O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, março 23, 2022

A MAIS ANTIGA FRONTEIRA

Este ano, faz 725 anos que D. Dinis, rei de Portugal, e D. Fernando IV, rei de Leão-Castela, assinaram (12/9/1297) um tratado que recebeu o nome da terra onde se realizou: Alcanizes, uma povoação leonesa-castelhana, a norte de Miranda do Douro. Nele, foi definida a linha de fronteira entre os dois reinos que se manteve quase inalterada até aos nossos dias. Assim, podemos orgulhar-nos de ter a fronteira mais antiga da Europa. Recordei esse tratado internacional quando, no verão passado, subimos com os netos a ‘Serra de Mesas’ para ver a nascente do rio Côa, famoso pelas suas pinturas rupestres. Este rio, que corre para norte, brota da terra a mais de mil metros de altitude e escorre por uma pequena caleira de granito onde todos bebemos e nos refrescámos. Ao longo dos seus 135 quilómetros atravessa terras de Sabugal, onde nasce na freguesia de Fóios, Almeida, Pinhel e desagua no rio Douro em Vila Nova de Foz Côa. Ali bem perto, nasce o seu “irmão gémeo” – o Águeda – que também corre para norte e, depois de dar uma volta por Cidade Rodrigo (Espanha), vai desaguar no Douro junto a Barca d’Alva, fazendo fronteira entre Portugal e Espanha na fase final do seu curso. Mas não foi sempre assim. Antes do Tratado de Alcanizes, a nossa fronteira era delimitada pelo rio Côa. A comarca de Riba-Côa, formada pelas terras entre aqueles dois rios, só passou a ser portuguesa após esse tratado. E o rio Águeda substituiu o Côa como fronteira, passando para o domínio português as vilas de Castelo Melhor, Castelo Rodrigo, Almeida, Alfaiates, Sabugal entre outras. “A altitude e exposição destas encostas da ‘Serra de Mesas’ geram humidade e precipitação elevadas”. Por isso, bem perto de ambos, nasce o rio Erges que corre para sul e, depois de passar pelas afamadas termas de Monfortinho, vai desaguar no Tejo. Se os anteriores, da bacia hidrográfica do Douro, ajudaram a definir a “raia húmida” da Beira Alta, o Erges, da bacia do Tejo, serviu para definir a fronteira da Beira-Baixa. Pelo referido tratado, todas as terras portuguesas da margem esquerda deste rio passaram a ser castelhanas. Conto um episódio que mostra como o povo reagiu a esta cedência. Apaixonado por castelos, visitei, na margem direita do Erges, Salvaterra do Extremo e não encontrei o castelo que o “Guia de Portugal” dizia existir. Pedindo ajuda na igreja da Misericórdia, o senhor Flores, que se ofereceu para nos acompanhar, perguntou-me: - “Que castelo quer ver? O nosso que é nosso ou o que era nosso mas já não é?” Respondi – “Vinha ver um, mas, se há mais, vamos lá ver os dois.” E fomos. Depois de observar o primeiro de que restam umas paredes, fomos visitar o outro. Subimos a uma colina e, por entre o arvoredo, descortinei um castelo do outro lado, na margem esquerda do Erges. Qual o seu nome? - perguntei. - “Castelo de Penafiel”, respondeu-me. Fiquei emocionado. Há muito que me interrogava sobre a localização deste castelo cujo nome me intrigara e nunca vira qualquer referência. No regresso, por sugestão do meu guia, provoquei umas senhoras idosas que se aqueciam ao sol. – “Boa tarde! Que bonito é o castelo espanhol!...” – “Não é nada. É nosso. O rei não tinha nada que dar o que não era dele”. E apontando para um monte distante, diziam: - “Portugal ia até lá ao cimo onde está a Cruz de Portugal’”. Se fosse hoje… (23/3/2022)

quarta-feira, março 16, 2022

TUDO O QUE SOU DEVO AOS 'GAIATOS'

