveriam ter com as empregadas que contratassem para suas casas, eu e o Elisário trocarmos olhares como que a dizer: “ isto não nos diz respeito.”
Estava já tudo decidido, já me considerava membro do novo Instituto e já me via por terras alentejanas a falar de Cristo a comunidades descristianizadas. Mas eis que, certa tarde, aparece-me o Pe. Fernando e diz-me: Não vamos para Alcácer. Vamos para o Alfeite (?) trabalhar com os operários. Vou alugar uma casa onde passaremos a viver. Fiquei como que atordoado com o inesperado da notícia e a forma tão autoritária como me foi comunicada. O que justificaria tão abrupta mudança de objectivos? Ainda fiz algumas perguntas, muito objectivas: quanto vamos pagar de aluguer e com que dinheiro o vamos pagar? Falou-me em oito contos mensais e que ele ganhava o suficiente para o pagar. – Mas de que vamos viver? As respostas começaram a ser pouco satisfatórias… E as dúvidas surgiram no meu espírito: serei capaz de viver uma vida em comunidade com quem altera de projectos tão facilmente e sem qualquer consulta aos outros membros? Expus as minhas interrogações ao P. Agostinho que me aconselhou a consultar o P. Tobias Ferrás, jesuíta, que vinha semanalmente confessar ao Seminário. Assim o fiz. Perante a minha pergunta se teria espírito para aguentar a vida em comunidade, ficou hesitante e disse-me para ir falar com o outro sacerdote Jesuíta que, nos últimos tempos, o acompanhava nas vindas ao Seminário, o Pe. Luís Archer: era mais novo, tinha uma experiência diferente. E lá fui eu expor as minhas dúvidas. O Pe. Luís ouviu-me, tranquilamente, até ao final sem interrupções e, no fim, sem qualquer hesitação diz: - Não vás. Não vais aguentar a vida em comunidade. Foi a machadada final. Ficou decidido.
Durante as férias grandes, o P.e Fernando encontrou-se comigo em casa dos meus familiares em Rebordosa onde eu passava uns dias de férias. No final da conversa, disse-lhe com toda a clareza que me desligava do seu projecto. Não expliquei os motivos para o não magoar. Afirmei que chegara à conclusão que não tinha espírito comunitário. E invoquei a opinião do Pe. Luís Archer. Ficou magoado com a minha atitude. E eu senti que fui marginalizado…pois nunca mais falou comigo, embora continuasse a vir ao Seminário, falar com o Elisário que aderiu ao projecto…e convidar outros possíveis aderentes… O que é facto é que o Instituto foi criado e, não sei porquê, teve como sede o convento de Alcácer de que o Pe. Fernando me falara no nosso primeiro contacto, embora os seus membros, pelo menos alguns, tenham abraçado a vida de “Padres Operários”.
Este episódio foi muito importante e teve reflexos na minha vida futura. Ressalto dois momentos. Primeiro – No meu primeiro ano de sacerdócio, era eu coadjutor de Santo Ildefonso, o D. Florentino chamou-me e disse-me: - Vamos iniciar um trabalho social e pastoral junto dos bairros camarários. A primeira experiência vai realizar-se no bairro do Cerco do Porto. Como sei, quando pensou ir para o “Regnum Dei”, que gosta de exercer o seu apostolado junto dos pobres, lembrei-me de si. Por isso, ficará a ser o responsável pela Obra dos Bairros. Deste modo, fui parar ao Bairro do Cerco do Porto.
Segundo- Quando iniciei a minha actividade no Bairro, assumi claramente que estava em terra de missão (não era o Alentejo, mas…). Este foi o vector que norteou toda a minha actividade pastoral.: pobre no meio de pobres. Fui viver para o bloco 15. Comecei a celebrar na escola primária no Cerco; no bairro de S. Roque, adaptei a capela as antigas instalações dos serviços de limpeza do bairro. Procurei inculcar nos praticantes a ideia de que “ o dinheiro tem feito muito mal à Igreja, mas o dinheiro é necessário na Igreja”. Aderiram ao projecto. Inscreveram-se como ofertantes. Havia uma Comissão Administrativa que recolhia e geria todo o dinheiro da paróquia e pagava-me uma mensalidade para me sustentar. E os meus serviços eram gratuitos para todos: baptizados, casamentos, funerais, missas de corpo presente, 7º e 30º dias.
Deste modo, a minha presença junto das pessoas não se revestia de qualquer interesse económico. Era um vizinho entre vizinho, um pobre entre pobres, um amigo entre amigos…
E foi no Cerco que conheci a Olga Castro que tinha uma amiga que se chamava Anita. E essa Anita é minha esposa há 31 anos… Obrigado, Pe. Archer!... Que a "Paz de espírito" habite em mim!

quinta-feira, dezembro 21, 2006

INFÂNCIA REVISITADA – PERIPÉCIAS III

Com os meus irmãos…

Éramos três filhos: o José Joaquim, mais velho que eu 12 anos, meu padrinho a quem sempre chamei “Padrinho” (nunca irmão), tratei por você e com quem dormia na cama quando criança; o António, mais velho do que eu dez anos, bom companheiro e grande compincha, e que já faleceu e eu que era o “testo da panela” que nascera quando já não se esperava. Diz-me a minha prima Zezinha Terrafeita que se constava na aldeia que eu nascera devido a um momento de maior alegria de meu pai, motivado por uma pinguita a mais, no dia da comunhão solene dos meus irmãos que comungaram no mesmo dia (um com 11 e outro com 9 anos). Fazendo as contas… até pode ter sido… Mas não foi por causa disso que eu fui menos amado. Bem pelo contrário, era o centro da família: o brinquedo dos meus irmãos e a preocupação dos meus pais – tive mimos que os outros não tiveram…
Das muitas peripécias que vivi com meus irmãos, destacarei apenas algumas que me perecem mais significativas…

1. “Padre Nosso…

Era eu muito pequeno, apareceu na aldeia um gato vadio, abandonado, elegante no seu porte de gato de cidade, felpudo com um comprido e sedoso pêlo branco. Era bonito aquele gato, um bicho fino e porque fino não caçava ratos, preferia banquetear-se com pintainhos e frangos, o raio do gato. Era fidalgo, como dizia minha mãe. De dia, atacava tudo o que fosse pintainho ou frango pequeno e, de noite, assaltava as capoeiras. Era um desassossego para toda a gente. A sua condenação à morte foi lavrada sem apelo nem agravo pelas mulheres do lugar lideradas pela tia Rita Queiroz. Mas, como que adivinhando a sentença que lhe fora aplicada, o dito cujo desaparecia de dia e, de noite, só se dava pela sua presença quando ,de manhã, se viam penas de frango espalhadas junto das capoeiras.
Porém, certa tarde de domingo, ele fora avistado nas proximidades de minha casa. Alertada por tal inusitada aparição diurna, logo a rapaziada da aldeia se juntou para uma batida. Fazendo grande algazarra e batendo com tudo o que provocasse barulho, desde tachos a panelas e testos, encurralaram-no no sótão de minha casa e, aí, num golpe de mestre, o senhor Moisés Vieira, agarrou-o e, batendo com ele pelas paredes, evitava que ele o arranhasse e… assim morreu. E o Tio Moisés transformou-se num herói para toda aquela pequenada que batia palmas perante tão inesperado espectáculo. Foi uma festa!...
Apesar de comer os pintainhos, um animal tão soberbo merecia um enterro a condizer. Organizou-se a procissão que conduziria o defunto até junto de uma pereira, ao fundo da nossa cortinha. Na frente, seguia um rapaz com dois paus cruzados a imitarem uma cruz; quatro dos rapazes mais velhos pegavam-lhe pelas patas; meu irmão António, com um saiote branco da mãe enfiado pela cabeça, fazia de padre, botava a reza e todos os acompanhantes (eu era um deles: que idade teria, se meu irmão António, mais velho dez anos, ainda se prestava a este papel?), respondiam em coro:
António - “ Padre Nosso
Todos - Rilha o ósso.
Rilha tu
Qu’eu já não posso”
E a reza repetiu-se durante todo o cortejo fúnebre.

Nunca mais me esqueci dos dentes “ arreganhados” do gato. Esta imagem perseguia-me e aterrorizava-me. Meu padrinho, quando nos íamos deitar, virava-se para mim com os dentes “arreganhados” e os dedos em forma de garras abertas só para me ouvir gritar: - Ó mãe! – Que é João! - É o padrinho a fazer caras feias!...- Maluco, não metas medo ao menino!... Deitava-me com aquela imagem assustadora e, para ter a certeza que não era o gato que eu estava a ver na escuridão, fechava os olhos e encostava-os às costas do meu padrinho e pensava cá para comigo: não, não é o gato porque aqui ficam as costas do meu padrinho!... E tocava-lhe para me certificar…
O que uma criança sofre…

2. Dá aqui!...

No verão, quando o milho andava a secar na eira, meus irmãos dormiam na “batediça” para o guardar: não podemos esquecer que era tempo de muita miséria e de racionamento dos produtos alimentares por causa da guerra… Dormiam os dois numa cama escondida atrás do erguedor.
Um dia ao fim da tarde quando meus irmãos e várias raparigas do lugar procediam ao “ meter o milho dentro” (o milho era espalhado na eira de manhã e, à noite, recolhia-se na “batediça”), meu padrinho pegou na pistola que tinham debaixo do travesseiro para o caso de aparecerem ladrões, e apontando-a para a Maria da Laura, diz:- Ó Maria, se eu quisesse…- Olha dá aqui…, responde a Maria ao mesmo tempo que lhe virava o rabo e apontava para a nádega direita. De repente, ouve-se um tiro e uma bala silvou e faiscou nas pedras da eira… Ficou tudo petrificado, sem sangue. Meu padrinho ficou branco como a cera. A Maria tremia… Graças a Deus, ninguém se feriu. E logo ali foi selado um pacto de silêncio para meu pai não saber. O pior era o pequenito que assistiu a tudo… - O João, tu não dizes a ninguém, nem à mãe!, ordenou-me meu padrinho – Stá bem eu não digo.
O que se passou? Meu padrinho puxou pelo gatilho, convencido que a pistola estava travada. Mas é que o António, antes, sem ele saber, tinha-lhe mexido e puxara a bala ao cano… E ela disparou…
Eu cumpri a promessa. Os pais não souberam de nada. E meu padrinho safou-se de grande castigo. Ainda dizem que as crianças não são capazes de guardar segredos…

3. Nariz e orelhas grandes…

Certa tarde, fui levar a merenda a meus irmãos que andavam a cortar mato na cavada da Seixosa. Enquanto comiam, o António vira-se para mim e diz: - Ó João, tenho estado a olhar para ti… Já reparaste que o teu nariz e as tuas orelhas são quase do tamanho das nossas? Repara para o teu tamanho. És muito mais pequeno que nós. O nariz e as orelhas vão crescer como o teu corpo e tu vais ter um nariz enorme e uma orelhas maiores que um burro, quando fores grande. E o meu padrinho, muito sério, confirmava as afirmações do irmão. Fiquei muito aflito e, quando cheguei a casa, desabafei à minha mãe. Ela sossegou-me. – “As orelhas e o nariz não crescem como o restante corpo”. E, à noite, lá estava a ralhar com eles: - “Seus malucos, só consumis o menino!...” E eles riam-se…

