O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, fevereiro 27, 2024

QUARESMA - TEMPO DE CONVERSÃO

Ao ouvir as catequeses do papa Francisco sobre “Vícios e Virtudes”, relembrei os tempos da meninice quando, sentado num molho de ‘moliço’ (caruma), na ‘Mestra Maruja’, repetia o que me ensinava: “Os pecados mortais são sete: primeiro, Soberba; segundo, Avareza; terceiro, Luxúria; quarto, Ira; quinto, Gula; sexto, Inveja; sétimo, Preguiça”. E as virtudes “dos-contra”, como dizíamos: contra a soberba – Humildade; contra a avareza – Liberalidade; contra a luxúria – Castidade; contra a ira – Paciência; contra a gula – Temperança; contra a inveja – Caridade; contra a preguiça – Diligência. E porque estamos em tempo quaresmal, partilho convosco a catequese sobre a Gula (10/1/2024). O Santo Padre começa por nos sossegar: “Olhemos para Jesus. O seu primeiro milagre, nas bodas de Caná, revela a sua simpatia pelas alegrias humanas: preocupa-se por que a festa acabe bem, oferecendo aos noivos uma grande quantidade de vinho excelente”. Ao contrário de João Baptista, “Jesus é o Messias que vemos muitas vezes à mesa. O seu comportamento suscita o escândalo de alguns, pois não só é benevolente para com os pecadores, comendo até com eles; este gesto demonstrava a sua vontade de comunhão e de proximidade em relação a todos”. Mas não deixa de nos advertir: “Esta relação serena que Jesus estabeleceu com a alimentação deveria ser redescoberta e valorizada, especialmente nas sociedades do chamado bem-estar, onde se manifestam muitos desequilíbrios e patologias. Os distúrbios alimentares alastram-se: anorexia, bulimia, obesidade.... No modo de comer revela-se a nossa interioridade, os nossos hábitos, as nossas atitudes psíquicas. (…) Tomemos cuidado com isto!” E denuncia uma situação que muito nos deveria preocupar: transformámo-nos em ‘predadores’: “Se a virmos de um ponto de vista social, talvez a gula seja o vício mais perigoso, que mata o planeta. Pois o pecado de quem cede diante de uma fatia de bolo, considerando bem, não causa grandes danos, mas a voracidade com que nos desencadeamos, desde há alguns séculos, sobre os bens do planeta compromete o futuro de todos. Apoderamo-nos de tudo, para nos tornarmos donos de tudo, quando tudo estava entregue à nossa preservação, não à nossa exploração! - E em ‘consumidores’: “Eis, pois, o grande pecado: abjuramos o nome de homens, para assumir outro, “consumidores.” Nem sequer nos damos conta de que alguém começou a chamar-nos assim. Fomos feitos para ser homens e mulheres “eucarísticos”, capazes de dar graças, discretos no uso da terra e, ao contrário, o perigo é de nos transformarmos em predadores, e agora damo-nos conta de que esta forma de “gula” fez muito mal ao mundo”. Recordei, então, as interrogações de Clara Raimundo (7Margens, 11/1/2024): “E a quantidade de comida que ingeri (e a que sobrou!) da minha mesa de Natal e Ano Novo? Quanto bacalhau e peru, borrego, cabrito ou leitão terá sido vendido (e desperdiçado) nestas festas, em Portugal? (…) Quantas filhós, rabanadas, azevias, restos de Bolo Rei e tronco de Natal terão ido parar ao lixo?”. E alargando mais o olhar, faz-nos ver que os alimentos desperdiçados no mundo, segundo informações da ONU, eram suficientes “para alimentar cerca de mil milhões de pessoas no mundo. Mais do que os cerca de 735 milhões de pessoas que se estima tenham passado fome em 2022”. E na “União Europeia, todos os anos contabilizam-se, em média, 59 milhões de toneladas de desperdício alimentar, e Portugal é “só” o quarto país onde mais se deita comida fora: 184 quilos por habitante”. “Eis, pois, o grande pecado” de que fala o Papa. Como disse o cónego Álvaro Mancilha, no primeiro domingo da Quaresma, na capela de Fradelos, “antigamente, tudo era pecado; agora, parece que já não há pecados. Mas há. E a Quaresma é tempo de conversão”. O Papa Francisco, como vimos, alertou-nos para as incidências sociais do pecado. E, em consonância, na ‘Quarta-feira de Cinzas’, no programa ‘A Grande Reportagem’ da RTP3, o senhor bispo de Setúbal, o ‘nosso’ cardeal D. Américo, a propósito das eleições que se avizinham, afirmou: ‘Não votar é um pecado’. A conversão é uma ‘metanoia’, ou seja, uma mudança de pensamentos, de sentimentos e de comportamentos… (28/2/2024)

quarta-feira, fevereiro 21, 2024

QUÃO INSONDÁVEIS SÃO OS DESÍGNIOS DE DEUS...

