O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, março 16, 2022

TUDO O QUE SOU DEVO AOS 'GAIATOS'

Conheci-o na Associação Nun´Álvares de Campanhã. Falou-me da sua vida de ‘gaiato’ em Benguela e logo se predispôs para o que eu quisesse porque “os Gaiatos merecem tudo”. E assim, surgiu esta entrevista. Comecemos então… - Quem é o senhor António José? - Nasci em Silva Porto, Angola, em 1954. A minha mãe – Maria dos Anjos – era mestiça e o meu pai, que nunca conheci, era negro. A família de minha mãe não me aceitou por ser “filho dum negro” nem minha mãe me assumiu como filho. Era como se não existisse. Não me registaram nem batizaram. Fui ignorado e desprezado desde que nasci. - Fale-me, então, da sua infância. - Com menos de um mês de vida, fui entregue ao “Ninho dos Pequeninos”. Foi aí que me batizaram. E em honra de Santo António, deram-me o nome de António José. Com esse nome fui registado no ano seguinte, como filho de pais incógnitos. Não tenho nome de família. Sou simplesmente António José. Fiquei lá até aos 9 anos quando fui mandado para o “Bispado”. Um dia, apareceu uma senhora a dizer que eu tinha família e que era descendente de judeus. O diretor expulsou-me e eu sozinho percorri três quilómetros a pé até à cidade onde encontrei a dita senhora - minha tia Lurdes, soube-o depois -, que me levou à D. Violeta a quem passei a chamar avó. Tempos depois, levaram-me para casa duma minha “tia-avó” na fazenda da Cambândua” onde fui criado até aos 12 anos. Foi quando comecei a frequentar a escola mas faltava muito porque tinha medo dum Xiganjê (homem palhaço) que me aparecia no caminho. - Por que saiu da fazenda? - Aos 12 anos, minha mãe foi-me buscar para me trazer para casa dela, no Luso. A meio duma viagem de três dias de comboio, disse-me: “Quando chegares ao Luso, vais-me chamar tua irmã”. Ela já estava casada e tinha 8 filhos. Para o seu marido, fui sempre o cunhado que nunca aceitou. E para os filhos, fui sempre o tio. O meu padrasto batia-me muito. Os filhos faziam asneiras e quem as pagava era sempre eu. Muito apanhei… Até que fugi de casa e passei a dormir nas carruagens dos comboios e ajudava nos restaurantes a descascar batatas para me darem de comer. O pároco do Luso quando soube de mim, mandou-me para o “Beiral” que era um lar de idosos. - E como foi para Benguela? - Certo dia, passou pelo Luso o P. Manuel António que ia com os gaiatos dar um espetáculo. O pároco falou-lhe de mim e pediu que me levasse para a “Casa do Gaiato de Benguela”. E ele levou. Todos tínhamos uma alcunha. E eu, como vinha do Luso, fiquei a ser ‘O Luso’. - Quem foi para si o P. Manuel António? E o que deve à Casa do Gaiato? - Foi aquilo que eu nunca tive. Foi meu pai, minha mãe, meu irmão, meu amigo. Foi ele que me deu vida e me fez conhecer o mundo, ter gosto pelo trabalho e pelo estudo, ter ser na sociedade. Fez de mim um homem. Tudo o que sou devo aos ‘Gaiatos’. Tudo o que faço, foi lá que aprendi: toda a minha sabedoria veio da Casa do Gaiato. E o respeito ao próximo, não mexer nas coisas alheias, ter sempre a cara levantada, ser humilde e merecer a confiança de toda a gente - O que fez na Casa do Gaiato? -Fiz de tudo. Cuidei dos porcos, fui ajudante de trolha, lavrei as terras, fui tratorista e especializei-me em “serralheiro-soldador”. Fiz a 6ª classe e o Curso de Desenho Industrial. Eu e outro colega, fizemos um pombal onde, a partir de duas