4. "Dido estoufo…"

Noutra ocasião, na mesma cavada, meus irmãos disseram-me que me iam ensinar um jogo. Encantado! – Nós dizemos uma palavra sempre começada por “dido”: por exemplo, “DidoPorto” e tu repetes a mesma palavra mas com o “dido” no fim: neste caso tu, responderias “Portodido”. Percebeste? Então vamos lá jogar. Começam eles: Didolisboa e eu Lisboadido. Didocoimbra e eu Coimbradido. Eles insistem, tens de ser mais rápido. Didocasa e eu Casadido; Didobola e eu Boladido;. Mais rápido! DidoRibeira e eu: Ribeiradido; Didopedra- Perdadido; Didopão - Pãodido; Didoquero – Querodido; Didoportugal - Portugaldido; Didoestoufo- Estoufodido. O quê? Interrompem eles com cara de muito escandalizados. - Disseste uma asneira! Vamos dizer à mãe. - Não disse nada. - Olha então repete: didoestoufo e eu -estoufodido Vês repetiste a asneira. Tu disseste “estou fodido”. Só então percebi na esparrela em que tinha caído. E comecei a chorar. Eles pegaram em mim ao colo e, a brincar, atiraram comigo para cima de uma mouta de mato. - Não vamos dizer nada, só estávamos a brincar contigo. Mas nunca mais joguei com eles este jogo.
Criança sofre…

5. “ Procurem o touro!...”

Aquederrei”!... “Aquederrei”. Os gritos ecoaram na noite e vinham da casa da tia Margarida Leoa. Já escurecera há muito e toda a gente se havia recolhido em suas casas. Meus irmãos estavam a pensar o gado. Mal ouviram, largaram tudo e correram a socorrer - “ Que foi?... Que aconteceu?” - A porta está aberta e o toiro não está lá dentro. Roubaram-me o toiro, berrava a tia Leoa. Em tempo de miséria como aqueles para uma família pobre de três mulheres, caseiras da Cerqueda, um toiro era uma fortuna.
Meus irmãos, as filhas da casa, a Emília e a Palmira e outros rapazes que acorreram, agarraram em enxadas e foicinhas e lançaram-se à procura do ladrão. A noite estava escura. -“Está ali um homem atrás daquelas silvas, grita a Palmira. – Onde? – “Ali!...” E um homem, escorraçado, irrompe e desata a correr. -Ele vai a fugir”! Meus irmãos perseguem-no e só ouviam ele dizer: - “Não fui eu! Procurem o toiro!..”. Quando já estava mais próximo, meu padrinho arremessou-lhe uma enxada que quase o ia apanhando. Quando se viu em perigo, o vulto parou e berrou.- “ Sou eu, Zé Jaquim!” Meu padrinho ficou estarrecido, ia matando o professor Guedes que tinha sido seu professor. – “ Procurem o toiro!..”. Toda a gente ficou embasbacada – “ O Professor Guedes?!... Voltaram para casa à procura do toiro. E foram-no encontrar noutra corte. Alguém da casa, por engano, tinha-o metido numa corte que não era a dele…
Coitado do professor Guedes!... Que pouca sorte a dele! Há cada coincidência!... Que andaria ele a fazer por aqueles sítios escuros, àquela hora da noite? Aulas nocturnas? Nunca ninguém teve a ousadia de lhe perguntar nem ele disse. Mas da fama não se livrou e a sua postura de homem respeitável foi fortemente abalada. A Tia Leoa era uma viúva nova e pobre, mas de quem nunca se tinha ouvido dizer nada… Ao Professor Guedes não lhe interessavam os toiros… Regente escolar, solteirão (?), já adiantado na idade, procurava outras rezes e outras aves… Ia-lhe ficando cara aquela aventura de apaixonado serôdio… E o meu padrinho poderia ter cabo da sua vida por causa de um engano de mulheres… Conclusão?...

6. As luzes do “outro mundo”

Meu padrinho chegou esbaforido naquela noite. Minha mãe e eu acordámos estremunhados. – “Que foi, Quim?” – Eu não volto para Godas!..., dizia, branco como a cal.
Naquela noite luarenta de Junho, era nosso o “engenho da varge”. O António andava no engenho a tocar os bois; meu padrinho, depois do “Areal”, estava a regar o campo de Godas; meu pai percorria o rego para que ninguém roubasse a água para os seus campos e ia dando apoio ora a um ora a outro filho.
Quando andava a regar ao cimo de Godas, meu padrinho viu, ao longe, no valado que descia para o rio, umas luzes a tremeluzir e gritou: “Podeis aparecer que não me meteis medo!... Era vulgar a rapaziada, para meter medo a algum colega que andava, aparecer com luzes e imitar vozes estranhas como se fossem do outro mundo. E continuou a regar: talha aqui, talha ali… Mas, de repente, ao levantar a cabeça, vê as luzes já muito próximas. – “ Quem sois? Pergunta. E nada, só o silêncio da noite … Mais um bocadinho e as luzes rodearam-no por completo. E, quando ele ia a guiar a água, as luzes colocaram-se no local onde ia espetar a talhadoira de lousa. E não aparecia ninguém!... Ele perdeu a fala. Os cabelos eriçaram-se (até os meus ainda se eriçam agora que estou a recordar esta passagem…). Virou a água para os pés do milho, largou a enxada, pegou nos socos na mão e desatou a correr para casa. Aquilo era “coisa roim”, almas do outro mundo!... (Porque quem morresse sem pagar uma promessa ou mudasse os marcos de um terreno não tinha descanso enquanto a promessa não fosse cumprida ou os marcos não voltassem para o seu lugar – falava-se de marcos que durante a noite eram repostos nos seus antigos locais… E então quem se suicidava como “ o do gaio” - nunca se pronunciava o seu nome- que se enforcou numa cavada de S. Gens?!...)
Passado pouco tempo, chegava meu pai aflito porque o Quim não estava em Godas!... Que lhe teria acontecido? (Que falta faziam os telemóveis!...). Quando viu o filho e este lhe contou o sucedido, meu pai, homem de coragem, regressou sozinho ao campo para não deixar perder a água que os bois na Varge continuavam a tirar e não encontrou nada de estranho.
O que terá visto meu padrinho? Borboletas que reflectiam a luz do luar? “Arincús ( assim se chamavam os pirilampos na minha terra) ? Fogo-fátuo? Terá sido pura ilusão? Ele sempre negou. E não era medroso, porque, a partir daí, continuou a regar de noite. E não era aldrabão como muitos dos rapazes nossos vizinhos (o campeão era o ti Zé Rocha.). Todos contavam visões de “coisas roims”, abantesmas, galinhas pretas com pintainhos que, à meia-noite, voavam como andorinhas; cães enormes que os seguiam passando as paredes sem saltarem e muitas outras coisas mirabolantes que os engrandeciam aos olhos de quem os ouvia, como rapazes valentes e sem medo (e eu era um ouvinte atento e atemorizado. Ainda hoje sofro de terrores nocturnos por causa dessa influência infantil. Essa é a razão pela qual nunca falei nem permiti que se falasse destes assuntos à frente dos nossos filhos quando eram crianças…)


7. A chamuscadela das sobrancelhas

Certa noite, andava eu com um gasómetro a alumiar o António que regava o campo do Traganhal. Não sei por que lá andava naquela noite? Estaria muito escuro? Estaria o António com medo de andar sozinho? Não sei porque ninguém mo disse e as “criança não tem que perguntar”. Só sei que ia “arranjando um estrugido”. O gasómetro era uma espécie de candeeiro a gás. Era o que os mineiros, da ardósia na minha terra e os do carvão em S. Pedro da Cova, usavam quando desciam para o fundo das pedreiras e que provocaram várias explosões nas minas de carvão por causa do grisu. Não sei porquê, o gasómetro apagou-se: o vento, uma folha de milho que lhe bateu? Só sei que se apagou. Então, eu, menino armado em espertinho… há que o arranjar. Sem dizer nada, abri-o e deitei-lhe água. Ao contacto com a água, o carboneto explodiu e o lume lambeu-me as sobrancelhas e queimou-me a parte da frente do cabelo. Mas, arranjado o gasómetro, o trabalho da rega continuou. Quando, de manhã, minha mãe me viu sem sobrancelhas e com o cabelo queimado ficou muito aflita e quem apanhou um ralhete foi o António… Muitas injustiças se cometem!...Desculpa, querido irmão! Como eu gostaria de, ainda hoje, estar contigo a regar o campo do Traganhal…


8. “Seu stapor”

Meus irmão andavam a talhar mato na nossa cavada de S. Gens. Ao fim da tarde, eu e o Tio Adão fomos ter com eles, levando o carro para trazer o mato para casa.
O António subiu para cima do carro enquanto o meu padrinho e o Tio Adão lhe chegavam as moitas de mato. Eu guardava os bois que pastavam. E o mato no carro foi crescendo. Quando já todo mato estava carregado, chegou o momento de o atar com uma enorme corda que o prendia ao carro. Enquanto o António, em cima do mato, o pisava com toda a força para que ele se comprimisse o mais possível, em baixo meu padrinho retesava a corda que o tio Adão puxava. Ou porque puxaram de mais ou porque a corda estava fraca, a verdade é que esta se partiu e meu padrinho caiu de costas para trás, dando um enorme “vira-cu”. Ficou furioso. A assistir a tudo isto estava, impávido e sereno, o nosso cão, o “lulu”- um belíssimo cão de pêlo branco e comprido, muito bonito para cão da cidade mas que não prestava como guarda porque não metia medo a ninguém. (Foi o único cão de que eu gostei e que me acompanhava para todo o lado: eu gostava mais dos gatos…). Além de bonito, tinha um porte distinto e parecia que estava sempre a rir-se. Ao levantar-se, meu padrinho viu o “lulu” e berrou:- ” Seu stapor, tu ainda te estás a rir?!...” E um soco voou e acertou em cheio no infeliz que não teve culpa nenhuma e fugiu a ganir … e foi esconder-se atrás de um pinheiro enquanto nós nos ríamos do trambolhão do meu padrinho. Quem é que não se riria? “ Só nos rimos do mal…”, diz o povo.

