O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, novembro 25, 2020

POR UMA PASTORAL DIFERENTE

Hoje, apresento-vos o livro "Zona Pastoral Ribeirinha -Cidade do Porto - Projeto de uma pastoral de conjunto”, escrito pelo P. Agostinho Jardim Moreira. Mais uma preciosa fonte documental para o conhecimento da Igreja do Porto no pós-Vaticano II. A inspiração deste projeto inovador partiu de D. António Ferreira Gomes que, em novembro de 1969, “comunicou a sua vontade de que na zona ribeirinha se fizesse uma Pastoral de Conjunto, pelo que considerava necessário que as paróquias da Sé, Vitória, S. Nicolau e Miragaia, com as reitorias e capelanias compreendidas na área geográfica das referidas paróquias, se constituíssem em Zona Pastoral Ribeirinha”. Logo foi eleita a “Comissão Central de Reflexão” que, em 27/1/1970, apresentou o “Resumo do seu trabalho com os seguintes parâmetros: . Constitua-se uma «Equipa Pastoral de Zona» que reúna, ao menos, uma vez por semana. Esta Equipa, com a colaboração dos leigos, defina um plano pastoral, um plano de ação social e serviço da caridade. . Organize-se um Curso de pastoral para os sacerdotes da zona e uma Escola de Militantes. . Organize-se um Centro Zonal de preparação de Noivos para o casamento; e um Centro zonal de preparação dos pais para o Batismo. . A Equipa Sacerdotal central prepare os esquemas de homilias, e as equipas subzonais de sacerdotes reúnam-se semanalmente para as adaptar e concretizar. . Incremente-se os contactos dos Pastores com os cristãos; Organizem-se grupos de base, de evangelização e oração para praticantes, e de encaminhamento para a Fé. . Que a continuidade da Reflexão e Ação pastoral seja particularmente garantida através da plena associação do laicado da zona a esse mesmo trabalho. Para concretizar estes objetivos, foram eleitas comissões «para a Evangelização» e «para a Ação Social». A primeira realizou, durante dois dias, na Páscoa, um curso de pastoral para os sacerdotes da Zona, com o tema “Teologia da Igreja e suas implicações pastorais” e outro, na Páscoa de 1971,sobre a urgência da catequese de adultos na zona. Elaborou esquemas de pregação para a devoção do “mês de maio” de 1970. Organizou três centros de preparação de homilias para todos os sacerdotes da Zona. A segunda fez um “levantamento das principais necessidades humano-sociais da zona e do armamento social existente”. E refletiu “sobre a resposta concreta que convinha dar a esta situação e a interpelação que esta situação lançava à Igreja desta zona”. Com todos estes dados, elaborou as «bases da Comissão Pastoral Ribeirinha para a Justiça Social» que, depois de discutidas e aprovadas foram enviadas, em 05/07/1979, ao Senhor Bispo, com requerimento para aprovação. Foi o início dum trabalho sinodal digno de louvor e estudo. Esclarecido no pensar, perseverante no agir, afável no trato, o pároco de S. Nicolau merece parabéns por mais este serviço. Preservou e divulgou um valioso acervo que testemunha uma época de grande empenho pastoral na Igreja do Porto. Sente-se nele o palpitar do Vaticano II. Como dizia São João XXIII, “sem uma pitada de loucura, a Igreja não cresce”. (25/11/2020)