Conheci-o na Associação Nun´Álvares de Campanhã. Falou-me da sua vida de ‘gaiato’ em Benguela e logo se predispôs para o que eu quisesse porque “os Gaiatos merecem tudo”. E assim, surgiu esta entrevista. Comecemos então… - Quem é o senhor António José? - Nasci em Silva Porto, Angola, em 1954. A minha mãe – Maria dos Anjos – era mestiça e o meu pai, que nunca conheci, era negro. A família de minha mãe não me aceitou por ser “filho dum negro” nem minha mãe me assumiu como filho. Era como se não existisse. Não me registaram nem batizaram. Fui ignorado e desprezado desde que nasci. - Fale-me, então, da sua infância. - Com menos de um mês de vida, fui entregue ao “Ninho dos Pequeninos”. Foi aí que me batizaram. E em honra de Santo António, deram-me o nome de António José. Com esse nome fui registado no ano seguinte, como filho de pais incógnitos. Não tenho nome de família. Sou simplesmente António José. Fiquei lá até aos 9 anos quando fui mandado para o “Bispado”. Um dia, apareceu uma senhora a dizer que eu tinha família e que era descendente de judeus. O diretor expulsou-me e eu sozinho percorri três quilómetros a pé até à cidade onde encontrei a dita senhora - minha tia Lurdes, soube-o depois -, que me levou à D. Violeta a quem passei a chamar avó. Tempos depois, levaram-me para casa duma minha “tia-avó” na fazenda da Cambândua” onde fui criado até aos 12 anos. Foi quando comecei a frequentar a escola mas faltava muito porque tinha medo dum Xiganjê (homem palhaço) que me aparecia no caminho. - Por que saiu da fazenda? - Aos 12 anos, minha mãe foi-me buscar para me trazer para casa dela, no Luso. A meio duma viagem de três dias de comboio, disse-me: “Quando chegares ao Luso, vais-me chamar tua irmã”. Ela já estava casada e tinha 8 filhos. Para o seu marido, fui sempre o cunhado que nunca aceitou. E para os filhos, fui sempre o tio. O meu padrasto batia-me muito. Os filhos faziam asneiras e quem as pagava era sempre eu. Muito apanhei… Até que fugi de casa e passei a dormir nas carruagens dos comboios e ajudava nos restaurantes a descascar batatas para me darem de comer. O pároco do Luso quando soube de mim, mandou-me para o “Beiral” que era um lar de idosos. - E como foi para Benguela? - Certo dia, passou pelo Luso o P. Manuel António que ia com os gaiatos dar um espetáculo. O pároco falou-lhe de mim e pediu que me levasse para a “Casa do Gaiato de Benguela”. E ele levou. Todos tínhamos uma alcunha. E eu, como vinha do Luso, fiquei a ser ‘O Luso’. - Quem foi para si o P. Manuel António? E o que deve à Casa do Gaiato? - Foi aquilo que eu nunca tive. Foi meu pai, minha mãe, meu irmão, meu amigo. Foi ele que me deu vida e me fez conhecer o mundo, ter gosto pelo trabalho e pelo estudo, ter ser na sociedade. Fez de mim um homem. Tudo o que sou devo aos ‘Gaiatos’. Tudo o que faço, foi lá que aprendi: toda a minha sabedoria veio da Casa do Gaiato. E o respeito ao próximo, não mexer nas coisas alheias, ter sempre a cara levantada, ser humilde e merecer a confiança de toda a gente - O que fez na Casa do Gaiato? -Fiz de tudo. Cuidei dos porcos, fui ajudante de trolha, lavrei as terras, fui tratorista e especializei-me em “serralheiro-soldador”. Fiz a 6ª classe e o Curso de Desenho Industrial. Eu e outro colega, fizemos um pombal onde, a partir de duas pombas, chegámos a ter mais de trezentas. E fui