9. O abelhão.

Noutro dia, andavam meus irmãos ao mato na cavada de Negral de Baixo, quando um abelhão se levantou de uma “touça” de mato. E, de imediato, deu em cima do meu padrinho que se pôs a correr para se livrar dele.. Mas, qual quê! Meu padrinho bem rodeava pinheiros, eucaliptos, sobreiros… mas… o abelhão sempre atrás dele. Enquanto isso, o António, apoiado na enxada e o pé direito em cima de uma moita ( parece que ainda o estou a ver…), ria-se a bandeiras despregadas… Até que meu padrinho, em vez de se encostar a um pinheiro, rodeou o António. Aí, o abelhão largou-o e dá em cima do António que desata a correr como um doido, enquanto que, agora, era o meu padrinho que se ria a bem rir da figura do irmão. Eu, que lá fora levar a merenda e brincava num rego de água que atravessava a cavada vinda da “mina das neves”, assistia atemorizado, com medo que o abelhão ferrasse nalgum deles ou viesse ter comigo. Mas, não, não ferrou e acabou por desaparecer por detrás de uns tojos mais altos …

10. O lobo de Luriz

Luriz fica próximo da casa onde nasci. Estou convencido que o nome do meu lugar, Ribeira, tem a ver com esse lugar. Com efeito, como se justifica o topónimo 2Ribeira" para um local que se situa numa encosta longe do rio da minha terra, o rio Ferreira? Creio que o nome lhe advirá do facto de se situar numa ladeira de fronte de Luriz, separada por um pequeno ribeiro. Seria a ribeira de Luriz.
Luriz era um couto que foi doado a D. Hugo, Bispo do Porto, por D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques. Estendia-se por uma extensa zona rural e, por essa razão, os proprietários dessas terras pagaram, até ao 25 de Abril, um imposto que se chamava “ foro da mitra” ou simplesmente “mitra” . Mitra é um tipo de chapéu que os bispos colocam por cima do solidéu, nos momentos mais solenes dos actos litúrgicos. Por isso, pagar a mitra era pagar o foro ao bispo como foreiros que eram das suas terras. O Couto de Luriz teve tribunal próprio, pelo menos, até ao século XIX, que julgava os crimes cometidos dentro da sua jurisdição. Talvez se deva a isso, o grito de “aquederrei”, muito vulgar na minha terra como um grito de socorro. Será uma corruptela linguística do grito que as pessoas do couto, foragidas à justiça, davam quando alcançavam terra regalenga: “ Aqui d’El Rei”! Como que a dizer: já estou em terra do rei e aqui já não me podeis prender. Era um pedido de socorro aos oficiais do Rei para que os defendessem contra os poderes do Couto. A importância deste couto mede-se, também, pela imponência e beleza da “ponte do Morte” ou “ponte de Luriz”, romano-gótica, sobre o rio Ferreira que dava passagem para o núcleo central do Couto, onde se situa, actualmente, o lugar.
Talvez por essa razão, os habitantes de Luriz sempre se julgaram superiores aos da Ribeira, sendo grande a rivalidade entre estes dois lugares. Se meu pai assumia a liderança da Ribeira, como o maior lavrador num lugar em que quase todos eram caseiros da Cerqueda; em Luriz, lugar de grandes lavradores como os Nogueiras, os Pintos e os Janetes, era o Tio António Arte, o mais importante, que mais se orgulhava da superioridade do seu lugar.
Quando meu pai movia todas as suas influências para que se fizesse a actual estrada que atravessa o lugar, o Tio António Arte disse ao meu padrinho.- “Vós tereis uma estrada quando as galinhas tiverem dentes…”. Logo que meu pai teve a certeza que a estrada ia ser feita, meu padrinho encontrou-o junto do campo das Vinhas e disse-lhe: - Sabe, Tio António, não sei o que se passa em minha casa, parece que está a acontecer um milagre: é que as galinhas estão todas a ganhar dentes…” Ele compreendeu e desviou a conversa.

Um acontecimento veio sobressaltar a pacatez medieval das pessoas de Luriz, fazendo delas motivo de chacota. À noite, começaram a ouvir-se uns uivos estranhos e alguém afirmou ter visto um corpulento animal, que todos consideravam um lobo, a rondar a casa do Arte. Pelo sim, pelo não, as mulheres e crianças deixaram de sair à noite, os homens saíam sempre armados com pistolas ou espingardas e os rapazes formavam grupos para as saídas nocturnas É que o “animal” só aparecia de noite e não era todas as noites. Organizaram-se batidas, grupos de homens revezavam-se na guarda do lugar. Mas, nessas ocasiões, ninguém lhe punha a vista em cima. Quando menos o esperavam, lá se ouviam os aterradores uivos nocturnos. Saíam apressados os homens, mas do animal nem rastos. Já havia quem dissesse que era um leão, mas muitos outros afirmavam tratar-se de “coisa roim”. Até que um dia, na cortinha do Arte, apareceu morto um grande cão que teria morrido à fome tal o seu estado de fraqueza. E nunca mais apareceu o lobo de Luriz que até já era leão ou “coisa roim”. Foi o escárnio geral. Os de Luriz andavam envergonhados. Ficavam furiosos quando alguém, à sua passagem, dizia baixinho: - “Que terá acontecido ao lobo de Luriz?” Meu irmão António até compôs um poema, tipo poesia de escárnio e mal-dizer, que num sábado, pela calada da noite, afixou nas árvores do adro da igreja o que, no domingo seguinte, motivou chistes venenosos e comentários jocosos por parte das gentes da freguesia e grande revolta e vergonha às pessoas de Luriz. Mas ninguém soube que o António Tanoeiro era o seu autor. Se soubessem… E eu assistia a tudo isto, cúmplice e conivente numa atitude de total sigilo. Devo dizer que, também eu, andava com medo do lobo de Luriz.

11. As gemadas…

Para mim era uma alegria quando algum irmão se constipava ou ficava com gripe. O tratamento, além de papas de linhaça no peito, incluía sempre uma gemada. Minha mãe partia o ovo e separava a clara da gema. Batia a gema com açúcar e dava-a ao doente. Por que é que eu ficava contente com a doença de alguém da casa? Porque, como era o menino, minha mãe punha a clara numa colher de ferro, segurava-a sobre a fogueira e dava-me um”ovo estrelado” que, no caso era “clara estrelada”. Que bem me sabia…Era um mimo…para “o olho da panela”.


12. Até as galinhas aprendem…

O nascimento de uma ninhada de “pitos” era um momento de grande preocupação para minha mãe porque, às vezes, nasciam poucos ou porque os ovos estavam chocos ou porque a galinha não sabia aconchegar os ovos debaixo das asas. Era sempre uma incógnita. Depois de nascerem, era uma trabalheira. Começavam por ficar no quinteiro. Quando cresciam um bocadinho, minha mãe, e eu ajudava, levava-os para a eira onde havia sempre milheiros perdidos e muitas minhocas e outros bichinhos que eles comiam: aprendiam a lutar pela vida. Mas à noite, íamos lá acima e enxotávamo-los à nossa frente para virem para o quinteiro, por causa das raposas, das doninhas e outros animais que os podiam comer. Assim, desde muito novos, os pintainhos habituavam-se a atravessar a estrada que fica entre a eira e minha casa. E nunca nenhum ficou atropelado.
Os frangos, as galinhas e os ovos eram muito importantes para a economia doméstica porque, com o dinheiro da sua venda, minha mãe podia comprar o açúcar, o arroz e outros produtos alimentares: à mãe competia a micro-economia familiar, geria o dinheiro que provinha do leite, das galinhas e dos ovos, para a despesa diária. A macro-economia era da competência do pai com a venda do vinho, do milho, das batatas, do gado, dos pinheiros. Coitadita de minha mãe, nos primeiros tempos, às vezes tinha de vender uns quilitos de milho ou de batatas, sem meu pai saber, para fazer frente à despesa diária da casa, mas ficava sempre com problemas de consciência de que sempre se acusava quando ia ao confesso. Eu via esta pequena transgressão mas nunca disse nada. Podia confiar. Um dia, já era eu sacerdote, minha mãe falou-me desses problemas de consciência e eu sosseguei-a: - “Minha mãe, o milho e tudo o que se produzia em casa não era também seu?A mãe não trabalhava? E o dinheiro não era para alimentar a família?” Mais tarde, falei com meu pai sobre esse assunto. E ele, com lágrimas nos olhos, falou-me dos tempos difíceis que vivêramos, quando tinha que pagar “as tornas” aos irmãos de minha mãe. Chorámos os dois… Foi uma cartase…
Por esta razão, em minha casa havia ovos e galinhas mas era para vender… não era para nós… Mais tarde quando já estudante, que bem me sabiam uns ovos que minha mãe estrelava quando o primo Manuel Joaquim aparecia comigo depois da missa!... Era um mimo para quem ela muito estimava e eu...
Meu pai era, de certo modo, uma figura pública, como agora se diz, na freguesia: fora presidente da Junta, regedor, presidente da casa do povo, louvado da fazenda pública e mesmo vereador da Câmara Municipal de Valongo. Quando as pessoas precisavam de ajuda para assuntos de tribunal, da Junta ou da Câmara, outinham problemas com papéis, iam pedir-lhe conselho. (Meus pais completavam-se maravilhosamente: minha mãe era a bondade em pessoa; meu pai era o homem culto e bem informado). Por vezes, ofereciam-lhe um ou outro presente. Quando aparecia um frango como dádiva, eu e meus irmãos começávamos a esfregar as mãos porque sabíamos que, mais dia menos dia, iríamos comer frango. É que, como não estavam habituados, na primeira vez que atravessassem a estrada, a virem da eira para o quinteiro, seriam atropelados. E assim acontecia infalivelmente. Minha mãe, então, acabava de os matar e nós regalávamo-nos com mais um franguinho e com uma canja deliciosa de galinha…
Quando, mais tarde, soube disto, o meu amigo José Ferronha, psiquiatra, concluiu: até as galinhas, que são estúpidas, são capazes de aprender…

13. A lambada de meu pai

Por razões que não cabe aqui explicar, mandei um grande calhau contra uma porta da nossa casa e fiz-lhe um grande buraco (a porta já deveria estar podre…). Fiquei logo a saber que, mais-dia-menos-dia, iria ser castigado por meu pai. Meus irmãos, já sabidos nestas coisas, ensinaram-me - Qualquer dia o pai chama-te, traz- te até junto da porta e pergunta-te quem fez isto, e tu dizes fui eu; pergunta se tu voltas a fazer e tu respondes que não senhor: e depois dá-te uma cachaçada e diz-te se voltas a fazer outras vez… E aconselharam-me como fazer… Quando passava junto dessa porta, já me via a estender-me ao comprido pelo chão adiante. Estava com sorte porque a estrada tinha sido macadamizada havia pouco tempo e os carros, ao passarem, era um curva, atiravam o saibro e a areia para junto da porta que eu furara o que iria atenuar a minha queda e evitar que esfolasse a palma das mãos. Certo dia, meu pai lá me chamou e saíram as perguntas sagradas e as respostas estudadas. Quando eu disse “ não senhor” já a mão vinha no ar e, apenas senti a mão a chegar-me ao cachaço já eu me estendia pela areia adiante com um grande mergulho (lembro-me sempre disto quando vejo um jogador de futebol aproveitar um leve toque do adversário para simular um grande queda…). E as coisas ficaram por aqui. Eu, todo contente pelo sucesso do estratagema, fui ter com meus irmãos ao campo das Lamas e contei-lhes que tudo acontecera como eles me ensinaram… Ficaram satisfeitos por me terem ajudado até porque sabiam que eu não tive culpa naquele arrombo que fiz na porta ( um dia contarei…). Quando, muito mais tarde, já era padre, contei ao meu pai toda esta peripécia, ele, a rir-se confessou: - “Bem me parecia que houve marosca porque a chapada que te dei não era para aquele “estardalhaço” todo”. E rimo-nos. Obrigado, irmãos…

