O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

A PROPÓSITO...

 
No Natal, uma amiga ofereceu-nos o livro As cartas da prisão de Nelson Mandela, com a dedicatória “Espero que gostem tanto como eu. Uma lição de VIDA”. Símbolo maior da fraternidade universal, penou, durante 28 anos (1962-1990), nos cárceres racistas da África do Sul.

 “Nos primeiros tempos, a comida era praticamente intragável. As condições climáticas eram extremas - «calor tórrido» e no inverno, «um frio cortante». Ao princípio, os presos africanos eram obrigados a usar calções e sandálias durante todo o ano. Durante a semana, trabalhavam no pátio a partir pedra com martelos. No início de 1965, começaram a trabalhar na pedreira. Era um trabalho duríssimo”.
 

Muitas das suas cartas nunca chegaram a ser expedidas como aquela que, em 9/12/1979, escreveu à filha mais nova. Foi encontrada nos arquivos da prisão dezanove anos depois de ter sido libertado, acompanhada de uma nota na qual um funcionário da prisão escrevera que «ele não estava autorizado a enviar uma carta com um cartão de Natal».

Nas cartas que escreveu à família, revela-se carinhoso e atento aos mínimos pormenores da sua vida. Exemplo é a que, em 23.6.69, enviou às duas filhas mais novas, então com 9 e 10 anos que nunca o tinham visitado porque só era permitido a maiores de 16 anos.

Começa por lhes falar da prisão da mãe e da falta que ela lhes fará.
“A nossa querida mãe foi presa mais uma vez. Terão de viver muito tempo como órfãos, sem um lar e sem pais, sem o amor e a proteção que a mamã vos dava. Não vão ter festas de Natal ou de aniversário, não vão ter presentes nem vestidos novos. Já lá vão os dias em que, depois de um banho quente à noite, se sentavam à mesa com a mamã para saborear a sua comida boa e simples. Longe vão as camas confortáveis, os cobertores quentes e as roupas lavadas que ela vos arranjava. Ela não vai estar presente para vos contar histórias à noite e responder às vossas muitas perguntas”.

 Depois enaltece a figura da mãe. “O que quero que tenham sempre presente é que temos uma mamã corajosa e determinada que ama o seu povo de todo o coração. Quando forem adultas e pensarem bem nas experiências desagradáveis pelas quais a mamã tem passado, vão compreender a importância do seu contributo na luta pela verdade e a justiça.”

E termina com palavras de conforto.
“Não se preocupem, meus amores, um dia a mamã e o papá vão voltar e não serão mais órfãos sem lar. Havemos de viver felizes e em paz. Entretanto, têm de estudar com afinco, passar nos exames e portarem-se como boas meninas. A mamã e eu vamos escrever-vos muitas cartas”.

Em todas as cartas vem ao de cima a firmeza de caráter, a força das convicções, a defesa intransigente da dignidade humana, a resistência ativa à opressão. Sem palavras de ódio ou violência. Sem retaliações nem vinganças. O mais exemplar líder mundial cujo retrato tentei esboçar em “Mandela fala de si” (cf. VP, 25/2/2014).

(26/2/2020)

quarta-feira, fevereiro 19, 2020

RESSONÂNCIAS E CONSONÂNCIAS...

 
Dias atrás, o JN publicou dois artigos de que com vénia, me faço eco.

No primeiro, Valter Hugo Mãe, escritor, começa por dizer: ”Está à porta a discussão e provável aprovação da despenalização da eutanásia em Portugal e eu não sinto folia nenhuma no facto e não julgo que seja de celebração fácil. Julgo que nenhum sistema pode avançar com a eutanásia sem garantir que opera cuidados paliativos de modo irrepreensível.”

Esclarece as suas reservas. “A vulnerabilidade das pessoas, por doença ou velhice, favorece estados depressivos e de abandono que podem propiciar a fantasia da morte. Tendo em conta o horrível que é a solidão, e tendo em conta o horrível de muitas famílias, pouco solidárias ou disfuncionais, confusas ou oportunistas, imagino bem que pelo cansaço ou pela fúria, por vingança ou ganância, muitos elegíveis para a eutanásia se verão encurralados, como se pedir a morte fosse a única coisa decente a fazer.”