quarta-feira, novembro 18, 2020

LEVANTO-ME TODAS AS MANHÃS

“Amen! A bênção e a glória, a sabedoria e a ação de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Amen!”(Ap 7,12) Inspirado por esta oração de louvor da 1ª leitura e pelas palavras de D. Américo Aguiar na missa do Dia-de-Todos-os-Santos, na igreja de S. Domingos, em Lisboa, telefonei a um amigo que está doente e não pode sair de casa. Quando perguntei “Como estás?”, respondeu: - “Levanto-me todas as manhãs. Dois AVC não perdoam. Ando pouquinho. Estou vivo e tenho quem cuide de mim, graças a Deus.”. Na sua voz, esvaída e trémula, floriam sentimentos de gratidão. Conheci-o em 1964. Era, então, empregado fabril e já vivia na casa, onde ainda mora, num bairro camarário de fraca nomeada. Desde novo, foi um lutador pela vivência comunitária. Começou por, em 1966, fundar um clube no seu bairro cuja sede funcionou como polo agregador dos moradores que, vindos de ilhas diferentes, não se conheciam. Com a chegada de outras etnias, passou a ser também um espaço de convivência intercultural. Num ambiente descristianizado, era, ainda, uma “capela diferente” que o pároco aproveitava para estar com vizinhos que não encontrava noutros lugares. E foi precisamente um destes “cristãos periféricos”, como dizia D. Manuel Vieira Pinto, quem fez e ofereceu o sacrário para a capela que então se construiu no bairro. Em 1995, ajudou a fundar uma associação destinada a acolher as crianças que vagueavam pelo bairro nos tempos não letivos. Eram convidadas a aparecer quando quisessem e havia sempre alguém que as acolhia e lhes oferecia atividades educativas. Com o tempo, a associação foi crescendo, com novas atividades que entusiasmavam a criançada, como a criação duma fanfarra. E foi ampliando e diversificando os serviços que continua a oferecer à comunidade, com especial atenção aos mais desprotegidos. Pobre, esteve sempre disponível para os outros. Certo dia, ao saber que um amigo passava por momentos difíceis de abandono familiar, disse-lhe: - “Tenho vários filhos e minha casa não é grande mas, se precisares, haverá sempre um prato à mesa e uma cama para ti.” E acrescentou: - “Eu também já precisei e sempre um amigo me deu a mão”. Quando ia para a baixa do Porto, levava umas moedas no bolso para dar a quem lhe pedisse porque, dizia, ”há sempre alguém que precisa mais que eu”. Na sua atividade política, esteve ao lado dos mais pobres e, no serviço autárquico para que foi eleito, fez ouvir a voz dos setores mais marginalizados. Em tudo, foi/é uma serena força de inclusão. Como escreveu o Papa Francisco no número 69 da «Fratelli Tutti»: “Enquanto caminhamos, embatemos, inevitavelmente, no homem ferido. Hoje, há cada vez mais feridos. A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e religiosos. Dia a dia enfrentamos a opção de ser bons samaritanos ou viandantes indiferentes que passam ao largo”. (VP, 18/11/2020)

quarta-feira, novembro 11, 2020

UM SANTO PELA VOZ DE OUTROS SANTOS

Aproveitei os dias de “Todos-os-Santos” e “Fiéis Defuntos” para reler a Exortação Apostólica “Exsultate et Gaudete”. Detive-me no capítulo IV - “Algumas caraterísticas da Santidade no Mundo Atual”. No número introdutório (110), o Papa Francisco adverte que irá referir apenas “alguns aspetos da chamada à santidade que tenham uma ressonância especial”. E quais são? Ao longo de 47 números fala de «Suportação, Paciência e Mansidão» - «Alegria e Sentido de Humor» - «Ousadia e Ardor» - «Em Comunidade» - «Em Oração Permanente». E vieram-me à mente três vidas exemplares que realizaram, cada um à sua maneira, estes conselhos: D. António Barroso, Padre Américo e D. António Francisco. É consolador ler o que o venerável ”Pai Américo” disse de D. António Barroso na inauguração do bairro de Miragaia que tem o seu nome. “O Senhor D. António Barroso encheu a História. Coisas pequeninas tornaram-no um gigante.… Não sei se algum Bispo da História de Moçambique tenha ido ao Zumbo antes dele. Era uma jornada de 15 dias por carreiros gentílicos. Só ele mereceu ocupar e preocupar os homens do Terreiro do Paço naquele tempo. Duro, tenaz. Rebelde. Uma só cara. Não torceu nem quebrou! Só ele! Porém a sua grande loucura está no amor aos pobres. Desmandos. Imprudências. Coisas mal feitas – tudo. Um cordão que a Mãe lhe dera gastava-se aos bocadinhos, quando não havia dinheiro. Os seus familiares sabiam muito, sim, mas não tudo. Os grandes escondem-se!” Foi com emoção que, no 5º “Dia da Voz Portucalense” em 2014, ouvi o bondoso D. António Francisco falar do seu venerável predecessor: “Raras figuras da história religiosa dos séculos XIX e XX reuniram, como D. António Barroso, a admiração diante do seu dinamismo apostólico e da coragem da sua fé no contexto dos tempos frágeis do fim da Monarquia e dos desafios imensos colocados ao nosso País nos tempos conturbados do início da República. Em 21 de fevereiro de 1899, foi nomeado Bispo do Porto. Aqui recomeça a sua inesquecível ação pastoral, percorrendo a Diocese em visitas pastorais, cujos relatos da época nos revelam uma bondade profética e uma proximidade evangelizadora impressionante. A coragem manifestada frente às atitudes irresponsáveis do Governo da República face à Igreja e a sua decisão ao determinar que fosse lida em todas as paróquias da Diocese a Carta do Episcopado português levaram-no ao exílio, para onde parte a 7 de março de 1911. Depois de vários processos de intenção e de julgamentos que inclusivamente o levaram à prisão, D. António Barroso regressa do exílio que viveu na sua aldeia natal, em Remelhe, Barcelos, a 3 de abril de 1914, para retomar o seu múnus de Bispo do Porto, no dia seguinte, em celebração festiva nesta Sé. Demos graças a Deus por este nosso Bispo que serviu a Igreja do Porto e a Igreja Universal, em tantas e delicadas frentes de missão”. Diversos nos contextos e carismas, são luzeiros nos caminhos da santidade. Em todos, a mesma bondade que nos enche o coração. (11/11/2020)