quinta-feira, dezembro 14, 2006

INFÂNCIA REVISITADA – PERIPÉCIAS II

Natal e Festa do Menino

Como era diferente do de agora o Natal da minha infância!...
Não havia árvore de natal e, muito menos, o pai natal. Havia, sim, o lindo presépio da igreja com o Menino Jesus, deitado numas palhinhas; a vaca e o burro a aquecê-lo com o seu bafo; Nossa Senhora, de joelhos, a olhar o filho e S. José, de pé, com uma vara florida na mão, a guardar o Menino; em frente da choupana, pastorinhos com ovelhas às costas e baldes de leite ao ombro, mulheres com regueifas enfiadas no braço, mais atrás, os Três Reis Magos (um era preto) com as suas ofertas valiosas de ouro, incenso e mirra; espalhados pelos montes feitos de musgo, com flocos de neve, muitas ovelhas a pastar, guardadas por pastores vestidos com peles de carneiro por causa do frio e acompanhados por enormes cães de guarda, várias mulheres, umas com açafates à cabeça, outras com bilhas debaixo do braço, desciam a caminho da cabana com ofertas para o Menino; pelas quebradas dos montes, viam-se mulheres a lavar no rio (Jordão), homens a pescar, um moleiro a caminho do moinho com o seu jumento carregado de taleigas e crianças a brincar com rodas e ganchetas; num poço, mulheres, com um balde, tiravam água para os seus canecos; homens de capote e cajado na mão guardavam os bois que pastavam nas encostas menos inclinadas; uma banda de música, toda aprumada e orgulhosa das suas fardas, enchia a estrada que, lá do alto, descia até ao largo onde estava a gruta; mais ao fundo, erguia-se, terrível, Jerusalém, rodeada de muralhas e repleta de palácios onde vivia o Herodes “mau” que queria matar o Menino Jesus e mandou matar “os Santos Inocentes”. Por cima de tudo, uma linda e grande estrela e muitas luzinhas.
No Natal, acendia-se um grande lustre no meio da igreja com lâmpadas coloridas. Que festa!... Era como no céu, dizia-me minha mãe.
E não estávamos à espera de receber prendas. Queríamos, como os pastorinhos e os Reis Magos, levar prendas ao Menino. Para isso, os pais davam-nos uma prenda, grande ou pequena conforme as suas posses, e nós lá íamos levar ao presépio, na missa do dia de Natal (quando era criança, não se celebrava a Missa do Galo na minha terra) quando íamos beijar o Menino. Com que entusiasmo o fazíamos!... E o Menino Jesus parecia sorrir-nos a agradecer!... O nosso prazer, a nossa alegria não estava no receber mas no dar. Era o Menino que nascia, era ele que merecia prendas. As nossas ofertas eram leiloadas no dia da grande festa que fazíamos ao Menino, no primeiro dia de Janeiro. Que enlevo sentíamos quando víamos a nossa prenda na mão do leiloeiro! Os pais, que podiam, ofereciam aos filhos uma camisola nova, umas calças, umas chancas, não por ser Natal, mas para estrearem na Festa do Menino. Assim, o Natal e a Festa do Menino formavam um todo indissociável na sua significação: a consoada de Natal era complementada com a ceia da Festa do Menino. A ceia do dia 31 de Dezembro não celebrava a passagem de ano, mas, sim, a Festa do Menino. O ritual das duas ceias era o mesmo: eu até gostava mais da do dia 31 porque, à meia-noite, víamos, da janela da cozinha, o fogo de artifício que era lançado no adro da igreja que nos ficava de fronte. Como eram bonitas aquelas estrelinhas a colorir a noite de muitas e variegadas cores!...
As travessas com batatas, bacalhau e couves fumegavam no meio da mesa. Nessa noite, comia-se bacalhau à discrição e cada um servia-se à vontade do azeite. Este era do novo que, propositadamente, era feito antes do Natal, no lagar de azeite do Mondega. Em minha casa, havia o costume de fazer-se um molho em que se misturava vinho tinto com azeite que era fervido: todos gostavam, mas eu, muito pequenino enjoei-o e, por, isso, minha mãe sempre punha na mesa uma almotolia de azeite para quem se quisesse servir. Os doces tradicionais não eram muitos, mas eram bons. Limitavam-se, que me lembre, à aletria, às rabanadas e à sopa-seca. As rabanadas eram de vinho tinto e de ovos. Meu pai só gostava das de vinho enquanto eu gostava mais das de ovos. O que dava mais trabalho a fazer era a sopa-seca porque exigia que se aquecesse o forno. Por isso, minha mãe só a fazia uma vez: num ano, no Natal, noutro, no Menino. Só depois de eu casar é que começou a fazer sopa-seca nas duas vezes. (Era um miminho que gostava de fazer à minha Anita que gostava muito deste doce dos pobres que, antes, desconhecia: é só pão, água, açúcar e canela.). Depois da ceia, entretínhamo-nos a jogar o “rapa” aos pinhões cujas pinhas dos pinheiros mansos eram trazidas das cavadas nos dias anteriores: toda a família participava. Os vizinhos mais amigos, depois da ceia, vinham até minha casa para passar um bocado da noite connosco ou para assistir ao fogo de artifício na festa do Menino. E, depois, minha mãe servia sempre um chá a toda a gente.
A Festa do Menino, ponto culminante das celebrações natalícias, ganhava ao Natal em importância social: as raparigas que eram “criadas de servir” no Porto, iam à terra no dia da Festa do Menino e não no Natal. Como era bonito ver aquelas crianças e aqueles jovens passear no adro ,ufanos da sua roupa nova! Que vaidade!... Quantos namoros se iniciavam nessa festa. Era a grande festa da freguesia que atraia à terra todos os que tinham saído para outras paragens e congregava as populações das freguesias vizinhas. De tarde, antes do leilão, saía a procissão que ia dar a volta ao cruzeiro dos Moirais que, nesse dia, estava recoberto de flores: era aí, num púlpito improvisado, que o pregador fazia o “sermão do Menino”. À saída da igreja e junto do cruzeiro, as raparigas esmeravam-se com belíssimos tapetes de flores.
Os mordomos da festa eram os rapazes da terra. Ser mordomo correspondia a um rito de passagem. Era a apresentação à sociedade que correspondia ao baile de debutantes dos "fidalgos" da cidade…Mas importante, importante era ser o juiz. Esse só podia ser o filho de uma pessoa com posses para se responsabilizar pelas despesas da festa. Por isso, numa casa em que houvesse vários filhos, só o mais velho é que tinha que cumprir essa obrigação. Em minha casa, foi o meu padrinho. Ainda me lembro desse dia. E não me esquecerei porque estava com uma tremenda dor de dentes por causa de um dente do leite. Quando, na véspera, a Banda de Música da minha terra veio a nossa casa tocar em homenagem ao juiz e várias dúzias de foguetes estoiraram no céu, eu, agarrado à saia da mãe chorava… Mas, mesmo assim, ainda vim à porta para ver os músicos todos perfilados, com o Mestre Teixeira a dirigi-los. Boas memórias, mesmo com dores de dentes!...
Esta festa só terminou no tempo do Pe. Torres Maia, meu velho amigo e que eu muito admirava como sacerdote, mas que não compreendeu o significado sociológico daquela festa. É nitidamente a situação de alguém que veio de fora e não compreendeu um rito porque desconhecia toda a dimensão do mito que lhe estava subjacente: viu apenas a ostentação e o gasto supérfluo numa paróquia pobre, o que contrariava o espírito do evangelho. Fez tantas coisas boas este meu amigo, mas… “Não há homens perfeitos.”

Os serões nas longas noites de Inverno

A minha casa era, se não a única, uma das poucas casas que possuía electricidade. Meu pai meteu a luz para trazer a electricidade para o lugar. O contador tinha escrito:J.M.D-1936 e o meu pai, a brincar, perguntava o que queriam dizer aquelas letras? E respondia:”Já Morreu o Dono” (Sim, meu pai, agora é a sério. Mas não, para mim tu não morreste. Para além da vida eterna em que acredito, tu vives na minha memória e na daqueles que mais amo - e lembrei-te neste tempo de Natal.). Por isso, nas noites de Inverno, os homens da aldeia vinham a minha casa para jogar a sueca ou a bisca dos nove; reuniam-se à volta da masseira onde minha mãe amassava a farinha que ficava no centro da cozinha. E eu assistia. Meu pai formava sempre par com o Ti Zé Branco, seu velho amigo dos tempos de infância. Eu era sempre pelo meu pai. Mas quando ele jogava contra o meu padrinho, já era pelo meu padrinho e o meu pai queixava-se: então agora já não és por mim? Porém, os momentos de que eu mais gostava e de guardo recordação inesquecível, era quando o meu pai cantava o fado. O meu pai tocava guitarra e o Ti Zé Branco acompanhava-o ao violão. Nessas ocasiões, reuníamo-nos à volta da lareira onde crepitava a fogueira, por baixo da chaminé com salpicões e presuntos a defumarem. Que coisa maravilhosa!... Que bem meu pai cantava!...

Estrada de Santiago

Nas noites muito quentes de verão, quando dentro das casas não se podia aguentar o calor, reuníamo-nos fora da porta da casa. Deitávamo-nos de costas sobre uma pesada pedra de lousa que cobria o poço e que mantinha o calor do sol. Em noites de céu límpido, especialmente, em tempo de lua-nova em que o luar não ofuscava o brilho das estrelas, estas pareciam candeias a iluminar a noite, eram as “ candeias de Nossa Senhora”. Meu pai, sem apontar directamente para as estrelas ( não se deve apontar para as estrelas porque faz nascer cravos nas mãos), falava-me da “Estrela da Tarde”/Estrela da Manhã” do “Sete Estrelo”, das “Três Marias”. Indicava-me a “Estrela Polar” e dizia-me que era por ela que as pessoas se guiavam de noite quando se perdiam. Minha mãe explicava-me que Nossa Senhora era a”Estrela da Manhã” como se rezava na ladainha. E fazia-me reparar naquela mancha esbranquiçada que corria o céu de sul para norte e explicava-me que era a “Estrada de Santiago”. Quem não fosse a Santiago em vida, iria lá depois da morte através daquela estrada que o levava a Santiago. Assim, desde pequenino, Santiago de Compostela entrou no meu imaginário com o desejo de lá ir em vida para não ter de passar por aquela estrada que me parecia tão lá no alto. ... Por isso, logo que tive carro, Santiago, depois de Tui, foi a primeira cidade da Galiza que eu visitei. E ainda hoje Santiago desperta em mim ressonâncias nostálgicas dessa infância, já longínqua no tempo mas tão próxima na memória.

Fogo!... Fogo!... Fogo!...

