O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, outubro 31, 2023

O VENTO ESTÁ À 'PIA', VAI CHOVER...

Já cheira a ‘S. Martinho’... Nascido, no século IV na Panónia, na atual Hungria, é conhecido como o ‘Apóstolo da Gália’ (França) porque a sua pregação está na base da conversão das suas gentes. Foi bispo de Tours onde morreu (397) e está sepultado. O seu culto foi divulgado na nossa terra, no século VI, por um outro Martinho, também da Panónia, que fundou o mosteiro de Dume, perto de Braga. ‘S. Martinho de Dume’ foi o ‘Apóstolo dos Suevos’. Segundo a tradição, a ele se deve a fundação da igreja de S. Martinho de Tours, em Cedofeita, no Porto. A popularidade deste santo, mais conhecido pelo ‘milagre de S. Martinho’, rapidamente se espalhou e, ainda hoje, se manifesta: Nos Provérbios - “Se o inverno não erra o caminho, tê-lo-ei pelo São Martinho”. E muitos outros. Nas Paróquias - Numa consulta rápida ao Anuário da nossa diocese, encontrei 39 freguesias que o invocam como padroeiro. Entre elas, por coincidência, estão Soalhães, Campo e Cedofeita, onde eu e minha esposa nascemos, bem como nossos pais, filhos e netos. Nas Lendas – Das muitas que povoam a nossa cultura, partilho convosco a de S. Martinho de Valongo, colhida no “Inquérito Arqueológico da Diocese do Porto” realizado em 1957, sob a orientação do, então, reitor do Seminário da Sé, Dr. Pinho Brandão. “Merece especial menção a chamada “Pia” ou “Pia de S. Martinho” que deu nome a toda a serra em que se situa. É uma cisterna natural, aberta na rocha, no cimo do monte. A tradição diverge acerca da sua origem. Uns dizem que foi S. Martinho que passou por aqueles sítios. Ao chegar ao alto, o cavalo sentiu sede. Então, S. Martinho bateu com o bordão naquele penedo e imediatamente se formou uma cavidade na fraga da qual brotou água que a encheu totalmente. Outros dizem que não foi S. Martinho, mas o seu cavalo que abriu a pia com uma patada, por isso, lá estão as duas ferraduras: uma no fundo, da pata que bateu, e outra fora, da pata pousada. Segundo outros, não se tratou de S. Martinho, mas dos mensageiros que tinham ido a Tours buscar relíquias do Santo para a igreja de Cedofeita. No regresso, vinham pregando e baptizando. Ao passar pelo lugar onde hoje existe a ‘Pia’, sentiram sede. E a tradição volta a divergir: alguns dizem que foi nesta ocasião que, miraculosamente, abriram a Pia para se saciar bem como aos cavalos; segundo outros, a Pia já existente, por matar a sede a tão santos mensageiros, recebeu dons especiais. Refeitos, descansam na planura que se estende no cimo do monte: o “Campo de São Martinho”. E desdobram os seus olhares pelo formoso vale que se estendia a seus pés; e uma exclamação de prazer brota da sua alma: ‘Que vale longo!...’ Com a alma em festa, descem com o desejo ardente de guiar, para o Deus de toda a beleza, os habitantes de terra tão encantadora. Começam a pregar e aquela terra, ainda há pouco, pagã transforma-se num foco de intenso cristianismo. Próximo da actual igreja de Campo, no lugar onde a estrada nacional n.º 15 passa sobre o rio Ferreira, baptizam os novos catecúmenos. E, ao partirem, agradecidos a Deus, deixam como padroeiro o glorioso S. Martinho. Ordenam que se levante uma igreja à qual legam relíquias do Santo Bispo, num local que hoje pertence à Quinta do Visconde Oliveira do Paço. E, assim como baptizaram o povo, também baptizam aquela terra tão acolhedora: “Para o futuro, chamar-se-á São Martinho de Vale Longo”. Os dons especiais da ‘Pia’ prolongaram-se pelos tempos fora. Sempre que havia um longo período de seca, o povo de S. Martinho, com o seu pároco à frente, partia da igreja, em procissão de penitência, para a “serra da Pia”. Chegados lá, escoavam a cisterna que o Senhor Abade limpava com uma toalha de seda. Quando a procissão regressava, a meio da encosta, já a chuva caía abundantemente. E isto pelos tempos fora, até que, na ocasião das lutas liberais, uma certa mulher lá foi lavar uma camisa. Desde então a Pia perdeu a virtude.” Mas, ainda na minha infância, minha mãe dizia: ‘De madrugada ouvi os comboios, o vento está à Pia, vai chover’. E chovia… As lendas têm sempre um fundo de realidade… (31/10/2023)

quarta-feira, outubro 25, 2023

UM COPO CHEIO NÃO ACEITA MAIS ÁGUA...

“Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos.” (Mt, 11, 25-37) A inspiração para este texto surgiu-me no dia 9 de julho em Campanhã, ao ouvir, na celebração dominical, o meu pároco, P. Fernando Milheiro, comentar esta oração de Jesus: Jesus já tinha passado por muitas provações e, no entanto, bendiz o Pai por todos os momentos, bons e maus. Assim nós, nas horas boas e más, nas alegrias e tristezas, devemos louvar o Senhor da Vida. Por coincidência na véspera, tinha ido almoçar com um amigo de longa data. Fora a primeira vez que nos encontrávamos após a partida de sua mãe que falecera pouco tempo depois do pai. Foi um momento em que a tristeza da saudade se atenuou com a gratidão da memória. Ao evocarmos episódios dum passado feliz de convivência, lembrámos um grupo de famílias que seus pais, Olga Celeste e José Guilherme, criaram e animaram ao longo das décadas de oitenta e noventa do século passado. Todos os anos, realizávamos um passeio de fim de semana – chegámos a ser treze carros - por terras do interior desde o mosteiro de Sanfins de Friestas sobranceiro ao rio Minho até Mourão debruçado sobre o Guadiana, passando por Miranda alcantilada no Douro, pelo mosteiro de Lorvão no Mondego e pelo castelo de Almourol numa ilha do Tejo, chegando, já em Espanha, à ‘nossa’ Olivença manuelina e a Mérida, a monumental capital da Lusitânia romana. Rebobinámos a fita do tempo e vimo-nos a trepar aos castelos roqueiros de Castro Laboreiro e Monsanto, os mais íngremes; a pernoitar em Monsaraz e a cantar, em Idanha-a-Nova: “Senhor do Almortão/ Ó minha linda raiana / Virai costas a Castela / Não queirais ser castelhana.” E terminámos com uma palavra de gratidão. São vivências que nos enriqueceram a vida. São nossas e a memória fazem-nas presentes. Evocámos, de seguida, os amigos que connosco partilharam desta aventura, num tempo sem autoestradas, nem telemóvel ou GPS e em que, do interior, nem se falava. Desse grupo, só dois dos casais originais estão vivos… Todos os outros já nos deixaram. Os olhos humedeceram-nos de saudade, mas, mais do que lamentos, demos graças por Deus os ter colocado nos caminhos da nossa vida. Foi, pois, com natural satisfação que, pouco tempo depois, ao ler o livro “A alegria dum sorriso” do Papa Francisco, encontrei as seguintes palavras: “Um cemitério é triste, recorda-nos dos nossos entes queridos que se foram, recorda-nos também do futuro que nos espera, a morte. Mas nessa tristeza trazemos flores, como sinal de esperança, até de festa, com o passar do tempo. E a tristeza mistura-se com a esperança. É isso que todos sentimos diante dos restos dos nossos entes queridos: a memória e a esperança.” (pág. 19) Nos dias que se avizinham sejam estes os nossos sentimentos ao visitar os jazigos onde repousam aqueles que nos são queridos: louvar a Deus pela vida que nos permite rezar por eles; dar graças a Deus por eles se terem cruzado connosco, certos de que, como escreveu Antoine Saint-Exupéry, no Principezinho: “Aqueles que passam por nós, não vão sós: deixam um pouco de si, levam um pouco de nos.” A terminar, deixo-vos com a palavra e o exemplo de José Matoso – ‘Prémio Pessoa’ em 1987 e ‘Prémio Árvore da Vida’, em 2019 - o grande medievalista que soube conciliar o prestígio da ciência com a humildade da fé e faleceu precisamente no dia (8/7/2023) em que eu e o João Paulo dávamos graças pela vida. “É bom acreditar que merece a pena ‘levantar o Céu’, e lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos. Felizmente há muitas mulheres e homens neste mundo a tentar unir esforços para manter o contacto entre o Céu e a Terra. É esse o caminho que a sabedoria ensina a percorrer para encontrar a saída do labirinto em que a vida nos coloca. … há uma coisa com a qual me sinto bem; é aquele ‘gracias a la vida, que me ha dado tanto’. É isto que sinto”. Somos criaturas e, como tal, finitos e contingentes. Não somos deuses. Essa, a tentação originante: “Sereis como deuses - Gn, 3,5)”. (25/10/2023)

quarta-feira, outubro 18, 2023

'DO VISÍVEL PARA O INVISÍVEL; DO SIGNIFICANTE PARA O SIGNIFICADO'