quarta-feira, novembro 04, 2020

A PARÁBOLA DOS DOIS AMIGOS

Certo dia, dois amigos decidiram ir passear junto ao mar. Ao caminhar na praia, acabaram por se desentender. O mais velho injuriou o companheiro que se inclinou e, em silêncio, escreveu na areia: «Ofendido». Continuaram a andar até que uma onda mais forte arrastou o mais novo para o mar. O colega atirou-se à água e trouxe-o para terra. E ele escreveu numa pedra: «Salvo». Surpreendido, o companheiro perguntou-lhe: - “Por que é que agora escreveste numa pedra quando há pouco escreveste na areia?” Ao que ele respondeu: -“ Na vida procuro esquecer as coisas más que me fazem. Por isso, escrevo-as na areia. Virá o vento, virá a água e rapidamente as apagarão. O que quero reter na memória e no coração é a gratidão que sinto pelo bem que me fazem. Isso, escrevo-o nos rochedos para que nem as vagas mais alterosas o apaguem. Há pessoas que, por uma pequena desconsideração, ficam zangadas e nunca mais a esquecem. Há outras que desvalorizam as incompreensões e valorizam os mínimos gestos de ajuda e simpatia. E eu? Há duas passagens evangélicas que sempre me questionam. A primeira é a da mulher adúltera: “Jesus, porém, inclinou-se para a frente e escrevia com o dedo na terra”. Porque é que o Evangelho regista «onde» e «com», e nada diz sobre «o» que escrevia? A “Mestra Maruja”, minha catequista, dizia-me que escrevia os pecados dos acusadores. Mesmo a ser verdade, esse registo rapidamente se apagaria porque “escrevia «com» o dedo «na» terra” (Jo. 8,1-11).”. A outra passagem é resposta de Jesus aos discípulos de que fala o Evangelho de S. Mateus (18,1-6): “Se não vos tornardes como as crianças, não entrareis no reino dos Céus”. Porquê «como as crianças»? Para mim, o que os adultos mais têm a aprender é a facilidade com que uma criança esquece o mal que um colega lhe fez. Tanto estão zangadas como, no momento seguinte, já brincam como se nada tivesse acontecido. Não ficam mágoas nem ressentimentos. Elas não dizem: “perdoo mas não esqueço”… Recordo duas vizinhas que se zangaram por causa duma “bulha” entre filhos. Ficaram de relações cortadas por muito tempo e até os proibiram de se falar, mas eles, às escondidas, continuaram a brincar. Em contraponto, lembro o Francisco, meu colega de infância. Sempre que podia, agarrava-me e atirava-me ao chão. Um dia, derrubei-o e ele magoou-se numa pedra. A chorar, disse à mãe que foi queixar-se a minha casa. Minha mãe ouviu-a e disse: - “Olha Rita, se hoje o meu bateu no teu, o teu também já bateu no meu. Estão pagos. Deixa-os brincar. Eles entendem-se.”. E assim aconteceu… “ O mythos deloi oti” (A fábula mostra que…), assim terminavam as fábulas de Esopo que sempre apresentavam uma moralidade. No caso vertente, a moral é fácil de compreender mas difícil de praticar… “Dar e perdoar é tentar reproduzir na nossa vida um pequeno reflexo da perfeição de Deus, que dá e perdoa superabundantemente.” (Papa Francisco, Exortação Apostólica “Sobre a chamada à santidade, nº81”).