Gritos de "aquederrei" rasgaram a noite e fizeram estremecer a escuridão: Fogo!...Fogo!...Fogo!... Os sinos da igreja repicaram. Acordámos “assarapantados”. Saltámos da cama e corremos para as janelas para ver onde era. As vozes entrechocaram-se, gritámos em uníssono: é na casa do Gaio!... Ali mesmo perto de nós, ao fundo da nossa cortinha, alterosas línguas de fogo engoliam a noite, os barrotes do telhado rangiam com o fogo, as telhas caíam com estrondo. Meus irmãos, com machados e alviões, correram pela cortinha abaixo, meu pai foi abrir a nossa mina para que a água chegasse perto do fogo, minha mãe, com baldes na mão, saiu na pegado dos filhos. Só eu fiquei em casa, à janela da sala melhor, amedrontado com medo das “coisas roims”, os olhos fixos naquela enorme labareda que se erguia no escuro e ouvindo os gritos de aflição que enchiam o silêncio da noite. Que imagens!... Que medo!...Ardeu todo o telhado. Fiquei impressionado e, por isso, sempre que ia à igreja rezava ao S. Marçal, que tinha ao seu lado um torre em chamas, para nos salvar dos incêndios.

terça-feira, dezembro 12, 2006

INFÂNCIA REVISITADA – PERIPÉCIAS I

Hoje, almocei um arroz de grelos ou, como eu gosto de dizer, grelos com arroz. Que delícia!... Por contraste, lembrei-me da minha infância: não gostava de grelos porque os achava azedos. E assim, recordei os nabais dos nossos campos das Lamas, das Vinhas. Não, grelos, não!... Foi por aqui que se iniciou esta minha visita aos tempos guardados nos escaninhos da memória.

O Primeiro acidente de carro
Nos meus primeiros meses, minha mãe sempre ficava em casa a olhar por mim. Quando tinha de ir levar a comida às cavadas e aos campos ou ia ajudar nos próprios trabalhos nos campos, era o meu irmão António – tinha 10 anos- que ficava a tomar conta de mim. Certo dia, teria eu uns 4 meses, minha mãe estava a sachar o campo do Traganhal, que ficava (e fica) ao lado da estrada nacional nº 15-Porto-Vila Real (que nós chamávamos estrada real) junto da loja da Tia Florinda, hoje o restaurante “Barbosa Leão”. À hora da mamada, o António veio trazer-me à minha mãe, num carro de madeira que empurrava. No entroncamento com a estrada nacional, O caminho (que mais tarde deu origem à estrada de macadame) que vinha da minha casa fazia uma pequena rampa. Para vencer esse obstáculo,meu irmão empurrou o carro com tanta força que este capotou e eu caí. (Esta história faz-me lembrar a anedota do velho que, sempre que queria montar o burro, apoiava o pé no estribo e dizia: - Deus me ajude. Um dia, fez tanta força que passou por cima do animal e, ao cair, resmungou: -Mas não tanto!...). O António começou a berrar e a minha mãe, o campo ficava próximo, lá veio toda aflita socorrer-me. Este foi o meu primeiro acidente de carro. Quando por lá passo sempre recordo. E o eu pensamento vai até junto deles…

Quando eu fui a apartar…
Ir a apartar era uma espécie de instituição familiar. Quando a mãe achava que era tempo do seu filho deixar de mamar, mandava-o para casa de um familiar, na maioria dos vezes, para a casa de uma das avós, para o filho se habituar a passar sem a mamada.
Foi o aconteceu comigo. Também eu fui a apartar para casa da minha avó paterna da casa da Quintã, (chamava-se Margarida como a minha avó materna da Casa da Ponte que já tinha falecido.). Não sei que idade teria, mas já não deveria ser muito bebé porque retenho na memória (talvez as minhas primeiras memórias) alguns factos ocorridos nessa época. Terá sido pela Primavera. Quem me levou para a casa da minha avó, foi o tio Américo Sapateira que, a mando do meu pai ( era o nosso criado nessa época), ia lá buscar umas telhas de que o meu pai precisava: ao para lá, levou-me a mim; ao para cá, trouxe as telhas.
Não sei quanto tempo precisei para me desabituar da mama.( ?...) No entanto, recordo-me de alguns factos que me poderão ajudar no cálculo.
Era o tempo das sachas, toda a família foi sachar para a “ Quelha de Agra de Cima”. A meio da tarde, deu-me a fome. Não sei se apanhei a minha avó desprevenida ou já tinha esgotado a provisão, o que sei é que me levaram a casa do Ti’Américo Peidão (o nome advinha-lhe da fama que ele não enjeitava: dizia que gostava de vir ao Porto porque aproveitava a passagem dos carros eléctricos para dar livre trânsito às suas flatulências; como tocava trombone na Banda de Campo, dizia que acompanhava o ritmo do instrumento com outros barulhos menos musicais), cuja esposa me deu de comer: não sei o quê o que sei é nunca esqueci que fiquei sem fome.
Na cortinha da casa, minha avó deu-me a comer um fruto, grande e muito vermelhinho que, ali mesmo, colheu de uma árvore. Como me soube bem esse fruto!... Não sabia o seu nome. Mais tarde, já adulto, falei à minha tia Maria Rosa sobre essa árvore. Perguntei-lhe se sabia o nome. E ela respondeu-me que a única árvore com frutos vermelhos que existira na cortinha era uma cerejeira. Ainda insisti, porque a imagem que eu tinha era de um fruto grande e não pequeno como uma cereja. Não, não havia outra árvore. Tudo é relativo: pequeno como era, a cereja pareceu-me um fruto enorme. O certo é que gostei e ainda hoje sou uma desgraça quando vejo cerejas à minha frente: sigo a teoria do velho Abade de santo Ildefonso – se têm buraco, é porque o bicho já saiu; se não têm, é porque o bicho ainda não entrou…
O meu regresso a casa, deu-se num domingo de manhã. Quem me trouxe foi o Zé Pequeno que era criado na Quintã. Chovia. Lembro-me, perfeitamente, de, quando passava num carreiro de ardósia que havia depois passar a Ponte dos Arcos, por cima dos moinhos da Casa da Ponte, donde era a minha mãe, o meu carregador, que me trazia “às carrapichas”, pôs-me no chão para abrir o guarda-sol (naquele tempo, não havia guarda-chuvas, por isso os homens que os consertam são os guarda-soleiros e não guarda-chuveiros). Regressei nesse domingo porque, em minha casa, era dia de sarrabulho. Como era uma festa, o menino tinha que estar presente. Era Inverno. A matança do porco só se podia realizar quando estava muito frio para que a carne não se estragar. De preferência, tempo frio e seco. Costumávamos matar dois ou três porcos por ano: entre Dezembro e Fevereiro. Eu terei regressado em Dezembro a tempo de passar o natal em minha casa.
Se as cerejas amadurecem em Maio, a sacha do milho se realiza em Junho e o sarrabulho foi em Dezembro, o tempo da minha apartação terá durado mais de meio ano. Mas…valeu a pena: a partir daí, não consta que tenha voltado a mamar…


Uma esmolinha…
Quando cresci mais um bocadinho, minha mãe passou deixar-me em casa da Ti’Albina, uma mulher, natural do Marco (foi a primeira vez que ouvi falar de um terra bendita que, mais tarde me deu um presente bem precioso…- recompensa? “ Deus escreve Direito por linhas tortas”?), pobre que vivia perto de nós. Sem minha mãe saber, ela pegava em mim e levava-me para o “Pinheiro Manso” (o local ainda lá está, no entroncamento da estrada nacional n.º15 e a estrada que vai para Recarei, perto da saída de Campo da A4). Aí, eu ao colo da Tia Albina ou agarrado à sua saia, passando por ser seu filho, estendia a mão à caridade, pedindo uma esmola às pessoas que passavam de carro. E dizem que tinha sorte porque, quando era criança, era muito bonito ( hoje, já não dizem o mesmo. É pena!...) . Minha mãe, quando soube ralhou com ela e retirou-me da sua custódia, mas eu nunca me queixei e continuei a gostar da Tia Albina. Eram tempos difíceis aqueles tempos porque, além do racionamento e carestia de vida motivados pela 2ª Guerra, houve uma grande crise nas pedreiras de ardósia, onde trabalhava muita gente, levando muitas pessoas para o desemprego. Quando já sacerdote precisava de pedir ajuda económica para qualquer obra da Paróquia , costumava contar na Missa esta história e terminava: - “Habituei-me cedo a pedir, mas, como vêem, não era nem é para mim. Só espero ter o jeito que dizem que eu tinha naqueles tempos de menino! “ As pessoas sorriam e… dava sempre resultado.
Luta de galos…
A partir daí, passei a acompanhar a minha mãe. Numa das vezes em que me levou quando foi lavar a roupa para o lavadouro que tínhamos junto da nossa mina do Moreira, um galo, enquanto eu brincava sozinho, saltou-me aos olhos e ia-me cegando não fora o socorro pronto e aflito da minha mãe e das vizinhas que a acompanhavam. Mesmo assim, ainda tenho um prega na pálpebra do olho direito que ficou como sinal dessa luta que travei contra o raio do galo. Mas não aprendi… Quando criança, gostava de me armar em galo, mas várias vezes apanhei na crista…

Os ponteiros do relógio
Em Recarei, celebrava-se anualmente a festa de Sant’Águeda com uma grande romaria cujo momento mais esperado era o concurso de gado bovino. Por aquelas redondezas não havia ninguém, especialmente lavradores, que faltasse a essa festa. As crianças que não podiam ir à festa por ser bastante afastada (mais de cinco quilómetros), juntavam-se, ao fim da tarde, num caminho ao cimo da nossa cavada da cruz ( que tinha na sua cabeceira uma grande pedra de granito com uma cruz desenhada para lembrar um homem que, em tempos recuados, ali fora assassinado por ladrões) para assistir ao regresso dos romeiros e, de um modo especial, admirar as juntas de bois que, garbosamente, ostentavam a sua corpulência, tocados pelos seus, não menos garbosos, donos, de vara na mão e chapéu na cabeça, que se orgulhavam da grandeza da sua casa de lavoura que aqueles animais simbolizavam (os bois do Manuel Catrino, de Vilarinho de Baixo, que depois morreu quase na miséria, eram os que mais nos entusiasmavam pela sua compleição física, pela galhardia dos cornos, pelo brilho lustroso do pêlo ). Havia um outro motivo (secreto) que atraía aí a criançada mais crescida: jogávamos um jogo , cujo nome já não recordo, em que ora os rapazes traziam as cachopas “às carrapichas”, ora eram elas que transportavam os rapazes – brincadeiras proibidas (os adultos estavam todos para a festa…) porque aquele roçar nas raparigas constituía para muitos a sua primeira experiência erótico-sexual…
As crianças mais pequenas ficavam em casa, com as mães à espera das rosquilhas que os pais, à noite, lhe traziam da festa (havia três romarias que davam direito a rosquilhas: a Sant’Águeda, no dia 5 de Fevereiro, o S. Simão em Urrô /Penafiel nos finais de Outubro e o S. Martinho de Penafiel em 11 de Novembro).
Foi num dia de Sant’Águeda que fiz uma asneira que poderia ter-me custado umas sapatadas.. O meu pai tinha um relógio de bolso que sempre estava pendurado na parede ao lado da sua cama para controlar as horas durante a noite. Nas minha brincadeiras, subi para a cama e peguei no relógio. O relógio estava sem vidro. Eu, movido pela curiosidade, quis ver se os ponteiros andavam. Mas forcei-os tanto que parti o ponteiro dos minutos. Minha mãe, quando deu por ela, foi a correr a casa do António da Lamosa, que era relojoeiro, para ele pôr um ponteiro novo. Como não tinha um igual, colocou um outro ponteiro e minha mãe lá pôs o relógio na parede. Quando o meu pai chegou com as rosquilhas ninguém abriu o bico e ele não deu por nada: só via as horas à noite e a lâmpada era fraquinha para não gastar electricidade… E a minha mãe lá me safou mais uma vez… Que Deus te recompense pela tua bondade, mãe.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

O Ti’Adão – um coração de criança

Ontem, fez 14 anos que faleceu o Ti´Adão. No seu funeral, o Pe. Torres Maia, pároco da minha terra, proferiu uma homilia que mereceu a minha admiração e que, em memória/honra dos dois, aqui transcrevo.

