O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, dezembro 22, 2015

De quem é esta obra prima?






Sem data nem assinatura, sabemos que se chama “Fons Pietatis, Fons Vitae e Fons Misericordiae” mas, quanto ao resto, abundam as dúvidas e as opiniões. Os estudos críticos dão-na como pintada entre 1515 e 1517 por um artista flamengo para a Santa Casa da Misericórdia do Porto.
O tema central do Fons Vitae desenvolve-se em dois planos confluentes. O superior - o Céu- é ocupado pela cruz, quase escondida pelo Corpo de Cristo, colocada sobre uma taça, para onde jorra o sangue que sai da chaga do Seu lado. Com a cabeça levemente inclinada para a direita, não apresenta ferimentos. É doce o olhar dorido da Mãe e de espanto o de S. João.
No plano inferior - a Terra-, ajoelhados em redor da fonte, estão o Rei D. Manuel I e a Rainha D. Maria, ladeados pelos filhos com realce para o futuro rei D. João III e D. Isabel de Portugal, futura esposa de Carlos V e imperatriz de Espanha, que se encontram, respetivamente, ao lado do Rei e da Rainha.
A cruz marca o ponto central da composição e nos pés de Cristo encontra-se o ponto geométrico onde o Céu e a Terra confluem. E curiosamente é precisamente nesse ponto que se concentra o olhar de D. Manuel. Toda a pintura enaltece o lema manuelino: “Deo in celo tibi autem in mundo”(A Deus no céu e a ti na terra). Não é por acaso que o sangue de Cristo jorra na sua direção. Assim teremos um Emanuel no Céu e um Manuel na Terra, num paralelismo claro entre o poder de Cristo e o do Rei.
A obra terá sido encomendada por alguém do círculo de influências de D. Manuel, com boas relações com a Flandres e com a Santa Casa da Misericórdia do Porto. O Rei terá participado na escolha do tema dado nela constar o retrato da sua família.
O Fons Vitae terá chegado ao Porto em 1517 e seria o painel central do tríptico encomendado para retábulo-mor da capela da Misericórdia, mais tarde conhecida por capela de Santiago, no claustro velho da Sé. Em 1550, foi levado para a nova sede na rua das Flores, onde foi guardado e esquecido até que foi inventariado em1824.

Pertença da Santa Casa da Misericórdia do Porto, integra o novo Museu da Misericórdia. Porque uma obra artística, quando exposta, deixa de pertencer ao seu autor e abre-se à contemplação dos seus apreciadores que a recriam, o Fons Vitae também pode ser nosso. Basta visitá-lo e com ele dialogar. Uma boa sugestão para este Natal. Quem o fizer, no dia 28, poderá assistir ao concerto que o Coro Gregoriano do Porto irá apresentar, às 18 horas. (cf. VP, 9/12, pág. 5). Um Santo Natal para todos.  (22/12/2015)

quarta-feira, dezembro 16, 2015

PEREGRINAR PELA MEMÓRIA



“A vida é uma peregrinação e o ser humano é viator, um peregrino que percorre uma estrada até à meta desejada. (…) A mentalidade contemporânea, talvez mais que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. “ (O Rosto da Misericórida)
Em jeito de catarse desta cultura onde “a palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar”, visitei o Museu da Misericórdia do Porto (MMIPO). E confirmei o que o Provedor escreveu: “Neste espaço museológico vai encontrar os homens do Porto, as mulheres que ajudaram a construir impérios, as crianças que desejavam viver, mas também os benfeitores e a filantropia dos torna-viagem ou a generosidade de imensos anónimos que ajudaram a criar a Misericórdia”. A Confraria da Misericórdia do Porto foi fundada em 1499, um ano após a de Lisboa, por sugestão do Rei D. Manuel I. O Mesário do Culto e Cultura diz que “A do Porto fez o seu caminho, singular e único, assente na visão exigente e muito humanista das chamadas Obras de Misericórdia. Para as levar à prática, organizou-se, administrou pequenos hospitais-albergarias e construiu a sua sede numa rua nova e obrigatória na circulação e no comércio urbano.”
Como pórtico, o museu apresenta as “Obras de Misericórdia”, propósito fundador da Santa Casa, que enuncia assim: “Sete espirituais – Ensinar os símprezes; Dar bom conselho a quem o pede; Castigar com caridade os que erram; Consolar os tristes e desconsolados; Perdoar a quem errou; Sofrer as injúrias com paciência; Rogar a Deus pelos vivos e mortos. Sete corporais – Remir cativos e presos; Visitar e curar os enfermos; Cobrir os nus; Dar de comer aos famintos e pobres; Dar de beber aos que ham sede; Dar pousada aos peregrinos e pobres; Enterrar os finados” .
Ao caminhar ao longo do tempo, o visitante vai encontrar momentos que evidenciam o cumprimento destas Obras.
O MMIPO é um museu multifacetado. Para além deste peregrinar pela memória da misericórdia, expõe o seu riquíssimo espólio artístico que nos permite uma visão antropológica do homem do Porto com suas vivências religiosas e práticas humanitárias. Fala-nos da história do Porto que, a partir do século XVI, entra em simbiose com a sua.
O Santo Padre quer que, em cada diocese, se abra uma Porta da Misericórdia. “Assim cada Igreja particular estará diretamente envolvida na vivência deste Ano Santo como um momento extraordinário de graça e renovação espiritual”.
Uma visita ao MMIPO - que nos abre a porta da memória duma das “instituições da misericórdia” (cf. VP, 9/12, pag.9) - poderá ajudar-nos a viver mais plenamente o Ano Santo que, há dias, se iniciou.