Na noite do passado dia 2 de dezembro, assisti ao ‘Recital do Advento: canto e órgão’ que a nova Irmandade realizou na capela de Fradelos. Ao ler o ‘curriculum’ do organista, Gregório Gomes, o coração emocionou-se. E porquê? Porque me apercebi que era discípulo do Prof. António Mário Costa, como me confirmou com palavras elogiosas. E quem foi o Prof. António Mário Costa? Muitos dos leitores já o ouviram a tocar o órgão da Sé nas Eucaristias que aí se realizaram no ‘Dia da Voz Portucalense’. Então, já residia em Aveiro, mas sempre nos honrou com a sua presença. Faleceu aos 55 anos com um magnífico currículo de serviço à música e à Igreja. Apenas algumas notas: Iniciou-se no Curso de Música Litúrgica da Diocese do Porto, onde teve como professor o P. Ferreira dos Santos. Em 1993 e 1994, concluiu o Curso Superior de Música Sacra e a licenciatura em Órgão, na Alemanha. Foi professor nos Cursos Nacionais de Música Sacra, em Fátima; no C.C.C.P, na U.C.P. e no Conservatório de Música de Aveiro. No Porto, foi titular do órgão da Sé, diretor dos coros da Universidade Católica, e do Seminário Maior. Em Aveiro, fundou os coros da Catedral e da ‘Câmara Capella Antiqua’. Foi maestro do Coro de Santa Joana e membro da ‘Comissão Diocesana da Cultura’. Mas a sua vocação para a música e a sua ligação à Igreja começou a manifestar-se bem mais cedo, por influência da família e da Obra Diocesana de que estamos a festejar o 60.º aniversário. Como? Quando, em 1964, o ‘sacerdote responsável’ da Obra foi viver para o bairro do Cerco, levava a missão de liderar o seu primeiro trabalho comunitário e de lançar os alicerces da futura paróquia numa zona, outrora de campos e montes, mas, agora, um aglomerado de cinco bairros sociais. Como não havia qualquer espaço litúrgico, começou a celebrar na escola primária do Cerco - a sua ‘primeira capela’ Pouco a pouco, foi-se fazendo igreja. Inicialmente, só com moradores do bairro. Mas, rapidamente, a população das redondezas se deixou contagiar pela missa do ‘padre dos pobres’ como diziam. E até se cotizaram para lhe oferecer uns paramentos novos. Muito cedo, uma família da rua do Cerco tornou-se presença habitual: um casal com seus filhos, o mais novo dos quais - o Toni - ainda adormecia no colo da mãe Benilde. O pai, Alfredo, integrou-se na Equipa de Liturgia. E o menino Toni passou a acompanhá-lo para todo o lado. Tão pequenino era que, quando lhe perguntavam o nome sempre respondia: “Tó-má-ti-pi-a-tó” (traduzindo: António Mário da Silva Pinto da Costa). A capela do bairro, benzida (1/11/1966) por D. Florentino, logo recebeu um pequeno órgão. Há dias, o diácono Freitas Soares, o organista da paróquia, lembrava que, no final das missas dominicais, o Toni subia para o seu regaço e, com um dedito, tocava as músicas mais cantadas pelo coro. E a felicidade brilhava no rosto de seu pai… Entretanto, começou a ter aulas particulares de piano. E aperfeiçoava a sua aprendizagem no piano da casa paroquial. E com que empenho o fazia… Esquecia-se do tempo… Com o incentivo do P. Santos, a semente desabrochou, cresceu, fez-se árvore… Mas para os colegas de infância ficou sempre ‘Toni. E, quando algum lhe recordava o ‘Tómátipiató, ele sorria com aquele sorriso de criança, tímido e introspetivo, que nos enchia a alma… “Homem Bom, um Homem da Igreja”, foi um ‘Menino Bom’ que cresceu no seio duma família e duma comunidade que o apoiaram e ele nunca esqueceu… Ainda em 2017, na ´bodas de ouro’ da paróquia, voltou à ’sua’ capela - já muito doente, viria a falecer no ano seguinte – para abrilhantar a apresentação do livro “No Princípio Foi Assim…”. E foi emocionante ver o insigne professor acompanhar, no ‘velho’ órgão da sua infância - já um pouco desafinado - uma assembleia que, de olhos humedecidos, voltou a cantar o ‘Hino da Alegria’ E com que emoção!…. Que bom! No ‘Recital de Canto e Órgão’, a sua mestria encheu a capela de Fradelos pelas mãos dum dos seus discípulos mais prestigiados…Voltei a ouvi-lo, no ‘Recital de Cravo e Fagote’ - 20/1/2024. Instrumentos diversos, o mesmo júbilo… A nossa vida é um cântico de ação de graças…/21/2/2024)