1. Costuma o povo dizer que “quem vê caras não vê corações”… Ao rosto, duro, marcado pelo trabalho, à figura apequenada e franzina deste homem do campo, correspondia um coração de criança, a simplicidade evangélica de um pobre, o calor fagueiro e carinhoso de uma amizade muito dedicada.
. Estes homens do campo passaram uma vida em contacto com a natureza, magoando os pés na fraga e tisnando o rosto ao sol, no calor da eira, escorrendo suor na hora da canícula ou tiritando e sacudindo as mãos geladas, a cortar mato, pela solidão dos montes e no silêncio das cavadas.
. Homens que tiveram uma alma de poeta para apreciar a beleza rústica de uma flor campestre, para se debruçar na bica da fonte rumorejante e tirar o chapéu pelo cair das trindades.
Como foram dignos ao comer o seu pão, tantas vezes amargo na incompreensão injusta da sociedade, na falta de carinho de tantos que tratam o homem do campo como cidadão de segunda.
No meio dos campos, regando o milho, sachando e mondando, estendendo o estrume ou conduzindo o arado ou a charrua, afagando os animais ou assistindo-os nas suas doenças e crises, os homens do campo têm as suas raízes na profundidade telúrica do planeta e no mistério cósmico, mas o seu coração está pertinho do Criador, Senhor que fez as coisas mas precisou do homem para renovar a face da terra, pondo ao serviço do mesmo homem todos os meios que para todos foram criados e a todos devem servir.
2. Vivendo ao ritmo da natureza, sempre esperançado em amanhãs mais fagueiras, espreitando o sol e a chuva da vidraça da janela, o trabalhador agrícola está na dependência do tempo atmosférico e sereno para aceitar a intempérie; animado pela abundância da colheita e conformado com o contratempo que lhe aniquila as esperanças. Ele é, sobretudo, o homem que põe a sua vida nas mãos de Deus, num trabalho de sol a sol, na arte de empobrecer alegremente, ou de trabalhar sempre sem nunca ter nada.
Felizes aqueles que conservarem pela vida fora um coração simples e uma fé robusta e temperada como a alma do homem da lavoura e que foram capazes de resistir à devassidão do mundo e não se deixaram engolfar pela vaidade, o orgulho, a ambição!


3. Há dezenas de anos a viver numa família, foi este homem a prova de que ser família não é só viver debaixo do mesmo tecto nem tão pouco ser do mesmo sangue. Cultivar a amizade, dar-se e aceitar os outros, servir sem subserviências e acompanhar o ritmo familiar nas horas melhores e nas mais dificultosas, eis um ideal, que este nosso irmão projectou e viu conseguido.
Mais que o abrigo das mesmas telhas, o caldo da mesma panela, o pão da mesma fornada e a mesma jorna dura de cada dia, emparceirou ele com gente que o sentiu seu e o associou aos momentos de festa e oração, com os quais sofreu e enxugou as lágrimas.
4. Víamos no senhor Adão a simplicidade da criança e as limitações de um velho. Apertávamos as suas mãos rugosas e ásperas com a veneração de quem agradece ao Senhor o ter permitido ao homem que se santifique e salve trabalhando. Admirávamos nele aquela singeleza nobre daqueles que, nada tendo a perder nem de que se envergonhar, passaram uma vida sem outra consolação que não fosse a estima dos que se lhe afeiçoaram e o reconhecimento justo d’Aquele que escolheu os pobres para se revelar a eles e por eles. Louvamos o Senhor que dos pequeninos fez grandes e olhou para muitos “humildes servos” para os chamar lá para a frente, na mesa do Reino. 25.11.82 .

Gostei tanto desta homilia que, no final, fui agradecer ao P. Torres Maia e pedir-lhe uma fotocópia. Ele ofereceu-me o original que conservo, com muito gosto.

Quem era este sacerdote que tanto admirava o homem do campo e foi capaz de produzir uma homilia tão humana, esteticamente tão bela e, simultaneamente, tão profunda quer como análise social quer como reflexão teológica? Quem foi este homem que, no seu funeral, mereceu estas palavras tão sinceras que ainda hoje me comovem até às lágrimas? Do primeiro, falarei numa outra ocasião. Hoje recordarei o segundo, porque este texto começou a ser escrito em 25 de Novembro, como evocação da sua memória.

Andava eu na 2ª classe, quando o “Carriço” foi contratado como criado de lavoura para a nossa casa. Eu assisti ao renascer deste homem que, ao longo dos anos, foi conquistando um novo nome e construindo uma nova personalidade.
Quando veio para nossa casa, era um pobre desgraçado a quem todos tratavam depreciativamente por “carriço” (era um nome que lhe vinha de criança por ser o mais pequeno e enfezado dos irmãos), com fama de bêbado e a quem a rapaziada gostava de pregar partidas que o inferiorizavam. Lembro-me de, logo nos primeiros tempos, um grupo de rapazes o terem atirado, vestido, à “presa do espinheiro”, ficando a rir-se à gargalhada enquanto ele, meio ébrio, se debatia com a profundidade das águas. Começou aí a sua regeneração. O meu pai, homem respeitador e respeitável, chamou os autores da façanha e avisou-os de que, agora, o tio Adão era da nossa família e ofendê-lo a ele era ofender-nos a nós. Chamou também o tio Adão e disse-lhe que em nossa casa não permitia tais coisas. Daí nasceu um acordo. Não andaria mais com dinheiro no bolso. Ficava com uma conta corrente na “loja do Cosme” para os cigarros, que ele deveria administrar ao longo do mês; iriam comprar no Peixoto, em Valongo, um fato novo e sapatos novos e, sempre que precisasse de comprar roupa ou sapatos, dar-lhe-ia o dinheiro. Poderia beber vinho em nossa casa às refeições, à vontade, mas, fora de casa, não aceitaria qualquer oferta de vinho ou aguardente. Todos os meses o meu pai depositaria o seu ordenado numa conta no banco. E assim aconteceu. Não me lembro de mais bebedeiras. Ao domingo, quando ia à missa com roupa nova, já era gente e gente estimada. E o “ carriço” pouco a pouco começou a ser o “Ti’Adão Carriço” e, depois, apenas o Ti’Adão ou o Senhor Adão (em minha casa nunca foi tratado por “carriço” e nunca aceitávamos tal tratamento. O meu primo Manel Joaquim, a brincar, tratava-o por “Senhor Homem” – em hebraico, adão significa homem). Por tudo isso, muito me sensibilizou, no seu funeral, ouvir o meu pároco afirmar: - "Víamos no senhor Adão a simplicidade da criança e as limitações de um velho. Apertávamos as suas mãos rugosas e ásperas com a veneração de quem agradece ao Senhor o ter permitido ao homem que se santifique e salve trabalhando. Admirávamos nele aquela singeleza nobre daqueles que, nada tendo a perder nem de que se envergonhar, passaram uma vida sem outra consolação que não fosse a estima dos que se lhe afeiçoaram e o reconhecimento justo d’Aquele que escolheu os pobres para se revelar a eles e por eles. "

Foi este homem novo que eu me habituei a respeitar. A regra era a seguinte: se o pai estivesse presente, quem mandava era ele; se estivesse presente o meu padrinho ou o meu irmão António, era a eles que eu obedecia; se apenas estivesse o Ti’Adão, era ele que mandava e eu obedecia. Criança é criança, adulto é adulto. (Como as coisas mudaram!...) E nunca nos zangámos mesmo quando ele carregava mais a minha giga de erva ou punha mais farinha na minha taleiga quando íamos ao moinho de Cardoso. Eu não resmungava, quem ralhava com ele era a minha mãe. E não foi por isso que eu fiquei traumatizado e muito menos anafado.

Ele, antes de ser criado de servir na casa do Ti’Alberto da Chã, donde veio, trabalhara nas “pedreiras” (minas de ardósia) da minha terra e tinha andado no volfrâmio em Rio de Frades, em Arouca. Como eu adorava, nas noites longas de Inverno, à volta da lareira, ouvi-lo contar histórias de lobos que vagueavam por aquelas serranias e que, em tempos de fome, desciam ao povoado para assaltar alguma corte de ovelhas. Nessas horas, o Ti’Adão agigantava-se e convertia-se para mim num herói que nem dos lobos tinha medo!...
Havia, porém, uma circunstância em que eu mais me alegrava com a sua chegada. Eu conto.

O “engenho da Varge” era de consortes (isto é, pertencia a várias donos - vestígio de um antigo comunitarismo que os novos tempos iam apagando) e, no verão, funcionava em três turnos: do nascer-do-sol até à uma da tarde; da uma da tarde até ao pôr-do-sol; do pôr-do-sol até ao nascer-do-sol. Cada consorte podia usar o engenho para tirar água para regar os seus campos no turno que lhe calhasse, que se ia alterando ao longo das semanas. Os meus irmãos iam regar nos campos do Traganhal, Areal ou de Godas, o meu pai vigiava o rego para que não se perdesse a água no caminho do engenho até aos campos que ficavam distantes; eu e o Ti’ Adão éramos os encarregados de tocar os bois no engenho (o meu pai gostava mais quando era porque a água no campo corria mais abundante; os bois é que não deveriam de gostar porque, como criança, fazia-os andar mais depressa à roda do engenho… os anos já iam retardando as pernas do Ti’Adão). De dia, cabia-me sempre a mim enquanto o Ti’Adão ia apanhar erva ou talhar mato, excepto quando eu tinha aulas na escola (pois este meu trabalho acabou quando eu vim estudar para o Colégio de Ermesinde); de noite, era o Ti’Adão. Porém, quando pegávamos ao pôr-do-sol era eu que ia para o engenho; o Ti’Adão só aparecia quando anoitecia. Ora o “engenho da Varge” ficava num fundo, junto do rio Ferreira, rodeado de árvores e, por isso, lá anoitecia mais cedo: nos campos ainda havia claridade e lá já era noite cerrada. Sempre tive muito medo da noite por causa das “coisas roins”(sic). Quando o ti’Adão estava atrasado era o meu pai que me ia fazer companhia. Mas, às vezes, também se demorava. Muito sofri. Que medos passei! Quando pegava ao sol-posto, já ia a chorar. A minha mãe bem avisava e ralhava: - não se esqueçam de ir cedo porque o menino tem medo…ó Zé, ó Adão não façam como da última vez…(Era a minha defensora, a minha mãe.). Nunca me custou tocar os bois, eram horas e horas (uma vez fiz treze horas seguidas: mudaram os bois, mas o tocador continuou o mesmo…). E não foi por causa disso que fui mau aluno, bem pelo contrário, e não é para me gabar, até fiquei distinto no exame de 4ª classe. Mas à noite… as sombras pareciam-me “avantesmas”, os ruídos nocturnos faziam-me estremecer e temer o aparecimento do diabo ou de alguma alma doutro mundo… Ah!... Quando o Ti’Adão chegava!... Que alívio! Que alegria!...