E confessa.” Horroriza-me que, aberta a oportunidade institucional de morrer, usemos a morte como resposta obrigatória para aqueles que viveriam apaziguados num contexto de cuidado e carinho”.
Depois de afirmar que não é “naturalmente, contra a opção lúcida de alguém que, assistido por uma bateria de médicos especialistas, encontre apenas na morte uma solução”, vai mais longe: “O que me parece impossível de conter é a precipitação para a morte dos que se deprimem, dos que se fragilizam sobretudo por falta de um sistema de acompanhamento humano, afetivo e pragmático que os manteria justificados na vida.

Reafirma: “Ao invés de se investir na valorização das pessoas mais velhas, ocupando-as e acompanhando-as, cria-se lentamente a ideia de que são uma excrescência da sociedade. Considero um horror. O que mais vejo são velhos à míngua de atenção, apressados para a morte porque parecem servir para nada”.
E termina com um vaticínio de arrepiar. “Fácil será de imaginar que, progredindo sem cuidado na despenalização, chegaremos a muito suicídio que não será senão uma forma de homicídio perpetrado pelo interesse de alguns e pela desfaçatez de todos.” (9/2/2020)

No segundo, Fernando Calado, presbítero, escreve: “Mesmo que venha a ser aprovada (a despenalização da eutanásia), a Igreja Católica deve continuar a lutar pela vida. Muitas vezes, as pessoas que pedem a eutanásia, o que estão verdadeiramente a pedir é que lhes tirem o sofrimento. A eutanásia surge-lhes como a única forma de o conseguir. O que a Igreja tem de demonstrar é que se pode viver a doença e a velhice com uma tal qualidade que não fará sentido desistir da vida.

 E acrescenta: ”Deve ainda a Igreja preparar os seus fiéis para enfrentar a doença e a velhice com uma atitude crente e confiante em Deus que os ajude a viver melhor essas contrariedades e não desistir de viver. Isto dará sentido ao seu sofrimento”(10/2/2020).

Concluo com uma «Folha Dominical»: “Mesmo que a totalidade da população aprovasse uma técnica de morte, esta seria sempre deplorável. Mas mais deplorável seria se 150 ou 200 pessoas impusessem os seus critérios a largos milhões de cidadãos”.
(19/2/2020)
 
 
 
 

(VP, 19/2/2020)

quarta-feira, fevereiro 12, 2020

A ARTE DE BEM EDUCAR


Diz a parábola…

“Um jovem encontra um idoso a quem pergunta: - Ainda se lembra de mim?

O idoso responde que não e o jovem diz ter sido seu aluno. E o professor pergunta: - E o que é que fazes agora? – Sou professor! – Oh, fantástico! Como eu, então? – Sim! Tornei-me professor, inspirado por si: gostava de ser, pelo menos, um pouco como o senhor.

O idoso pergunta-lhe como e quando o terá inspirado. E ele conta:

-Um dia, um colega chegou à escola com um lindo relógio novo. Decidi que o queria para mim e roubei-o, tirando do seu bolso. Quando se apercebeu foi queixar-se a si. E então, o professor disse:

- «Foi roubado um relógio de um de vocês. Peço a quem o roubou que o devolva».

Mas eu não o devolvi e então o professor fechou a porta e disse que iria vasculhar os bolsos de cada um até encontrar o relógio. Mas acrescentou dever cada um fechar bem os olhos. E todos assim o fizeram até que, de bolso em bolso, chegou aos meus e, num deles, ao relógio roubado. Disse-nos então: - «Abram os olhos. Já temos o relógio».

Depois, nunca mais mencionou o episódio, não revelando o autor do roubo nem sequer pessoalmente a mim que o cometera. E nesse dia salvou a minha dignidade e salvou-me de me tornar ladrão, má pessoa, etc. E nunca me disse nada. Nem me deu uma lição de moral. E eu recebi a mensagem. E eu entendi que é isso que deve fazer um verdadeiro educador. Lembra-se desse episódio, professor?

O professor responde: - Lembro-me da situação, do relógio roubado, de ter revistado todos etc. mas não me lembrava de ti. É que eu também fechei os meus olhos enquanto procurava!”

Esta parábola mostra como é fecunda mas exigente a missão do educador. O ato, aparentemente espontâneo, deste professor pressupõe uma predisposição interior a que chamamos virtude. As virtudes, porém, não nascem connosco, adquirem-se na prática diária.