quarta-feira, fevereiro 14, 2024

SESSENTA ANOS SÃO PASSADOS. E A 'OBRA' AÍ ESTÁ...

“A Obra Diocesana de Promoção Social celebrou 60 anos de apoio a comunidades vulneráveis, numa cerimónia presidida pelo bispo D. Manuel Linda. O evento foi marcado pela bênção de nove carrinhas elétricas. O bispo salientou que ‘as novas carrinhas vão tornar possíveis quilómetros e quilómetros de solicitude.” (JN, 13/2/2024) Quem vive no Porto cruza-se diariamente com carrinhas da ‘Obra Diocesana’ que percorrem a cidade no apoio aos mais frágeis. “A Obra presta apoio a cerca de dois mil utentes e é constituída por 12 centros sociais (em bairros camarários) contemplando 55 respostas, entre as quais creches, pré-escolar, centros de atividades e tempos livres, de dia e de convívio, entre outros.” (JN, 31/1/2024). E ainda ‘Acolhimento de Refugiados Ucranianos’, ‘Serviço de Apoio Domiciliário’, ‘Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental’, ‘Cantina Social’. Associando-me a essa celebração – nasceu em 14/2/1964 - relembro a sua génese e o seu caráter. . Fruto do Vaticano II “A Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época: os “anos sessenta” das grandes utopias, em tempos de Vaticano II. É uma Obra de e da, mas não para a Igreja; uma obra eclesial, mas não eclesiástica e, muito menos, clerical. Ao serviço de todos sem distinção de género, idade, cultura, classe ou credo, é de leigos e por leigos. Porém “não é laica, mas assente nos princípios francamente cristãos e acompanhada da acção espiritual”. (A Voz do Pastor, 17/10/1964)”. Gerada no coração de um bispo, acalentada pelo humanismo de um presidente da Câmara Municipal do Porto, ganhou vida na dedicação e saber de uma mulher. O bispo foi D. Florentino, preocupado com as gentes pobres compactadas em bairros camarários; o presidente foi o Dr. Nuno Pinheiro Torres; a mulher chamava- se D. Julieta Cardoso, diretora do Instituto de Serviço Social do Porto. . Caso único no País… “O seu nome foi mudando. Começou por ser simplesmente a ‘Obra dos Bairros’. Depois, foi ‘Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros da Cidade do Porto’ e ‘Obra Diocesana de Acção Social’. A aprovação dos Estatutos (17/4/1967), consagrou-a como ‘Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto’. Em 1998, passou a ter o nome atual: ‘Obra Diocesana de Promoção Social’. Apesar destas alterações, a sua designação sempre incorporou o termo ‘diocesana’. A pertença à diocese é uma das suas notas constitutivas. A palavra “promoção” que acabou por ser consagrada no diploma da sua constituição jurídica era aquela que mais correspondia aos objetivos da Obra, mas que mais colidia com a linha ideológica do Governo e com a mentalidade dominante de alguma da dita alta burguesia do Porto. A “Obra Diocesana de Promoção Social” queria promover o desenvolvimento integral do homem como agente da sua própria história, fazer dos habitantes dos bairros “cidadãos de primeira” e ajudá-los a criar novas comunidades quando tinham perdido as antigas referências de vizinhança. Muitos eram os que se sentiam escorraçados das “ilhas” onde nasceram e emprateleirados, como objetos anónimos, em grandes bairros da periferia urbana. Era caso único no País. Desenvolvia uma atividade comunitária em que eram os próprios cidadãos os fautores do seu desenvolvimento. Os “pobres” eram, agora, agentes da sua própria transformação, do seu engrandecimento como comunidade.” Como foi possível o Governo de Salazar dar personalidade jurídica a uma Obra que tinha por objetivo ‘Promover a valorização social dos grupos humanos… consciencializando-os das suas potencialidades…?’ Esse mérito deve-se, essencialmente, a duas mulheres: Dr.ª Manuela Silva, nossa interlocutora no Ministério que nos apoiou junto do Diretor-Geral de Assistência e D. Julieta Cardoso, uma figura discreta, dotada duma extraordinária capacidade argumentativa, que escondia uma inteligência brilhante.” (Nos Alvores da Obra Diocesana) Sem as mulheres não haveria ‘Obra Diocesana’. Foram elas que lhe deram vida. Lembro as que nela trabalha(ra)m, com realce para a primeira assistente social, D. Maria Augusta Negreiros, e para D. Maria Elisa Barbosa que a ela presidiu nos conturbados tempos do pós-revolução. A minha homenagem. (14/2/2024)