Meus pais sempre me ensinaram que ‘Ser educado é saber ocupar o lugar’, ou seja, adequar o comportamento à circunstância. Vem isto a propósito do texto ‘A igreja é para todos, mas não para tudo’ que, tempos atrás, vi afixado à porta da igreja de Santo Adrião, em Braga. - “Um dos valores matriciais da convivência é o respeito. Deste respeito não hão-de ficar de fora o espaço sagrado e os actos sagrados. Nem será preciso invocar normas. Bastará seguir o bom senso. - Todos sabem que a experiência religiosa é, por excelência, uma experiência de escuta. Daí que o ambiente no espaço sagrado deva primar pelo silêncio. - Quem tem fé compreenderá com facilidade. E quem não tem fé também perceberá sem dificuldade. É por isso que se pede que, antes das celebrações e como ambientação, haja silêncio na igreja, na sacristia e até à volta do templo. - Sei que não é por mal, mas nos últimos tempos, chega-se a uma igreja e o que avulta é o ruído. A vontade de conversar sobrepõe-se ao direito de meditar. Parece que se pode falar com todos, menos com Deus. Parece que se ouve toda a gente, menos a voz de Deus. - Sobra, ainda, um problema para quem tem a missão de conduzir o povo de Deus. Se intervém, arrisca-se a ser incompreendido e até maltratado. Se não intervém, acaba por consentir o que não pode aprovar. Ou seja, é uma situação sempre delicada.” Face a esta ‘situação sempre delicada do celebrante’, invoco dois exemplos: O primeiro foi-me dado, no verão passado, pelo pároco de Santa Maria de Lagos que abrevia a homilia e reserva uns cinco minutos, no fim da Missa, para fazer uma breve catequese litúrgica. No dia em que lá estive, explicou como ‘comungar na mão’: “A mão esquerda pousa sobre a mão direita; aguarda que o ministro pouse a hóstia na sua mão esquerda, e então, com a mão direita, leva-a à boca e comunga sem sair do local”. O segundo, recebi-o da Irmandade das Almas de S. José das Taipas do Porto que me enviou um email que, com vénia, abrevio: “Conhecemos pouco sobre a estrutura e significado da Missa. É um problema universal que levou o Papa Francisco a dedicar um ciclo de catequese à Missa. Por isso, um grupo de irmãos começou uma Catequese Geral organizada em 22 passos semanais. Em cada semana, um passo que corresponde a um texto. Segue o Sumário para ficarem com uma visão geral. CAPÍTULO I - Início catequese sobre a Missa - A Missa é oração - O valor da Missa. CAPÍTULO II – Ritos de Entrada - Acto Penitencial - A Glória. CAPÍTULO III – Liturgia da Palavra - O Evangelho - Profissão de Fé. CAPÍTULO IV – Liturgia Eucarística - Oração Eucarística - Pai Nosso – Comunhão. Quem quiser seguir este esquema das catequeses do Papa Francisco, pode pesquisar no Google ‘Catequeses sobre a Missa’. Quando se inicia um novo ano catequético: . Cito a teóloga Cettina Militello ((7 Margens, 21/7/2023): “Acredito que para a maioria das pessoas, a linguagem das nossas liturgias é no mínimo estranha, (sendo) incompreensíveis antigas e belas metáforas…Seria preciso pelo menos um tradutor.” . E pergunto: Os ritos dos sacramentos, a começar pela Eucaristia, não poderiam ser um tema a considerar na preparação das celebrações dominicais? “A catequese litúrgica visa introduzir no mistério de Cristo (ela é ‘mistagogia’), partindo do visível para o invisível, do significante para o significado, dos sacramentos para os mistérios”. Nós, batizados, recebemos o kerygma – o anúncio do mistério de salvação – de que falou o Papa Francisco, na investidura dos novos cardeais (30/9/2023), mas precisamos e gostamos de ser catequizados. (18/10/2023)

