O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, janeiro 31, 2024

O DIÁOLOGO CIÊNCIA - FÉ NA ATUALIDADE (i)

“Novo arcebispo de Santiago de Compostela defende o galego na liturgia” (7Margens, 15/1/2024). Esta notícia veio confirmar o espírito de abertura do novo arcebispo já demonstrado quando convidou Torres Queiruga, ostracizado pelo antecessor, a dissertar sobre ciência e religião, nas XXXII Jornadas de Teologia (6/9/2023) do Instituto Teológico Compostelano. A conferência do antigo professor de teologia do Seminário e de filosofia da Universidade de Santiago, com vasta obra publicada – o original sempre em galego - motivou uma reflexão dum grupo de cristãos do Porto que me fez chegar o link de que me faço eco. O conceituado teólogo começa por afirmar que, com o problema dos conflitos entre Ciência e Religião, acontece algo parecido com o que dizia Nietzsche a respeito daquelas estrelas que continuam a brilhar, ainda que possam estar apagadas há milhares de anos. Os cientistas, que sabem manter as teorias no estrito campo da sua existência, não pretendem hoje legislar intelectualmente nos demais, seja na ética, na estética ou na filosofia; tão-pouco na teologia. E os teólogos, que fazem o mesmo no campo da sua competência, aprenderam a manter a mesma atitude nos problemas próprios das outras ciências. Mas é preciso contar com o tempo de maturação. E lembra o que já dizia o jesuíta e teólogo Karl Rahner (1904-1984): “Vivemos juntos com descendentes atrasados do século XIX”. E isto é tão válido para os teólogos como para os cientistas. Não é, pois, de admirar que a relação entre ciência e religião ainda não seja tão pacífica como deveria ser. E para confirmar esta dicotomia, refere as atitudes de dois amigos e grandes matemáticos que escreveram juntos os três volumes monumentais dos “Principia Mathematica”: Bertrand Russell e Alfred Whitehead. Enquanto Russel continuou até final, num estilo belicoso, a proclamar uma incompatibilidade absoluta entre religião e ciência; pelo contrário, Whitehead abandonou o positivismo e converteu-se no grande denunciante da ‘falácia da falsa concretitude’ por parte duma ciência que pretende identificar a sua visão setorial com toda a realidade. Estamos perante um problema complexo que nos convida a prescindir, de modo radical, de extremismos anacrónicos. Por isso, não vale a pena perder tempo com as simplificações e dogmatismos filosófico-religiosos dos ‘novos ateus’ que pretendem falar a partir da fundamentação científica nem com as simplificações paralelas dos fundamentalistas ‘anti-evolução’ que pretendem fundamentar-se na verdade religiosa. Na linha do teólogo Rudol Bultmann (1884-1976), começa por afirmar que “para a cultura antiga e, dentro dela, para o Novo Testamento e para a teologia clássica, o nosso mundo era uma espécie de cenário continuamente trabalhado por intervenções extraterrenas benignas, as celestes, e malignas, as infernais”. Entre um ‘Deus passivo’ e um ‘Deus intervencionista’ foi o esquema que dominou durante séculos o imaginário teológico, condicionando de modo decisivo a interpretação das suas verdades fundamentais. Porém, hoje, nem mesmo os mais tradicionalistas continuam a atribuir a chuva a Deus e as doenças ao diabo. A maior dificuldade não está em reconhecer a nova visão científica, mas, sim, em levar a cabo uma correspondente reinterpretação teológica que vença o dilema tradicional em torno do ‘deus passivo’ e do ‘deus intervencionista’. - O ‘deísmo’ apresenta Deus como o grande relojoeiro ou genial arquiteto que, no princípio, criou o mundo como uma máquina perfeita que agora funciona por si mesma enquanto que Ele permanece lá no Céu sem qualquer tipo de presença ativa, até ao Juízo Final. Esta conceção, que não satisfaz a consciência religiosa dum Deus vivo e operante continua, ainda hoje, a dominar certos estratos da consciência coletiva. - A conceção ‘intervencionista’ fala dum Deus no Céu, atento ao mundo, mas passivo, e atuando só com intervenções pontuais, de caráter mais ou menos milagroso. Hoje, parece claro que a aposta da teologia é a de, tendo em conta os fatores que configuram a atual situação cultural, encontrar uma solução que não obrigue o crente a ter de escolher entre o ‘deus passivo’ e o ‘deus intervencionista”. (31/1/2024)