Quando eu vim para o seminário, ele despediu-se a chorar. Quando voltava para férias, era uma alegria. E lá estava o Ti’Adão para me abraçar. Ao regressava para o seminário, especialmente nas férias do Natal, as saudades eram muitas e as lágrimas saltavam-me, silenciosas, dos olhos. E o Ti’Adão, para me descontrair, repetia o que ouvira aos “robertos” na feira de Paredes: “ Quem é que vai comer na tua tigela?”

Em dia de festa, havia duas coisas de que muito gostava, era a sua suprema felicidade: deitar foguetes e ir, de opa, pegar a uma bandeira na procissão.
Numa "Festa do Menino”, no dia 1 de Janeiro, a romaria mais importante da minha terra quando toda a gente procurava vestir uma roupa nova, ele já estava na sacristia com a opa vestida, pronto a pegar numa bandeira, quando o pároco, recém-chegado à paróquia, ao ver o “ rosto, duro, marcado pelo trabalho, (e a) figura apequenada e franzina deste homem do campo”, retirou-lhe a opa e deu-a a uma pessoa de bens ( de bem?) lá da terra. Dizem que o Ti’Adão chorou… mas, humildemente, lá foi na cauda da procissão. O meu pai e nós nunca esquecemos a ofensa. Esta foi uma das razões porque a homilia do Pe. Torres Maia, que substituiu esse pároco, tanto me comoveu: não, a Igreja não tem culpa…Os homens que a servem (ou dela se servem) é que nem sempre são dignos da sua missão, por malvadez e/ou estupidez…
Quanto aos foguetes, era ele sempre o encarregado de os lançar quando em minha casa havia foguetes. Por isso, e por outra razões, ele ficou felicíssimo na minha Missa Nova: encarreguei-o de lançar todos os foguetes, e foram muitos… Foi uma alegria! O Ti’Adão rejuvenesceu e nunca mais esqueceu.

Quando pensei abandonar o exercício do sacerdócio para casar, tive o cuidado de lhe comunicar pessoalmente. Andava ele,” pela solidão dos montes e no silêncio das cavadas”, a cortar mato na “cavada do Moreira” em Negral, quando lhe apareci. Ia comigo a Ana que ele já conhecia. Metemos conversa. E quando lhe disse que ia casar, ele fez uma exclamação que nunca lhe tinha ouvido: “Está maluco!...” Expliquei-lhe que não e que a minha esposa ia ser a Anita. Olhou para ela, sorriu e disse: - só desejo que sejam muito felizes! E como ele era simpático com a Nitas, como gostava de meter-se com ela! E os meus filhos… como gostava deles! Era mais um avozinho.

Penso não ter maneira melhor de terminar esta minha homenagem ao Ti’Adão do que transcrever as palavras do P. Torres Maia:
Há dezenas de anos a viver numa família, foi este homem a prova de que ser família não é só viver debaixo do mesmo tecto nem tão pouco ser do mesmo sangue. Cultivar a amizade, dar-se e aceitar os outros, servir sem subserviências e acompanhar o ritmo familiar nas horas melhores e nas mais dificultosas, eis um ideal, que este nosso irmão projectou e viu conseguido.
Mais que o abrigo das mesmas telhas, o caldo da mesma panela, o pão da mesma fornada e a mesma jorna dura de cada dia, emparceirou ele com gente que o sentiu seu e o associou aos momentos de festa e oração, com os quais sofreu e enxugou as lágrimas.

Deus tenha na sua Paz o Ti’Adão, que respeitei e amei como se fora um irmão mais velho, e o P.Torres Maia que admirei e amei como um companheiro de muitos e alongados caminhos.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

UM HOMEM DE “OLHAR SERENO E CALMO”

Os jornais noticiaram. O Professor Ribeiro da Silva jubilou-se da Faculdade de Letra do Porto. Em sua homenagem, realizou-se um colóquio cuja tema era “ Percursos de um historiador”.

Um investigador meticuloso, académico e homem de grande dimensão cultural. Foram as três facetas mais evidentes no decorrer do colóquio de homenagem a Francisco Ribeiro da Silva, autor de basta bibliografia historiográfica. A cidade de Garrett é uma das suas fontes de pesquisa e interesse. (…) É um homem de olhar sereno e calmo. A ele, fica a dever-se a introdução curricular da cadeira de História da Cidade do Porto, na FLUP, bem como a publicação de obras fundamentais para a compreensão do velho burgo e seus ideais de liberdade. Porém, é a sua tese de doutoramento, intitulada “ O Porto e o seu Termo (1580 – 1640). Os homens, as Instituições e o Poder” publicada em 1988, que mais vezes é referida pelos estudiosos.” ( JN. 9/11/06)”

F. Ribeiro da Silva foi um professor de corpo inteiro e de alma plena (…) foi Presidente do Conselho Directivo da Faculdade, vice-Reitor da Universidade em dois mandatos (…) tendo publicado mais de uma centena de trabalhos de investigação.
(…) O perfil humano e académico de Francisco Ribeiro da Silva foi definido pela “ intuión femenina” da professora da Universidade de Málaga, Aurora Gámez, que salientou a aliança entre o investigador e Professor de referência que é, e a simplicidade, disponibilidade e afabilidade humana que sempre revela no seu relacionamento
”, assim escreveu o nosso comum amigo e condiscípulo, Correia Fernandes, na Voz Portucalense de 15 de Novembro de 2006.

É deste homem de “ olhar sereno e calmo”, da sua “ simplicidade, disponibilidade e afabilidade humana” que eu quero falar ao abrigo de uma velha amizade como ele próprio referiu na dedicatória que escreveu na sua tese de doutoramento que teve a amabilidade de me oferecer: “ Ao João Alves Dias, à amizade dos bons velhos tempos. 1.5.990- do Francisco”. São esses “ bons velhos tempos” que quero recordar. E, porque foram longos e variados os caminhos que juntamente percorremos, apenas referirei uma peripécia em cada seminário em que vivemos.

COLÉGIO DE ERMESINDE
1º ANO

Meninos, cedo apartados do carinho e do aconchego da família, encontrámo-nos no colégio de Ermesinde como alunos do primeiro ano do seminário. Éramos passarinhos fora do ninho. Companheiros de sofrimento, partilhávamos o mesmo ideal: queríamos ser padres. Nas aulas, éramos quase colegas de carteira pois entre nós apenas havia o Inácio. Com a reprovação deste logo nos primeiros anos, passámos a ser colegas de carteira; só deixámos de o ser no primeiro ano de teologia, com a chegada do Idalino que, por razões de doença, perdeu um ano, integrando-se no nosso curso.
A nossa amizade começou a forjar-se quando, no colégio de Ermesinde, jogávamos à bugalha por entre as raízes dos carvalhos e das tílias que bordejavam o campo de futebol, tendo por companheiros o Inácio e o Amadeu que eram de Seixezelo, freguesia vizinha de Argoncilhe ,onde o Xico vivia, embora fosse natural de Nogueira da Regedoura. Eram momentos únicos em que nós brincávamos como no recreio da escola primária ou no adro da igreja da nossa terra. Esquecíamos a ausência e, por momentos, regressávamos às nossas terras. Maravilhosos momentos que ainda recordo com um sabor de nostalgia.