escuteiro de Nª Senhora do Pópulo. E monitor de colónias de férias. - Como foi a sua vida, depois de sair da Casa do Gaiato? - Aos 17 anos, quis experimentar a vida fora da casa. Quando saí do ‘Gaiato’, já o meu padrasto tinha morrido, então fui ao Luso dizer aos meus irmãos que era seu irmão. Nessa ocasião, minha mãe disse-me que me iria perfilhar mas nunca o fez. Depois, fui trabalhar com um grande construtor civil que, ao princípio desconfiou das minhas capacidades por ser muito novo, mas, ao ver o meu trabalho, logo me passou para chefe da serralharia. Fui eu que fiz a estrutura do Banco de Novo Redondo. Trabalhei aí até aos 19 anos. E, durante esse tempo, além de serralheiro, fui bombeiro e socorrista nos Bombeiros Voluntários de Benguela. - Como é que veio para o Porto? Em 1974, logo após a revolução, vim para Portugal e durante três dias fiquei num hotel na Batalha, no Porto. Mas, de madrugada, ia ajudar a carregar caixas no mercado de Matosinhos e ganhava um escudo por cada caixa. O IARN soube e eu tive de sair do hotel. Fui então para o “Postigo do Sol” onde estavam outros refugiados como eu e retornados. Num espaço livre na cave, montei uma serralharia. E ia comer, gratuitamente, à Messe dos Oficias na Batalha. Como ganhava pouco, em 1978, fui trabalhar para a serralharia Marquitec, na rua Joaquim António de Aguiar, onde estive até 1980. E fui bombeiro nos “Voluntários do Porto”. Em 1980, fui trabalhar para a Salvador Caetano. Era serralheiro e bombeiro privativo da empresa. Em 1989, quando soube que a empresa ia montar uma fábrica de carrocerias em Angola, pedi para me transferirem apara lá, mas ele disseram que, para isso, eu devia despedir-me daqui e concorrer lá. Não gostei e saí. - E depois para onde foi? - Em 1990, fui, com a empresa João Gomes Duarte, trabalhar para a ‘Expo 92 de Sevilha’. Depois, com a empresa francesa, ‘Buig’, fui para Londres onde ajudei a recuperar o ‘Colégio Watoolon’ em que estudou a Rainha e foi bombardeado durante a Guerra. De seguida, com a mesma empresa, e sempre como chefe de equipa, fui para o Luxemburgo e daqui para o maior túnel da Holanda, como serralheiro-soldador. Depois regressei a Portugal e fui para a ‘Tegop’ construir gruas e torres eólicas. Em 1998, estive na construção da ‘Ponte de Vasco da Gama’, como chefe de equipa. Depois, regressei ao Porto, e trabalhei na ‘Associação Nun’Álvares de Campanhã’ onde conheci os seus netinhos. - E agora, como vai a sua vida? - Tenho 5 filhas e 7 netos. Moro no bairro novo do Falcão e, há dois anos, trabalho por minha conta. Faço serviço de serralharia, pichelaria, eletricista, pintura; cuido de duas quintas, faço trabalhos de mudanças, limpo quintais e colaboro com o senhor Padre Fernando Milheiro no centro social e na igreja de Nossa Senhora do Calvário. E tudo isto, mais uma vez afirmo, devo-o à ‘Casa do Gaiato de Benguela’. Não fora ela, e eu não sei o que seria de mim. - Senhor António José, foi um gosto ouvi-lo. Homem das “sete partidas” e mestre de muitos ofícios. Uma vida de muita luta e de muita coragem. Obrigado pelo seu testemunho. Para terminar quer deixar-nos alguma mensagem? - Eu é que lhe digo muito obrigado. Quero agradecer à ‘Obra da Rua’ o muito que faz pelas pessoas, um trabalho desconhecido por muita gente que não tem a noção da sua dedicação e dos homens que de lá saem. (16/3/2022)