quarta-feira, outubro 11, 2023

O 'INFANTE SANTO' - HISTÓRIA E MITO

Tudo começou em Ceuta. Esta ‘praça-forte’ marroquina, para além da sua localização estratégica como ‘porta de África’ e ‘sentinela do Estreito de Gibraltar’, era muito rica. Nela, convergiam a rota do ouro vinda da África subsariana (Tombuctu) e a das especiarias., do Oriente. A sua conquista pelos portugueses, em 1415, ecoou pela Europa e animou toda a Cristandade. Fora ‘meter uma lança em África’… Todavia, foi um fracasso económico porque as caravanas desviaram as rotas comerciais para outras cidades das redondezas. E Ceuta ficou ao abandono. Havia, pois, quem, no Reino, defendesse a conquista dessas cidades vizinhas. Após o ‘Tratado de Paz’ com Castela (1431), D. João I pediu o parecer aos seus filhos. Das respostas conhecidas, o único a defender abertamente a continuação das conquistas africanas foi o Infante D. Henrique. Curioso é um argumento do Príncipe D. João: “Ainda a guerra de mouros nom somos certos se é serviço de Deus porque eu nom vi nem ouvi que Nosso Senhor nem algum dos seus apóstolos nem doutores da Igreja mandassem que guerreassem infiéis”. (Luís Miguel Duarte, D. Duarte) D. Duarte, ao subir ao trono, não teria intenção de prosseguir essa campanha. Porém, o infante D. Fernando, por diversas vezes lhe manifestou o seu descontentamento. Sentia- se inferiorizado e pobre. Inferiorizado porque, contrariamente aos irmãos mais velhos, Duarte, Pedro e Henrique, armados cavaleiros em Ceuta, ele ainda não pudera provar a sua valentia em campo de batalha. Pobre, porque, embora fosse o ‘Mestre da Ordem de Avis’, apenas recebera em herança Atouguia e Salvaterra do Campo de Santarém. Queria uma oportunidade para mostrar a sua valia militar e assim exigir ao rei a justa recompensa pelos seus feitos. E a campanha africana era o seu ideal. Incomodado, D. Duarte ouviu a opinião do seu irmão D. Henrique, ‘Mestre da Ordem de Cristo’ que se mostrou favorável às pretensões de D. Fernando e se disponibilizou para o acompanhar apenas com o apoio dos monges-guerreiros das duas Ordens Militares de que eram Mestres. D. Duarte, pressionado, também, por sua esposa D. Leonor, acabou por ceder. Mas, contrariamente ao pai, D. João I, que combateu em Ceuta, não seguiu com a armada nem permitiu que os outros irmãos o fizessem. A campanha marroquina foi um desastre. No ataque a Tânger, tudo correu mal. Os portugueses viram-se encurralados pelos exércitos mouros. Sem possibilidade de fuga, a fome e a sede forçaram o Infante D. Henrique a assinar o compromisso proposto pelos muçulmanos: “os cristãos sairiam em liberdade. Comprometiam-se a entregar Ceuta com os cativos muçulmanos e o infante D. Fernando ficaria como penhor dessa devolução” (ob. ci.) Aqui começou o drama do Infante D. Fernando, primeiro, em Arzila onde escreveu uma carta a D. Duarte a pedir a entrega de Ceuta. Depois, em Fez, onde o cárcere se tornou bem mais penoso. D. Duarte, colocado perante o dilema de entregar Ceuta ou deixar morrer o irmão no cativeiro, convocou as Cortes de Leiria de 1438. As opiniões divergiram e formaram-se quatro blocos, dois dos quais com posições bem extremadas: O primeiro, liderado pelos infantes D. Pedro e D. João, “defendia a entrega imediata de Ceuta e a libertação de D. Fernando, sem mais. Nomeadamente porque esse fora o pacto assinado pelo Infante D. Henrique”. No polo oposto, o grupo encabeçado pelo sobrinho do Rei, D. Fernando, afirmava que a entrega de Ceuta estava fora de causa. O rei não o podia fazer.” (Id) Como a maioria era contra a entrega, D. Duarte apelou ao Papa e a outros reis cristãos para libertarem D. Fernando e recebeu apenas palavras de conforto: “Rezariam muito para que as coisas acabassem em bem e, se acabassem em tragédia, todos louvariam muito o martírio e o santo exemplo do infante D. Fernando” (id). E acabou mesmo em tragédia. Em 1443, o Infante morria no cativeiro. Estavam lançadas as bases do mito patriótico - do mártir morto no exílio em defesa da Pátria, ‘O Infante Santo’ - que ajudou a camuflar uma nódoa na ‘boa memória’ da ‘Ínclita Geração’ e a esquecer que, como já fizera D. Afonso Henriques, mais uma vez, faltámos à palavra dada. Não nos honra… Os fins, por mais válidos, não justificam os meios… Post Scriptum – Notícia de última hora… “Portugal vai organizar o Mundial de 2030, juntamente com Espanha e Marrocos, anunciou a FIFA” (JN, 5/10/2023). Tempos novos… (11/10/2023)