 Os atos repetidos criam hábitos; os hábitos, por sua vez, interiorizam-se e dão origem às atitudes. Se boas, dizem-se virtudes; se más, vícios. Assim, vamos formando o caráter, a personalidade.

Por isso, não está certo quem justifica o seu mau comportamento, dizendo: «Eu nasci assim…»

É verdade que a matriz genética do nosso temperamento é inata. Porém, a bondade ou maldade do comportamento não depende do temperamento mas do caráter, e, deste, somos responsáveis. Quando se quer denegrir alguém, diz-se: -“É um mau caráter”.

Pode-se ter um temperamento difícil e ser um bom caráter, uma boa pessoa ou até um santo.

Lembro S. Francisco de Sales que dizia: ”Apanham-se mais moscas com uma colher de mel que com um barril de vinagre”. Após a sua morte, descobriu-se que a sua mesa de trabalho estava toda arranhada por baixo, porque, com um temperamento forte, preferia arranhar a mesa a responder sem mansidão às pessoas.

Para ser bom professor não bastam conhecimentos nem grandes currículos. É preciso sê-lo por dentro…(12/2/2020)

 

 

quarta-feira, fevereiro 05, 2020

UMA NOITE DIFERENTE...


Porque só mostram coisas más desta escola que encheu uma igreja com cerca de 700 pessoas? Que saudades tinha de ver esta igreja assim.”

Este desabafo no facebook legendava uma fotografia da assembleia que lotava o interior da igreja de Nossa Senhora do Calvário. Aconteceu em 6 de dezembro. Nessa noite, o Agrupamento de Escolas do Cerco do Porto ofereceu à comunidade local um concerto de Natal com interpretações da Orquestra Juvenil de Bonjóia e do Coro dos Alunos de Ensino Básico.

Faltava mais de meia hora para o concerto se iniciar e já uma multidão se apinhava junto da porta de entrada. A rua fervilhava de gente que iluminava de felicidade uma zona, habitualmente, silenciosa e sem vida.

No início do espetáculo, o pároco, cónego Fernando Milheiro, congratulou-se com a presença de tanta juventude, dizendo: - “Nunca esta igreja teve tantos jovens. Como isto é bom! “ Realçou a ligação entre o culto e a cultura, duas dimensões humanas que devem andar a par porque mutuamente se enriquecem. E manifestou gratidão à direção da escola e seus professores por esta partilha cultural em tempo e espírito natalício.

A «OJB» e o Quarteto Sfourzzaco abriram o concerto com «Polonaise para flauta e quarteto de cordas” de J.S.Bach. Seguiram-se outras composições como o «Concerto para 4 violinos», de Vivaldi. As interpretações deliciaram a assistência pela variedade de temas e pelo esmero dos instrumentistas.

A emoção, porém, redobrou quando dezenas e dezenas de crianças e jovens desfilaram na nossa frente. As suas vozes cristalinas e bem afinadas encantaram a assistência com três cânticos de Natal.

E foi em festa que tudo terminou com toda a assistência, de pé, a ovacionar aqueles pequenos cantores que irradiavam felicidade nos seus sorrisos gaiatos. Como foi bom!

Acresce-me ainda a agradável surpresa de sentir que a igreja, quando cheia, tem uma boa acústica E sensibilizou-me a funcionalidade dum edifício enorme, pouco condizente com a sua envolvência sociológica e com a “Igreja pobre e peregrina” que esteve na sua origem. Nessa noite, a fé cruzou-se com a cultura e encheu por completo aquele que, no dizer do pároco, é “ o mais amplo espaço dedicado à assembleia das igrejas do Porto”.

Quão meritória é esta colaboração entre a Escola e a Igreja ao serviço da formação integral dos jovens que se exponencia na espiritualidade! Um bom exemplo de abertura à comunidade local.

Termino com uma palavra de parabéns ao Agrupamento pelos prémios que tem recebido, o último, de que tenho notícia, foi o «Animanicka» atribuído pelo Festival Internacional dos Filmes Animados, na República Checa, ao filme “Um grão em terra estranha”, realizado por alunos e professores de uma das suas escolas básicas.

Parabéns a toda a Comunidade Educativa do Agrupamento de Escolas do Cerco do Porto. Justos e bem merecidos.  (5/2/2020)