UM LUXO... E UM TESOURO

Nos tempos mais duros da pandemia, circulou nas redes sociais um texto de autor desconhecido que dizia: “Fizeram-nos acreditar que o luxo era o raro, o caro, o exclusivo, ter muito, muito dinheiro! Tudo aquilo que nos parecia inalcançável! Agora damo-nos conta de que o luxo eram esses pequenos gestos que não sabíamos valorizar/apreciar, porque, e tão simplesmente, por serem gratuitos! Aprendemos agora que: Luxo, é estar são! Luxo, é cumprimentar alguém com a mão! Luxo, é não pisar nenhum hospital! Luxo, é poder passear pela orla do mar e ouvir o sussurrar das ondas! Luxo, é passear pelo parque e conversar à vontade com alguém, sem quaisquer receios! Luxo, é poder sair às ruas, trabalhar e respirar, sem máscaras... Luxo, é poder reunir-se com a família! com seus amigos, abraçar, beijar! Luxo, são os olhares! Luxo, são os sorrisos! Luxo, é vivenciar intensamente as nossas alegrias! Luxo, são os abraços e os beijos! Luxo, é desfrutar vivamente cada instante, cada amanhecer, cada entardecer! Luxo, é o privilégio de amar e de estar vivo. Luxo, é dar mérito aos nossos verdadeiros amigos, e àqueles que nos querem bem! Luxo, é acarinhar, abraçar os nossos velhinhos doentes, que nos são tão queridos! Tudo isso é um luxo, e não sabíamos!... Prisioneiros nos encontramos, na esperança da liberdade, que desapareceu das nossas vidas!...” Recordei este texto, no dia 6 de março, ao ver, na RTP1, uma reportagem na chegada de refugiados ucranianos ao aeroporto de Lisboa. Registei o testemunho/apelo, num misto de dor e esperança, duma fugitiva que escolhera Portugal só porque “fica muito longe da minha terra”: “Apreciem a vossa vida. Sejam felizes! É um tesouro. A vida com paz é um tesouro. Não é preciso ter muito para ser feliz. Agora percebo isso.” E poderia acrescentar: Tesouro, é poder deitar-se à noite sem ter medo de ser atingido por um míssil. Tesouro, é, de manhã, abrir a torneira e ter água para se lavar e para as necessidades domésticas. Tesouro, é ir ao supermercado e à farmácia e encontrar disponíveis os produtos que se procura. Tesouro, é poder passear na rua sem o alarme medonho das sirenes. Tesouro, é ver a sua casa e a sua cidade sem as feridas dos bombardeamentos. Tesouro, é respirar o ar livre sem ter de se refugiar num ‘bunker’ apinhado de gente angustiada. Tesouro, é poder sair para o trabalho e, depois de um dia de canseiras, regressar ao aconchego da sua casa. Tesouro, é poder viver junto dos seus sem necessidade de partir ou de os ver partir rumo ao incerto. Tesouro, é poder preparar a mochila escolar dos filhos/netos e receber o seu beijo de ‘até logo’. Tesouro é abraçá-los ao fim do dia e afagar a sua cabecita na hora de adormecer. Tesouro, é não ver partir para a guerra aqueles que são mais queridos. Tesouro, é viver em paz sem necessidade de matar para não ser morto. Tesouro, é não ter de deixar para trás os pais idosos e doentes só porque se quer salvar os filhos. Tesouro, é poder ver o sorriso das crianças e não olhos esgazeados pelo medo da guerra. Tesouro, é não ver corpos ensanguentados ou mesmo despedaçados pela violência das bombas. Tesouro, é estar vivo e em segurança. E veio-me à mente a parábola do “tesouro escondido no campo, que um homem ao encontrar esconde, e na sua alegria vai, vende tudo quanto tem e compra aquele campo” - Mt 13, 44 (16/3/2022)