SEMINÁRIO DE TRANCOSO/GAIA
2º e 3º ANOS

Em Gaia, no seminário de Trancoso, partilhámos um momento de ansiedade mas fui eu quem acabou por apanhar uma valente bofetada do Pe. Delfim, na aula de Geografia. Eu conto. Na fase final do ano, o Pe Delfim, depois de terminar o programa, ocupava as aulas a fazer chamadas orais sobre a matéria leccionada ao longo do ano. O aluno chamado ia para junto do mapa e, daí, respondia às perguntas. Os outros alunos mantinham os livros fechados e colocados na prateleira debaixo da sua carteira, porque, podiam ser chamados a responder sempre que o colega não soubesse. Um dia quem foi chamado foi o Joaquim Queirós Alves, natural de Soalhães (Muitos anos depois, casei - compensação pela bofetada que apanhei?- Se foi, bendita bofetada! - com uma rapariga de Soalhães e soube que ele era da “Casa das Coriscadas”). Ora o Queirós Alves era um bom aluno em quase todas as disciplinas, mas de Geografia não percebia nada, e então de localizações no mapa era uma perfeita nulidade. Nas cadeiras mais próximas do mapa, estava o Xico, eu e o Freitas Soares. Éramos nós que, à vez, lhe soprávamos as respostas. Assim, o Pe. Delfim perguntava e ele respondia. O Pe. Delfim começou a desconfiar. Então, fez-lhe uma nova pergunta e fixou-se próximo de nós e do Joaquim a olhar para ele. Não podíamos ajudá-lo e assim ele não respondia… Intencionalmente, o professor virou as costas e começou a afastar-se. Logo eu lhe inspirei a resposta ( dizíamos que era “espírito santo de orelha”) e ele, sem qualquer gaguejo ou hesitação, logo respondeu. O Pe. Delfim começou a esfregar as mãos na batina (este era o gesto que ele sempre fazia quando se preparava para mandar uma bofetada.) e aproximando-se do Joaquim, pergunta: - Quem lhe disse? – Não foi ninguém, eu é que soube. – Seu “pedaço de asno” (este o nome que gostava de chamar a um aluno quando ele não sabia responder), ainda está a mentir por cima! E dirige-se ao Xico que estava colocado do meu lado esquerdo: - Foi o Francisco? – Não, não fui, respondeu, meio amedrontado. Depois, vira-se para o Freitas Soares que se sentava ao meu lado direito: - Foste tu? – Não, balbuciou o Freitas Soares, temendo a bofetada que já se adivinhava e parecia sobrevoar as nossas cabeças. – Então, foste tu, ò Dias! (Foi o único professor que me tratou por Dias porque, para todos os outros, sempre fui o João.) – Fui, respondi, serenamente. E uma bofetada voou e descarregou estrepitosa na minha cara. Que grande e sonora bofetada… E o Xico e o Freitas Soares estremeceram. O Queirós Alves apanhou duas. Nunca mais a esqueci até porque era a primeira bofetada que apanhava na escola e só voltei a apanhar outra também no seminário de Trancoso. Na escola primária nunca recebi qualquer castigo: nem bofetadas, nem reguadas, nem palmatoadas. Por isso e por outras razões que, um dia, poderei explicitar, é que o Seminário de Trancoso me marcou tão negativamente. Ainda hoje não gosto de ir a Gaia e, muito menos, passar junto desse seminário que é agora o Colégio de Gaia. Mas quanto ao Pe. Delfim… Era um cara lavada e eu perdoei-lhe porque era “pão-pão¸queijo, queijo”, não fazia acepções de pessoas. Para ele os alunos eram todos iguais o que não acontecia com outros padres. Mais tarde, lembrei-lhe essa bofetada de que ele já não se recordava. Disse-lhe que ele premiou a sinceridade com um grande “estaladão”… mas que estava perdoado.
SEMINÁRIO DE VILAR
4º, 5º, 6º e 7º ANOS
Das muitas recordações que me povoam a memória , gostaria de evocar o que aconteceu numa aula de Filosofia no 6º ou 7º ano. Como disse, éramos colegas de carteira. Numa carteira atrás de nós ficava o Loureiro, bom rapaz com uma alma grande, tão grande como eram compridas as suas pernas. Quando se sentia mais descontraído, enfiava as suas pernas por debaixo das nossas cadeiras. Nós nunca sabíamos se ele metia as pernas debaixo da minha cadeira ou da do Xico. Pelo sim ou pelo não, eu sempre dava uns “coices” ( salvo seja…) a ver se lhe pregava uma canelada. Umas vezes acertava, outras, não. Mas fazia isso mantendo o corpo direito para que o professor não se apercebesse. Quando dava, ouvia o Loureiro a resmungar…” lá fora, tu vais pagar…” Promessas…
O Xico fazia como eu, mas, para não mandar uns “calcanhares” em vão, antes de dar, inclinava-se para ver se as pernas do Loureiro estavam a jeito sob a sua cadeira. Um dia, quando procedia a esse ritual preparatório, deu nas vistas e o Dr. Marques, professor de Filosofia, interrompeu-o perguntando: - Senhor Francisco, o que é que se passa? E o Xico, muito atrapalhado porque, como era bem comportado não estava preparado para aquela interpelação, ficou muito vermelho e quase a gaguejar, respondeu: - “É que eu senti umas coisas a rabear entre as minhas pernas…” E os malandros dos colegas abafaram a gargalhada e sorriram baixinho, interrogando-se sobre o que seriam essas coisas que o Xico sentiu a rabear entre as pernas… nunca pensando que ele se queria referir às pernas do Loureiro… E o Dr. Marques? Por fora, manteve-se sereno, simulando nada ter percebido. Por dentro…” quem vê caras não vê corações…”, deve ter dado uma grande gargalhada…

SEMINÁRIO DA SÉ
8º ANO e 1, 2, 3 e 4º ANOS DE TEOLOGIA
Da Sé, apenas quero recordar aquela nossa ida a minha casa, num dia de passeio. Nos seminários menores, nós, no nosso passeio semanal, que era à 5ª feira, íamos sempre todos juntos e em fila ( em Vilar já íamos mais à vontade), acompanhados por um padre-prefeito. Ele é que definia o destino que poucas variações tinha. No seminário da Sé, podíamos sair, à 4ª feira à tarde, em grupos de três (“Raro uno, nunquam duo; semper tres vel plures”…- raramente um, nunca dois, sempre três ou mais - era a regra de ouro da convivência...). O passeio era à nossa escolha mas não podia ultrapassar o território abrangido pelos transportes colectivos do Porto. A minha casa situava-se fora do perímetro permitido, mas, na ocasião do meu aniversário, eu infringia a lei, convidava dois colegas mais amigos que estavam dispostos a correr os riscos da transgressão, pedia ao senhor Joaquim “Capadeira”/Barbosa que nos viesse buscar na sua carrinha e lá íamos nós comer um salpicão a minha casa. Numa das vezes, lembro-me, o Xico foi o escolhido.
No final do Curso, fomos ordenados presbíteros no dia 4 de Agosto de 1963. Participei na festa da sua Missa Nova em Argoncilhe e, dada a nossa amizade, fui o escolhido pelos condiscípulos, para, no momento dos discursos no final do almoço, falar em nome de todos os seus colegas. Já não me lembro do que disse. Só sei que fui sincero e o Xico e os seus pais gostaram porque no fim me vieram agradecer e dar uma palavra de parabéns.
SACERDÓCIO
No primeiro ano de sacerdócio convivemos bastante porque ele fora nomeado coadjutor das Antas e eu era coadjutor em Santo Ildefonso, ambas as paróquias da cidade do Porto. Com a minha ida para o Cerco do Porto e a sua nomeação para professor de Moral no Alexandre Herculano, a nossa amizade fortaleceu a nossa colaboração pastoral. O Francisco, além das aulas de Moral de que os alunos da minha paróquia muito gostavam, fazia da casa onde vivia com o Armindo e o Pimentel, na rua de Barão de Nova Sintra, um local de encontro e animação de jovens. Esta actividade de animação era complementada com cursos, tipo curso de cristandade para jovens que vários alunos da minha paróquia frequentaram: quando eu tinha um jovem que sabia ser humanamente rico embora não praticante, eu convencia-os a ir a esses cursos. Lembro-me do Zé Eduardo Caramalho (hoje o administrador da Empresa de camionagem VALPI – era neto do fundador da empresa Alberto Pinto) que nunca mais escondeu a admiração que ganhara pelo meu amigo Francisco. Sempre que, na minha actividade pastoral, precisava da sua ajuda sempre estava disponível.
DEPOIS…
Partilhou comigo os seus anseios no início de duas etapas que marcariam toda a sua vida futura: a Família e a Universidade. Quando concorreu para assistente da Faculdade de Letras, já estava a leccionar história em Espinho, se a memória não me atraiçoa, desabafou comigo a sua ansiedade. Com que emoção me falou da Maria Elvira, no início do seu encontro. Foi um homem com sorte este meu amigo: encontrou uma companheira maravilhosa, mulher de fina delicadeza e educação esmerada que, para além do amor, nutre por ele uma grande admiração. Ainda parece que a estou a ouvir a falar das conferências do marido: que enlevo!... É recíproca esta admiração. Na dedicatória da sua tese de doutoramento, consta apenas: “ Á Maria
Elvira
E à Cláudia” - as suas duas grandes paixões, a esposa e a filha.

Para realçar a simplicidade deste grande homem da cultura, quero apresentar apenas quatro situações.

* Quando eu lhe dava um abraço de parabéns por causa da sua tese de doutoramento, ele disse: - ó João, isto do doutoramento não é para “foras de série”. O que é preciso é muito trabalho. Se eu fiz, tu, por maioria de razão, poderias fazer. Sendo casado, é preciso ter uma esposa que colabore, se não é o divórcio. Mas eu tenho sorte e tu também. Temos esposas companheiras e solidárias.

* Em 2001, no dia 6 de Outubro, festejámos o quinquagésimo aniversário da nossa entra da Colégio de Ermesinde. Na reunião de curso do ano anterior organizada pelo Quintas, em Castelo de Paiva, eu fiquei encarregado de organizar o encontro comemorativo. Logo ali, agreguei a mim o José Felismino, o Justiniano e o Correia Fernandes. Quando pensei em quem faria o discurso da praxe, uma vez que iríamos convidar os nossos antigos professores, incluindo o D. Armindo, Bispo do Porto, que foi nosso professor de Dogmática, o nome que me surgiu foi o do Brito. Com a concordância dos colegas, falei com ele que logo aceitou. Entretanto, o Brito começou a sofrer da “Doença de Parkinson” que dificultava a sua expressão oral embora não afectasse a sua capacidade intelectual. Temendo não estar capaz de pronunciar o discurso no dia do encontro, o Brito pediu-me que arranjasse quem o substituísse. Disse-lhe que iria estar bom, mas para que ficasse descansado iria convidar o Xico para o caso de ele não poder. Porém, ele, Brito, continuava a ser o orador oficial do encontro. Depois, falei com o Xico, expliquei-lhe a situação e ele, com toda a simplicidade que sempre o caracterizou disse-me: -“ João. Está bem, podes ficar descansado, se o Brito não puder, eu farei o discurso, mas, entretanto, eu próprio irei insistir com o Brito para ser ele a falar.” Poderia ter-se escusado por, sendo professor catedrático e vice-reitor da Universidade do Porto, não ter sido a minha primeira escolha. Mas, não. Falou com o Brito. O Brito melhorou e, no dia, lá apresentou o seu discurso que é uma verdadeira peça de literatura. Brilhante! Começava assim: “ Vínhamos dos quatros cantos da Diocese. Com um magro enxoval e um número gravado a vermelho em cada peça. ( Agora me lembro que eu era o 536) Cabia tudo num baú de madeira de pinho ou numa mala mais vistosa. Todos trajando de negro, em geral com botas de pneu multiuso ensebadas para aguentarem longas temporadas. Um traço de ingénua ruralidade enformava a quase totalidade dos nossos rostos e das nossas atitudes.” De tal maneira gostei desse discurso que o integrei num opúsculo que o José Felismino se encarregara de fazer com fotografias dos velhos tempos do seminário a que deu o título “ FIGURAS DA(S) MEMÓRIA(S).

* Nas várias dedicatórias que escreveu nas obras que me ofereceu ( “Tremores do homem portuense do Primeiro Quartel do Século XVII”, “ Os Motins do Porto de 1757”, , A Participação do Porto nas Cortes de Lisboa de 1619”, “ Os Deputados pelo Distrito de Aveiro Às Constituintes de 1911”, “ Pirataria e Corso sobre o Porto”) sempre está presente a sua simplicidade e amizade, destacando-se a da última obra citada “ Ao João com um abraço de muita amizade do Xico”

* No passado dia 24 de Novembro, quando com ele me encontrei na Fundação Eng. António José de Almeida, na apresentação do livro do Brito “Por entre as Brumas da Memória”, e lhe dava os meus parabéns pelas homenagens que a faculdade de Letras lhe tinha prestado, recordando-lhe a frase do “Público” que serve de título a este post, logo atalhou: -“ Sereno e calmo… muitas vezes… sabe Deus!" E um sorriso de cumplicidade nos irmanou mais uma vez.

* Propus aos meus colegas do Coro Gregoriano que, para além do CD dedicado à Virgem “ Civitas Virginis”, editássemos um DVD sobre as imagens e altares dedicados a Nª Senhora na Cidade do Porto. E sugeri pedir ao Xico um texto para acompanhar esse DVD/CD. Todos estiveram de acordo. E agora só me falta falar com o Xico, certo de que me irá dizer que sim a não ser que as suas ocupações não lho permitam. Ele ainda desconhece o que lhe está reservado...
Vale a pena viver para ter amigos assim!...