quarta-feira, janeiro 24, 2024

CELEBRAR A VIDA

“Ter esperança é ter os nossos corações ancorados naqueles que amamos, nos nossos antepassados, nos lugares onde estão os santos, onde Cristo está, onde Deus está.” (Papa Francisco, in A Sabedoria do Papa Francisco) Aconteceu no ‘Dia de Todos-os-Santos’. Ao ler no Apocalipse (7,9) “Depois disto, vi uma multidão imensa”, saltaram-me à mente os ‘santos’ da minha vida. Era um longo, longo, cortejo… . Na frente, vinham os da minha família: meus pais, sogros, irmãos, avós, padrinhos, compadres, tios, sobrinho e primos. E os vizinhos que me acarinharam a meninice: a ‘tia Isabel’ que me ajudou a nascer e a ‘tia Juliana’ que me deu um gato. . Seguiam-se os que me orientaram nos caminhos da Fé: ‘Mestra Maruja’ a minha catequista; P. Carlos que me batizou; João XXIII que me entusiasmou; P. Vieira Pinto e P. Agostinho, meus diretores espirituais; D. Florentino que me ordenou; Paulo VI que me dispensou ‘das obrigações inerentes ao estado sacerdotal’; D. António Ferreira Gomes que me entregou o ‘’rescrito’ e disse: - “Espero que formeis a retaguarda teológica da Igreja”. . Depois, os que me ajudaram a progredir no conhecimento: D. Beatriz, a minha professora primária, e Dr. Sousa Marques, o último a falecer. E, em representação dos outros professores, nomeei os reitores dos seminários: Cónego Nédio de Sousa; Dr. Moreira da Rocha; Dr. Pinho Brandão e Padre Miguel Sampaio. E ainda o Professor Ruy Luís Gomes reitor da Universidade do Porto, que tão bem me acolheu. . Evoquei os companheiros dos ‘bancos de escola’, em especial o Pedro Gradim, o último a deixar-nos. E dos meus alunos, que me ajudaram a crescer em humanidade, lembrei o André e, dos estagiários, a Maria da Graça. Dos que partilharam comigo a alegria de ensinar, recordei o Guilherme, colega de estágio, o Brito e o Valério, da direção pedagógica, e o Oliveira e o Serafim, do ‘Boa Memória’. . E não faltaram os amigos que foram para mim ‘cireneus’ (Mt. 27,32), nas tardes de calvário e ‘madalenas’ (Jo 20,2), em manhãs de páscoa. E veio-me à mente o meu primo Manuel Joaquim e Frei Geraldo, o último a partir. E, do Coro Gregoriano, lembrei, em especial, o seu fundador, Belarmino Soares, e o Álvaro Ribeiro, o último a falecer. . Seguiam-se as ‘primícias’ da ‘Obra Diocesana’, entre muitos, P. Teixeira Fernandes, D. Julieta Cardoso e Dr. Pedro Cunha, do Secretariado Diocesano; Victor Capucho e Eng. Resende, da 1ª direção e os senhores Armando e Portela, dos centros sociais. E, da paróquia da S.ª do Calvário, Ângelo Jorge e senhor Costa, da Liturgia; D. Aida, D. Margarida e senhor Joaquim Costa, do apoio à capela da Paz, e D. Miquinhas, D. Maria José e senhor Alexandre, do Calvário; senhores Mota e Pereira, do Coro; D. Agostinha e senhor Artur, da Catequese; senhores Barbosa, Branquinho e Ramiro, da C.A. ; senhor Castro e Zé Guilherme, do Convívio; chefes Alcides, Amândio, Rosinha, Carlos Alberto e Joaquim, do Escutismo; D. Celeste e D. Cármen, da Caridade; D. Margarida e senhor José, da C. de Base; senhor Lima, Alcides e Altina Ferronha, do CPM; Olga Celeste e António Matos, dos M.E.C; Eng. Batalha e senhor Faria, do C. Paroquial; Azuil e Bento, dos estagiários. Este texto, pensado no ‘Dia de Fiéis Defuntos’, só agora é publicado porque “os últimos são os primeiros…” (Mt.20,16). A abrir as minhas memórias, vinha um sorriso que nos alegrou a vida e, agora, enche-nos o coração de saudade: era o nosso Zé Carlos. O seu funeral realizou-se em 24 de janeiro de 2010. Faz hoje 14 anos. No final das exéquias, o João Miguel disse: - “Meu irmão partiu, mas nós continuamos a celebrar a sua presença. No dia 4 de março, faria 30 anos. Convido-vos para um encontro de louvor e gratidão”. Foram muitos os amigos que aceitaram o convite e encheram o Centro Paroquial da S.ª do Calvário. E o jornalista Marques da Cruz fez um diaporama desse encontro com o título que assumi para este texto. “Gosto de ver a santidade (…) nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes (…) Esta é muitas vezes a santidade ao pé da porta.- Papa Francisco – Gaudete et Exsultate” (24/1/2024)

quarta-feira, janeiro 17, 2024

QUANDO OS JOVENS NOS DÃO MÚSICA...

