O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, março 10, 2022

PEDAGOGIA DO OLHAR

“ No céu que mais lhe toma a luz que acende/eu fui e coisas vi que repetir/não sabe ou pode quem de lá descende.” (A Divina Comédia, Parte III, Canto I, versos 5 e 6) Estou a ler ”A Divina Comédia” de Dante Alighieri, cuja tradução valeu, em 1996, a Vasco Graça Moura o “Grande Prémio da Tradução Literária”. Demorei-me na sua longa introdução - “Traduzir Dante: uma aproximação” - que nos facilita a leitura deste poema alegórico-didático que tanto influenciou a nossa cultura, com grandes repercussões na arte (Botticelli. Rodin, Salvador Dali) e no imaginário popular. Graça Moura para fundamentar o cuidado que lhe mereceu a tradução desta “gigantesca metáfora do sofrimento e da redenção” cita Erich Auerbach que diz: “ É, entre outras coisas, um poema didáctico de dimensões enciclopédicas que expõe a ordem físico-cosmológica, ética e histórico-política do universo; é, além disso, uma obra de arte que imita a realidade e na qual aparecem todas as esferas imagináveis do real: passado e presente, grandeza e abjecção, história e fábula, trágico e cómico, homem e paisagem; é, enfim, a história do desenvolvimento e da salvação de um indivíduo particular, Dante, e, enquanto tal, uma alegoria da redenção de toda a espécie humana” Em 894 páginas, com a versão portuguesa lado a lado com o original italiano, alonga-se por 100 ‘cantos’, divididos em três partes, tantas quantas as ‘Pessoas da Santíssima Trindade’. Cada uma delas é formada por 33 ‘cantos’ exceto a primeira que apresenta uma espécie de átrio introdutório. Cada ‘canto’ abre com uma breve síntese. Limito-me à do primeiro e do último de cada uma das partes. Primeira parte - Inferno: Canto I- “Na selva escura. O monte e as três feras. Encontro de Virgílio. Profecia de Lebréu. Princípio da viagem”; - Canto XXXIV- “Círculo nono. Traidores. A Judeca. Traidores dos benfeitores. Lúcifer. Judas, Bruto e Cássio, Descida ao centro da Terra. Saída do outro lado”; Segunda parte - Purgatório: Canto I – “Invocação às Musas. O hemisfério antárctico. Catão, guarda do Purgatório. Ritual de purificação”; - Canto XXXIII – “Pranto da Virtude. Profecia de Beatriz. Dante no Êunoe. Dante purificado”; Terceira parte - Paraíso: Canto I “Invocação. Subida ao céu. Dúvidas de Dante. A ordem do Universo”; - Canto XXXIII – “Oração de S. Bernardo. Visão de Deus e da unidade do Universo. Mistério da Trindade e da Encarnação. Esforço da mente de Dante.” No Canto XII, surpreendeu-me a referência ao nosso Pedro Hispano: ”Pedro Hispano que luz na terra em seus doze libelos” (145). Em nota de rodapé, o tradutor explica: Pedro Hispano, médico e teólogo português que foi papa sob o nome de João XXI (m. 1277). Os doze livros são as Summulae logicales. É o único papa que Dante põe no Paraíso – como autor, não como papa.” A complexidade deste poema imortal que, nas palavras do próprio Dante, “possui quatro sentidos sobrepostos: literal, moral, alegórico e místico”, tem motivado as mais diversas interpretações. Original é a que Tolentino de Mendonça apresentou em “Os Dias de Dante” (25/9/2021): “A Divina Comédia é para quem a lê uma verdadeira pedagogia do olhar, porque declina um paciente percurso de aprendizagem da visão, que o próprio protagonista do poema realiza em primeira pessoa sob a guia de vários mestres, e no qual se submete a testes óticos rigorosos, sedimenta talentos visuais inesperados, atravessa situações-limite que descolam do sono os seus olhos, reféns como os nossos dos vícios do hábito, das consequências entrópicas da indiferença, dos tentáculos da preguiça e do mal -in 7Margens. (8/3/2022)