quinta-feira, março 10, 2022

PEDAGOGIA DO OLHAR

“ No céu que mais lhe toma a luz que acende/eu fui e coisas vi que repetir/não sabe ou pode quem de lá descende.” (A Divina Comédia, Parte III, Canto I, versos 5 e 6) Estou a ler ”A Divina Comédia” de Dante Alighieri, cuja tradução valeu, em 1996, a Vasco Graça Moura o “Grande Prémio da Tradução Literária”. Demorei-me na sua longa introdução - “Traduzir Dante: uma aproximação” - que nos facilita a leitura deste poema alegórico-didático que tanto influenciou a nossa cultura, com grandes repercussões na arte (Botticelli. Rodin, Salvador Dali) e no imaginário popular. Graça Moura para fundamentar o cuidado que lhe mereceu a tradução desta “gigantesca metáfora do sofrimento e da redenção” cita Erich Auerbach que diz: “ É, entre outras coisas, um poema didáctico de dimensões enciclopédicas que expõe a ordem físico-cosmológica, ética e histórico-política do universo; é, além disso, uma obra de arte que imita a realidade e na qual aparecem todas as esferas imagináveis do real: passado e presente, grandeza e abjecção, história e fábula, trágico e cómico, homem e paisagem; é, enfim, a história do desenvolvimento e da salvação de um indivíduo particular, Dante, e, enquanto tal, uma alegoria da redenção de toda a espécie humana” Em 894 páginas, com a versão portuguesa lado a lado com o original italiano, alonga-se por 100 ‘cantos’, divididos em três partes, tantas quantas as ‘Pessoas da Santíssima Trindade’. Cada uma delas é formada por 33 ‘cantos’ exceto a primeira que apresenta uma espécie de átrio introdutório. Cada ‘canto’ abre com uma breve síntese. Limito-me à do primeiro e do último de cada uma das partes. Primeira parte - Inferno: Canto I- “Na selva escura. O monte e as três feras. Encontro de Virgílio. Profecia de Lebréu. Princípio da viagem”; - Canto XXXIV- “Círculo nono. Traidores. A Judeca. Traidores dos benfeitores. Lúcifer. Judas, Bruto e Cássio, Descida ao centro da Terra. Saída do outro lado”; Segunda parte - Purgatório: Canto I – “Invocação às Musas. O hemisfério antárctico. Catão, guarda do Purgatório. Ritual de purificação”; - Canto XXXIII – “Pranto da Virtude. Profecia de Beatriz. Dante no Êunoe. Dante purificado”; Terceira parte - Paraíso: Canto I “Invocação. Subida ao céu. Dúvidas de Dante. A ordem do Universo”; - Canto XXXIII – “Oração de S. Bernardo. Visão de Deus e da unidade do Universo. Mistério da Trindade e da Encarnação. Esforço da mente de Dante.” No Canto XII, surpreendeu-me a referência ao nosso Pedro Hispano: ”Pedro Hispano que luz na terra em seus doze libelos” (145). Em nota de rodapé, o tradutor explica: Pedro Hispano, médico e teólogo português que foi papa sob o nome de João XXI (m. 1277). Os doze livros são as Summulae logicales. É o único papa que Dante põe no Paraíso – como autor, não como papa.” A complexidade deste poema imortal que, nas palavras do próprio Dante, “possui quatro sentidos sobrepostos: literal, moral, alegórico e místico”, tem motivado as mais diversas interpretações. Original é a que Tolentino de Mendonça apresentou em “Os Dias de Dante” (25/9/2021): “A Divina Comédia é para quem a lê uma verdadeira pedagogia do olhar, porque declina um paciente percurso de aprendizagem da visão, que o próprio protagonista do poema realiza em primeira pessoa sob a guia de vários mestres, e no qual se submete a testes óticos rigorosos, sedimenta talentos visuais inesperados, atravessa situações-limite que descolam do sono os seus olhos, reféns como os nossos dos vícios do hábito, das consequências entrópicas da indiferença, dos tentáculos da preguiça e do mal -in 7Margens. (8/3/2022)