Foi no ‘Dia de Reis’. A Sala Suggia, da Casa da Música, encheu-se para o ‘Concerto de Reis’ da Academia de Música de Costa Cabral. A ‘Orquestra Sinfónica’, com alunos dos ‘cursos profissionais de nível secundário’, iniciou o concerto com o ‘Lago dos Cisnes’, de Ilitch Tchaikovsk. Eram 92 jovens instrumentistas (Flauta, Oboé, Clarinete, Fagote, Saxofone, Trompa, Trompete, Tuba, Percussão, Violino I e II, Viola, Violoncelo, Contrabaixo, Piano, Harpa), dirigidos também por um jovem, Tiago Moreira da Silva, e coreografados por duas jovens bailarinas. Foi um momento de rara beleza onde a frescura dos rostos se harmonizava com o esmero da postura e a mestria da interpretação. Então, surgiu-me a exclamação: - Assim, é bom que os jovens nos deem música!… De seguida, a mesma orquestra, o coro da Academia (com cerca de 200 vozes da Iniciação e dos cursos básicos em regime integrado do 5.º ao 9.º ano) e o grupo de teatro ofereceram-nos, em interação, ‘Um conto de Natal’, numa adaptação do livro homónimo de Charles Dickens (1812-1870), um dos mais conhecidos contos da humanidade e, certamente, o mais representado conto de Natal. Em síntese… Para o protagonista (Scrooge), “dono dum coração duro” que só pensava em negócios, o Natal era uma pura perda de tempo. Porém, na véspera de Natal recebeu a visita do fantasma do seu velho sócio, Marley, que lhe anunciou a chegada de três espíritos que o fariam refletir sobre o seu comportamento. O Espírito do Natal Passado fá-lo peregrinar pelos tempos vividos o que o leva a pedir: - “Espírito, não me mostres mais nada. Não me tortures mais”. O Espírito responde: - “Mostrei-te apenas o que aconteceu. Não podemos mudar o que foi feito.” O Espírito do Natal Presente condu-lo a “uma ceia partilhada com cordialidade” onde se respira alegria e felicidade. No final, o sobrinho diz: “Vamos fazer um brinde à saúde do tio Srcooge! Apesar de ele não ter querido aceitar os meus votos, desejo um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!”. O Espírito do Natal do Futuro é acolhido por Scrooge com as palavras: - “Receio-te mais que os outros espíritos. Mas sei que pretendes o meu bem e esperando viver daqui em diante com um homem diferente, estou preparado para te acompanhar a transbordar de gratidão”. O Espírito condu-lo para um outro palco onde ele assiste ao que acontece a um homem “antipático e avarento”, após a morte, e o que sucede aos seus bens. E tais coisas viu que, logo, pergunta: - “Espírito, diz-me que é assim que acontece com tudo o que me tens mostrado? Era eu o homem que morreu? Eu vou mudar! Espírito, ouve-me. Já não sou o homem que era! Não serei o homem que teria sido sem a tua intervenção. Bondoso Espírito, intercede por mim! Garante-me que, mudando de vida, poderei alterar estas imagens que me mostraste.” E promete: - “Honrarei o Natal do fundo do coração e celebrá-lo-ei, todo o ano. Não esquecerei o que aprendi esta noite”. Será que mudou realmente?, interroga o narrador… O Coro canta “NOITE FELIZ”. Scrooge acorda e diz: - “Estou vivo! Estou vivo! Nem sei o que faço. Sinto-me leve que nem uma pena, feliz como um anjo e alegre como um estudante em férias!” No final, o narrador informou: - “Tornou-se um bom amigo, um bom patrão, um bom homem. Passou a viver sempre segundo os princípios de uma verdadeira caridade cristã. Ao ponto de poder afirmar-se que não havia pessoa que festejasse melhor e com mais entusiasmo o Natal. E formulou um voto: – “Oxalá se consiga dizer o mesmo de vós, de mim, de todos nós. E para findar, como dizia o pequeno Tim: “Deus nos abençoe a todos! Um Feliz Natal!” E foi em festa que tudo terminou, com a assistência, de pé e em uníssono com o Coro, a cantar: ‘A TODOS UM BOM NATAL’. As palmas encheram a Casa da Música. Um sorriso de gratidão iluminou a sala e brilhou em todos os rostos… E, no palco, instrumentistas, cantores e atores agradeciam e partilhavam felicidade. Louvor também para os seus mestres! Como é bom quando os jovens assim nos presenteiam!... (17/1/2024)