(16/12/2015)

quinta-feira, dezembro 10, 2015

APÓSTOLA DA MISERICÓRDIA



Ao longo da vida, cruzei-me repetidas vezes com memórias de Sílvia Cardoso.

 Nado e criado em Campo, Valongo, bem cedo ouvi falar da “Casa dos Retiros da Granja” e de D. Sílvia que “era uma santa”. 
Na década de cinquenta, encontrei-a no livro “O anjo das três loucuras” do P. Moreira das Neves. 
Na década de seguinte, participei em retiros da Ação Católica na “Casa de Retiros do Falcão”, em cuja rua ainda há quem recorde o edifício e a “santa senhora”.
Em 1975/76, todas as manhãs a saudava ao passar junto da sua estátua, quando me dirigia para a escola em Paços de Ferreira onde lecionava e permanecia viva a sua memória. 
Na década de oitenta e seguintes, numa escola do Porto frequentada por alunos de Paços de Ferreira, os pais falavam-me da sua bondade. 
Nos últimos anos, ouvi e li várias textos de Monsenhor Ângelo Alves, meu professor de Filosofia. Recentemente, assisti à apresentação de Clematites para Deus, onde D. Sílvia foi evocada como “apóstola da misericórdia” e “bálsamo para os mais carenciados” .
O último encontro foi uma agradável surpresa. Deu-se no livro A Paixão do Bugio, de Alberto Jorge Marinho, editado em 1989, cuja protagonista é uma “enjeitada”. Embora não fosse seu propósito, ele mostra bem como as “pessoas idosas” lembram com saudades a “mãe dos pobres” a quem chamavam carinhosamente “Sílvia dos Retiros”.

“Olha, Maria Rita... a tua mãe foi encontrada em necessidade no Porto. D. Sílvia teve pena dela e trouxe-a para a Casa do Retiro. O primeiro gesto de Sílvia foi levá-la a uma casa de comidas, na Rua da Madeira. Só depois do estômago recomposto é que lhe perguntou se ela queria ir para a Casa da Granja. Era como uma “filha pródiga” que voltava ao lar da mãe Sílvia Cardoso.” (…) “D. Sílvia dos Retiros era capaz de compreender o seu caso... Todavia, D. Sílvia era para a enjeitada uma recordação tão doce como vaga! O que dela sabia era fruto de conversas da “tia” Alice, que lhe mostrava o retrato de uma senhora magra e simples, com um sorriso meigo nos lábios finos... E as pessoas idosas da terra falavam de Sílvia dos Retiros como de uma verdadeira “Mãe dos Pobres”, que até fazia “milagres” no mesmo jeito do velho padre Cruz! Embora o povo continuasse a chamar ao casarão “Casa do Retiro” há muito que D. Sílvia tinha saído de lá (...) Em vez de raparigas a fazer costura ou a cuidar do jardim (D. Sílvia tinha paixão por flores e até fazia experiências para novas espécies, usando a sua longa experiência de “fazer casamentos” com plantas, desde a infância nos jardins da casa da Torre em Paços de Ferreira, onde nascera)...“

“Santa senhora”, “Anjo das três loucuras”, “Sílvia dos retiros”, “Mãe dos pobres”, “Bálsamo para os mais carenciados” … “Apóstola da Misericórdia”.

( 9/12/2015)