terça-feira, outubro 03, 2023

MARROCOS - TERRA MÁRTIR - II

Foi com memórias da infância e algum estremecimento que, num miradouro sobre a ‘medina’ (cidade antiga) de Fez, vi uma ‘miríade de casas brancas coroadas de terraços, por cima dos quais se erguem belos minaretes de mosaico, palmeiras gigantescas, torrezinhas ameadas, pequenas cúpulas verdes’. E pensei: Foi num cárcere desta cidade que morreu D. Fernando - o ‘Infante Santo’ - um dos príncipes da ’Ínclita Geração’ de que falarei no próximo número. Fundada no ano 808, a mais antiga das cidades imperiais, rapidamente se transformou na capital política, religiosa, cultural e artística de Marrocos. No século XII, o seu prestígio intelectual e artístico propagou-se por toda a Europa. O nosso guia, marroquino, dizia, orgulhoso-: - “A universidade Karauine, do século IX, foi a primeira universidade do mundo”. Ainda hoje, Fez é a capital cultural de Marrocos. No século XI, os almorávidas embelezaram a cidade, e, no século XII, os almóadas suplantaram a sua influência. As dinastias posteriores continuaram a enriquecer a estrutura urbana com numerosos monumentos, bem conservados, que constituem um valioso expoente do estilo hispano-mourisco. Um historiador árabe escreveu: “Oh Fez! Todas as belezas da terra estão reunidas em ti’. Passe a hipérbole poética, a verdade é que confirmámos a sua beleza ao ver as portas de bronze do Palácio Real e ao percorrer as ruas estreitas e labirínticas da ‘medina’ - Património da Humanidade. Aí, apercebemo-nos do modo de ser e viver do seu povo e da sua extraordinária riqueza artística. Percorrer a ‘medina’, apreciar os produtos e seus vendedores, contemplar os monumentos, experimentar os ‘encontrões’, ver o colorido, sentir os cheiros, é uma experiência única e um pouco asfixiante para os claustrofóbicos… Merecem, uma visita as oficinas do artesanato tradicional de que é o grande centro marroquino, com destaque para os artefactos de cerâmica, bronze e couro. Seguimos, depois, para Mequinez que, com Fez, Marraquexe e Rabat, forma o quarteto das cidades imperiais. Construída no século XVII é Património da Humanidade. Quem a visita surpreende-se com o triplo cinturão de muralhas e bastiões. Foi fortemente afetada pelo ‘terramoto de Lisboa’. Merecem realce as grandes muralhas do palácio Real, o Túmulo de Mulai Ismail e a Porta de Bab el Mansor. E terminámos em Casablanca., a maior e a mais europeia das cidades marroquinas e capital económica do país. O seu nome deve-se aos portugueses que, no século XVI, quando aí chegaram viram uma casa branca no cimo duma colina. Reconstruiram, fortificaram a povoação e deram-lhe o nome de ‘Casa Branca’. Os ataques das tribos vizinhas e os destroços produzidos pelo terramoto de 1755 levaram os portugueses a abandonar a cidade, no século XVIII. Da nossa presença ainda resta um farol junto ao porto. Dos seus monumentos, ganha especial relevo a majestosa Mesquita de Hassan II. Para se aquilatar da sua grandeza basta dizer que é o edifício religioso mais alto do mundo e o segundo maior recinto sagrado dos muçulmanos. Entre as muitas curiosidades, destaca-se o facto de dois terços do recinto estarem sobre o oceano, para respeitar dois versículos do Alcorão: ‘O trono de Deus estava sobre as águas’; ‘Fizemos da água a origem de toda a vida’. Mais que as suas dimensões arquitetónicas, a mesquita, situada no extremo noroeste da ‘Terra do Islão’, pretende ser o ‘ponto de encontro das diversas civilizações – a africana, a europeia, a mediterrânica e a árabe, que rodeiam Marrocos’. Concluindo… Ao fazer esta viagem, não podia adivinhar que, passados uns meses, esta terra tão próxima e tão diferente, iria ser vitima dum terramoto que terá afetado “cerca de 450 mil pessoas (SIC, 15/9/2023); provocado “quase três mil mortos (JN, 15/9/2023) e destruído “56 mil casas em 2.930 localidades” (CNN, 26/9/2923) A simpatia sofredora do seu povo espelha-se no sorriso agradecido da pequenina Fatima Zahara pelo parque infantil da sua aldeia e no lamento resignado das suas palavras: “A vida aqui é muito difícil”. (Noticiários televisivos do passado dia 18) Marrocos, terra rica de contrastes, deixou-nos marcas na memória. E a sua tragédia fez-se bem mais próxima… (3/10/2023)