quarta-feira, janeiro 10, 2024

GLÓRIA A DEUS E PAZ AOS HOMENS

Este anúncio natalício do ‘Príncipe da Paz’ fez-me recordar o périplo que fizemos, no verão passado, por terras da Suíça. Em Zurique, no ‘Museu Nacional’, fiquei surpreendido ao ver gravada no edifício - um antigo mosteiro beneditino - a oração: ‘Domine, conserva nos in pace’. E interroguei-me: intencionalidade ou feliz coincidência num museu que celebra a história dum país que privilegia a paz? Já no regresso, ao sobrevoar o lago Léman, em cujas margens, no Instituto Ecuménico de Bossey, se encontravam 52 jovens - judeus, cristãos e muçulmanos - em busca de caminhos de paz, questionei-me: Que paz? O que nos diz a Bíblia? Para responder, socorri-me do Vocabulário de Teologia Bíblica, do conceituado biblista X. Léon-Dufour. Em síntese: . A Paz – Felicidade perfeita. A paz bíblica designa o bem-estar da existência quotidiana, o estado do homem que vive em harmonia com a natureza, consigo mesmo, com os outros e com Deus. . A Paz – Dom de Deus O Deus bíblico é o Deus da paz (Salmo 35, 27) O dom divino obtém-se pela oração confiante e também pela prática da justiça. A verdadeira paz liberta-se das suas limitações terrenas e converte-se num elemento essencial da pregação escatológica (Sl 72,7 e Sab 3, 1) A Paz em Cristo A justiça frutifica na paz, é a mensagem do Novo Testamento. - S. Lucas traça o retrato do rei pacífico. O seu nascimento é anunciado pelos anjos: ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra entre os homens de boa vontade’ (2,14) ‘Vai em paz’, com estas palavras, Jesus perdoa a pecadora arrependida (7,50) ‘Paz a esta casa’ (10,5), deve ser a saudação dos discípulos. - S. João revela-nos que, nos momentos de tristeza, Jesus consola-nos: ‘Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz’ (14,27). - S. Paulo, na saudação das suas cartas, une a graça e a paz: “graça a vós e paz da parte de Deus, nosso pai e da parte do Senhor Jesus Cristo (I Cor 1,3) A paz é a vida eterna antecipada na terra (cf. Rom 8.6) - Visão salvífica da paz. Jesus veio para estabelecer, na terra, a concórdia e a paz. Compete-nos, a nós seus discípulos, realizar a bem-aventurança: ‘Felizes os que fazem a paz, porque eles serão chamados filhos de Deus’ (Mt 5,9). Procurar a paz e construí-la à nossa volta é viver como Deus, é ser ‘filhos de Deus’ no Seu Filho único, Jesus. Só a justiça diante de Deus e entre os homens é o fundamento da paz. Mas não é a justiça do ‘olho por olho; dente por dente’ do Antigo Testamento – o que já era um progresso porque estabelecia a proporcionalidade na resposta, quando a nossa tendência é vingativa: ‘fizeste-me mal, eu faço-te pior; partiste-me um dente, eu parto-te a cara’. Jesus disse: “Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não matarás (…) Mas Eu digo-vos: todo aquele que se irar contra seu irmão será réu no juízo (…) Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito. (Mt, 5,21- 48) A justiça de Jesus passa pelo “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34) Sem perdão, não há paz. Daí, a guerra entre o Hamas e Israel Não é por acaso que as ‘Obras de Misericórdia Espirituais’ nos ensinam a “perdoar as injúrias e a sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo”. E, no ‘Pai Nosso’, pedimos: ”Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Não será também para nós o lamento de Jesus? - “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.” (Mt 15-8) A teologia, porque caminha nas fímbrias do mistério indizível de Deus que se fez Palavra em Jesus, deve ser ‘feita de joelhos’. Por isso, rezo o salmo 85,9: “Quero escutar o que Deus diz; Pois o SENHOR fala de paz.” Neste início de ano, formulo um voto: Que o Povo de Israel e seus líderes O ouçam … E que, pelo menos, respeitem o princípio da proporcionalidade -‘olho por olho, dente por dente’ – que está na base da cultura semita que partilham com os Árabes. Sem vinganças nem radicalismos… E lembro a palavra de D. Tolentino: “A paz não é uma realidade prévia e espontânea, um puro e garantido dado de facto, mas uma deliberada construção humana, uma escolha histórica e ética, um processo coletivo que requer a força de manter respeitadas e unidas as diferenças - 7MARGENS, 19/12/2023” (10/1/2024)