quarta-feira, março 02, 2022

NOS 500 ANOS DA RUA DAS FLORES

Em 1521, D. Manuel I mandou abrir a rua de ‘Santa Catarina das Flores’, uma rua calcetada por ‘ pedra miúda’ “ de curta duração mas boa para cavalo andar, (que) tinha seu princípio, como hoje, um pouco à frente do Chafariz de S. Domingos e terminava no cruzamento com a extensa (à época) rua do Souto, onde hoje termina a rua dos Caldeireiros”. Associando-se às celebrações do seu quingentésimo aniversário, o Professor Ribeiro da Silva, mesário do Culto e da Cultura da Misericórdia do Porto, publicou, em ‘O Tripeiro’ (julho de 2021) um bem documentado estudo sobre “A Misericórdia do Porto nos 500 anos da Rua das Flores” de que me faço eco. A ‘Santa Casa’, que tivera o seu berço “na Sé, na capelinha de Santiago”, mudou-se logo em 1550, para a Rua das Flores. “Não foi a primeira entidade a erguer morada na artéria manuelina nem a sua sede é a mais antiga construção, mas é a única que permanece na posse do proprietário original”. Da sua longa memória, quero destacar alguns momentos que contribuíram “notoriamente para o dinamismo da rua e da própria cidade.” . O primeiro aconteceu, em 1559, aquando da bênção da primitiva igreja ”na presença de muitos homens e mulheres e dos ‘principais Senhores da cidade”. E prolongou-se com as obras de construção: “Até ao fim do século XVI e entrado o século XVII, os trabalhos na Misericórdia contribuíram para que a Rua das Flores continuasse a parecer um estaleiro, onde labutavam mesteirais humildes, mas também artistas de renome.” .No século XVII, construiu o hospital de D. Lopo de Almeida – “o grande hospital do Porto durante os séculos XVII e XVIII, até ser substituído pelo hospital de Santo António” - que trouxe para a “Rua das Flores, muitos milhares de pessoas da cidade e de fora dela, doentes e familiares, médicos, cirurgiões, sangradores, enfermeiros e enfermeiras, boticários, colaboradores diversos”. .No século XVIII, a nova igreja, obra do grande Nicolau Nasoni, “constituiu-se em polo de atração dos portuenses pela sua monumentalidade mas também pelos contínuos atos de culto e de sufrágio pelos irmãos falecidos e pelos benfeitores que nela todos os dias, ao longo de séculos, foram celebrados. As procissões rituais, nomeadamente a de quinta-feira santa, já de noite, atraíam muitos forasteiros”. Ao longo da sua existência, “os pobres, os desamparados, as mães desesperadas por não terem dinheiro para o resgate do marido ou do filho cativo no norte de África, os idosos, os presos, as órfãs, as viúvas, todos os desprotegidos aprenderam os caminhos da Misericórdia. Penso que nela sempre encontraram uma boa palavra, uma esmola, uma ajuda”. E atualmente? “Hoje os tempos são outros. A Rua das Flores recuperou da imagem deprimente e insegura que até há pouco era a sua fama, e não só recuperou como superou o primitivo encanto. (…) Os belos edifícios requalificados são os mesmos, talvez outras finalidades e préstimos. E a Misericórdia também continua lá, servindo todos os que sentem fome de cultura. O MMIPO (Museu e Igreja da Misericórdia) aponta, no tempo presente, o caminho para se conhecerem as ações e o verdadeiro espírito da Misericórdia, do passado e do presente, e, para se entender como o culto da beleza e a difusão do conhecimento podem ser uma verdadeira obra de misericórdia” Vale a pena percorrer demoradamente essa rua, “rompida em terrenos que pertenciam à Mitra e ao Cabido” onde “ainda hoje a roda dentada de Santa Catarina de Alexandria, símbolo escolhido pelo Bispo D. Pedro da Costa (1507-1535) ou o Arcanjo S. Miguel, sinal do Cabido, que se podem admirar em algumas fachadas, testemunham essa vetusta marca do senhorio eclesiástico”. Quem os descobre? Fica o desafio… (2/3/2022)