pombas, chegámos a ter mais de trezentas. E fui escuteiro de Nª Senhora do Pópulo. E monitor de colónias de férias. - Como foi a sua vida, depois de sair da Casa do Gaiato? - Aos 17 anos, quis experimentar a vida fora da casa. Quando saí do ‘Gaiato’, já o meu padrasto tinha morrido, então fui ao Luso dizer aos meus irmãos que era seu irmão. Nessa ocasião, minha mãe disse-me que me iria perfilhar mas nunca o fez. Depois, fui trabalhar com um grande construtor civil que, ao princípio desconfiou das minhas capacidades por ser muito novo, mas, ao ver o meu trabalho, logo me passou para chefe da serralharia. Fui eu que fiz a estrutura do Banco de Novo Redondo. Trabalhei aí até aos 19 anos. E, durante esse tempo, além de serralheiro, fui bombeiro e socorrista nos Bombeiros Voluntários de Benguela. - Como é que veio para o Porto? Em 1974, logo após a revolução, vim para Portugal e durante três dias fiquei num hotel na Batalha, no Porto. Mas, de madrugada, ia ajudar a carregar caixas no mercado de Matosinhos e ganhava um escudo por cada caixa. O IARN soube e eu tive de sair do hotel. Fui então para o “Postigo do Sol” onde estavam outros refugiados como eu e retornados. Num espaço livre na cave, montei uma serralharia. E ia comer, gratuitamente, à Messe dos Oficias na Batalha. Como ganhava pouco, em 1978, fui trabalhar para a serralharia Marquitec, na rua Joaquim António de Aguiar, onde estive até 1980. E fui bombeiro nos “Voluntários do Porto”. Em 1980, fui trabalhar para a Salvador Caetano. Era serralheiro e bombeiro privativo da empresa. Em 1989, quando soube que a empresa ia montar uma fábrica de carrocerias em Angola, pedi para me transferirem apara lá, mas ele disseram que, para isso, eu devia despedir-me daqui e concorrer lá. Não gostei e saí. - E depois para onde foi? - Em 1990, fui, com a empresa João Gomes Duarte, trabalhar para a ‘Expo 92 de Sevilha’. Depois, com a empresa francesa, ‘Buig’, fui para Londres onde ajudei a recuperar o ‘Colégio Watoolon’ em que estudou a Rainha e foi bombardeado durante a Guerra. De seguida, com a mesma empresa, e sempre como chefe de equipa, fui para o Luxemburgo e daqui para o maior túnel da Holanda, como serralheiro-soldador. Depois regressei a Portugal e fui para a ‘Tegop’ construir gruas e torres eólicas. Em 1998, estive na construção da ‘Ponte de Vasco da Gama’, como chefe de equipa. Depois, regressei ao Porto, e trabalhei na ‘Associação Nun’Álvares de Campanhã’ onde conheci os seus netinhos. - E agora, como vai a sua vida? - Tenho 5 filhas e 7 netos. Moro no bairro novo do Falcão e, há dois anos, trabalho por minha conta. Faço serviço de serralharia, pichelaria, eletricista, pintura; cuido de duas quintas, faço trabalhos de mudanças, limpo quintais e colaboro com o senhor Padre Fernando Milheiro no centro social e na igreja de Nossa Senhora do Calvário. E tudo isto, mais uma vez afirmo, devo-o à ‘Casa do Gaiato de Benguela’. Não fora ela, e eu não sei o que seria de mim. - Senhor António José, foi um gosto ouvi-lo. Homem das “sete partidas” e mestre de muitos ofícios. Uma vida de muita luta e de muita coragem. Obrigado pelo seu testemunho. Para terminar quer deixar-nos alguma mensagem? - Eu é que lhe digo muito obrigado. Quero agradecer à ‘Obra da Rua’ o muito que faz pelas pessoas, um trabalho desconhecido por muita gente que não tem a noção da sua dedicação e dos homens que de lá saem. (16/3/2022)