quarta-feira, fevereiro 07, 2024

O DIÁLOGO CIÊNCIA - FÉ, NA ATUALIDADE - II

Para repensar, hoje, o diálogo Ciência-Religião, impõe-se respeitar dois pressupostos: a autonomia do mundo, proclamada pelo Vaticano II e o ‘Princípio de todos os princípios’ formulado pelo filósofo E. Husserl (1859-1938). - A autonomia do mundo significa que tudo o que existe no mundo funciona segundo leis próprias sem qualquer tipo de interferências extraterrenas. Este é um pressuposto comum a todos as ciências. E a nível teológico, será a ideia mais revolucionária do Vaticano II. “Se se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte. (Gaudium et Spes, nº 36) Isto significa que tudo, absolutamente tudo, o que sucede no mundo tem uma causa dentro do mundo. De modo que, conheçamo-la ou não, do ponto de vista religioso não se deve buscar uma causa não-terrena, seja divina ou diabólica, que a explique. Esta afirmação, à primeira vista, poderia implicar a exclusão da presença ativa e salvífica de Deus no mundo. Porém, o mesmo Concílio, logo de seguida, indica onde reside o seu único limite real e verdadeiro: “Se, porém, com as palavras ‘autonomia das realidades temporais’ se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais assertos. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste. De resto, todos os crentes, de qualquer religião, sempre souberam ouvir a sua voz e manifestação na linguagem das criaturas. Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece. (Gaudium et Spes, nº 36)” Ou seja, quanto às causalidades e explicações intramundanas de qualquer facto ou fenómeno, não existe limite para afirmar a autonomia. A única condição consiste em manter clara a dependência absoluta que toda a realidade criada mantém em relação ao Criador. Refletindo sobre a frase de Karl Rahner,”Deus atua o mundo, não atua no mundo”, afirma que Deus está criando o mundo para que ele possa existir. - O Princípio de todos os princípios - Estoutro pressuposto, de matriz filosófica, afirma que nenhuma ciência deve ser invadida ou anulada pelos direitos e privilégios de outra. No seu campo de investigação e na sua intencionalidade específica, o rigor e a especificidade da matemática não são superiores aos da biologia ou da ética. As normas, os procedimentos próprios de qualquer ciência não podem ser suplantados ou julgados pelos de outra. O mesmo acontece com a proposição filosófica ou teológica: tem a sua autonomia e, só a partir dela, deve ser interpretada e julgada. A cultura atual dispõe aqui da base irrenunciável para um espirito de diálogo mais sereno e objetivo entre ciência e teologia. Teólogos e cientistas têm um novo campo de encontro e compreensão mútua. As suas disciplinas possuem a mesma dignidade de princípio e gozam da mesma autonomia. Todas as ciências tratam do funcionamento e interação das realidades mundanas entre si. Também a teologia. Porém, a esse tratamento comum e ao respeito da sua autonomia, a teologia acrescenta a preocupação de estudá-las enquanto criadas por Deus, buscando compreender o que isso significa para a existência humana. É o que indica o Concílio ao falar da dependência do Criador. Estas afirmações fizeram-me lembrar a frase de Galileu: “A intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se vai para o céu e não como vai o Céu”. A ciência e religião têm intencionalidades específicas que não colidem, se cada uma respeitar os limites do seu objeto. Depois de aprofundar as consequências da teologia da Criação, Torres Queiruga termina: “Prefiro fechar estas reflexões com as palavras de Jesus: “Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra… (Mt, 11,25) Esta é a ‘teologia’ tão querida ao papa Francisco que, em 30 de novembro de 2019, disse: ‘a teologia nasce e cresce de joelhos’ (7/2/2024)