O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, outubro 26, 2022

NA HORA DO ADEUS, UMA HOMENAGEM

No dia 25 de agosto deste ano, o JN informava: “António Teixeira Fernandes, professor catedrático jubilado da Universidade do Porto, morreu ontem, aos 83 anos. Docente fundou, em 1985, o departamento e o curso de Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estando ligado à criação da revista ‘Sociologia’, em 1991” A Voz Portucalense, em 7 de setembro, dedicou-lhe duas longas colunas na secção ‘Sacerdotes falecidos’ e, no dia 14, publicou o testemunho do Teixeira Coelho, seu condiscípulo e conterrâneo de que respiguei: “Teixeira Fernandes foi também um estudioso atento à sua terra natal. Deixa-nos o importante estudo “Memória e Identidade em Comunidade Autárquica – Arouca na encruzilhada do passado e do futuro”. Eu presto-lhe homenagem, lembrando o nosso último encontro. Aconteceu no dia 3 de junho, na Casa Sacerdotal onde vivia e eu, por solicitação do Monsenhor Soares Jorge, fui dar o meu testemunho de vida. Antes de iniciar, veio saudar-me. Ao dizer-lhe que começaria pela minha colaboração nos “Alvores da Obra Diocesana”, perguntou-me se poderia fazer o enquadramento sociológico e histórico desses primórdios. Com um sorriso, agradeci a sua oferta. Então, na linha do que escreveu no livro ‘Para a História da Diocese do Porto – Dom Florentino de Andrade e Silva’, começou por dizer: Nas décadas de cinquenta e sessenta, a Câmara Municipal do Porto vinha praticando, no sector da habitação social, uma política de não integração urbana, apesar de ser louvável a sua intenção de erradicar o grande cancro da cidade que eram as ‘ilhas’ formadas durante o período de industrialização do Porto ao longo do século XIX. E explicou: Com a criação dos bairros camarários a Câmara esqueceu que estava a construir novos ‘ghettos’ porque a deslocação das pessoas não era acompanhada de um desenvolvimento comunitário que promovesse uma nova modalidade de habitar. E com alguma emoção na voz, porque ia falar duma atividade da Igreja em que esteve pessoalmente empenhado, esclareceu: Para obviar a tais males, D. Florentino criou, em 1963, o Secretariado Diocesano de Acção Social que tinha por objetivo orientar e ajudar as famílias modestas, especialmente nos bairros populosos, a resolver os seus problemas. Não seria mais uma obra de assistência nem a sua função seria “dar esmolas”, antes visava uma ação educativa, orientadora, estimulante, coordenadora, supletiva”. E completou a sua intervenção dizendo: Após um período de organização, o Secretariado decidiu avançar para o terreno. D. Florentino criou, em fevereiro de 1964, a ‘Obra dos Bairros’ e chamou o João para seu responsável. Foram mais ou menos estas as suas palavras. Mas não falou foi sobre o seu contributo na criação do Secretariado e, indiretamente, da Obra Diocesana de Promoção Social e do apoio que me prestou o início do meu trabalho. Não disse que, como secretário particular de D. Florentino, era o seu ‘alter-ego’ na direção do Secretariado. Terminei o meu testemunho com estas palavras: durante doze anos, servi a Igreja sob a orientação pastoral de dois bispos, seis anos com cada um: D. Florentino, de 1963 a 1969, e D. António, de 1969 a 1975: duas personalidades e dois carismas bem diferentes, mas com o mesmo espírito de serviço e amor à Igreja. No final, o P. Teixeira Fernandes veio agradecer-me. E foi a última vez que nos vimos. Ele era assim: amigo, reservado, discreto, metódico, inteligente. Uma personalidade multifacetada. Como escreveu no prefácio do seu livro sobre Arouca, “Não se pode amputar aos grupos e às sociedades a sua capacidade de recordação, sob pena de se destruir a sua memória e com ela a consciência da sua identidade”. (26/10/2022)

terça-feira, outubro 25, 2022

JOAO PAULIO I E A HUMILDADE

No domingo em que o Papa Francisco beatificou João Paulo I, participei na Eucaristia na igreja de Santa Maria de Lagos. No final da homilia, o celebrante evocou as suas quatro catequeses. As três primeiras sobre as virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade. E a quarta (6/9/1978) sobre a Humildade. E sintetizou uma parábola que João Paulo I nela contou: “Um sujeito foi uma vez comprar um automóvel a um agente. Este fez-lhe um discurso: "Olhe que o automóvel é muito bom, trate-o bem. Sabe: gasolina 'super' no depósito; e nas junturas óleo do fino". O comprador respondeu: "Oh, não, fique sabendo, eu nem o cheiro da gasolina posso aguentar, e o do óleo também não; no depósito deitarei vinho espumante, de que tanto gosto, e as junturas untá-las-ei com marmelada". "Faça como quiser, responde o vendedor; mas depois não venha lamentar-se…". O Senhor fez coisa semelhante connosco: deu-nos este corpo, animado por uma alma inteligente, uma vontade boa. Disse: "É boa, mas trata-a bem, esta máquina". Eis os mandamentos: honrar pai e mãe, não matar, não se irar, ser delicado, não dizer mentiras, não roubar... Se fôssemos capazes de observar os mandamentos, andaríamos melhor nós e andaria também melhor o mundo”. E o celebrante comentou: “Para praticar os Mandamentos é preciso conhecê-los e pela sua ordem. Quem os sabe? ‘1º. ‘Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas’; 2.º ‘Não invocar o Santo Nome de Deus em vão’; 3.º ‘Santificar os domingos e festas de guarda.’ Quem cumprir os primeiros também não deixará de cumprir o quarto: ‘Honrar pai e mãe’`. E, já na despedida, aconselhou uma ida à Internet para uma leitura integral dessa Catequese. Foi o que fiz e respiguei algumas perícopes que agora compartilho. O ‘Papa do sorriso e da humildade’ começou por dizer: “Para sermos bons precisamos de estar no nosso lugar diante de Deus, diante do próximo e diante de nós mesmos. Diante de Deus, a posição justa é a de Abraão que disse: ‘Sou somente pó e cinza diante de ti, ó Senhor!’. Pequenos mesmo, é o que devemos sentir-nos diante de Deus. Os mandamentos são um pouco mais difíceis, algumas vezes bastante difíceis de observar; mas, se Deus no-los deu, não foi por capricho, não foi por interesse Seu, mas unicamente por interesse nosso”. E, depois continuou: “Há, ainda, o próximo e a três níveis: alguns estão acima de nós, alguns estão ao nosso nível, e outros estão abaixo. “Acima estão os nossos pais. O Papa deve inculcar respeito e obediência dos filhos aos pais. (…) Eu, sendo Bispo de Veneza, ia algumas vezes ao asilo. Uma vez encontrei uma doente, uma velhinha. — "Como está, senhora?". — "Bem, de comer bem. Calor.., aquecimento...: bem". — "Então está contente, senhora?". — "Não" — e pôs-se quase a chorar. — "Mas porque chora?". — "A minha nora, o meu filho não vêm nunca ver-me. Queria ver os netinhos". Não basta o calor, a comida, há o coração; é necessário pensar também no coração dos nossos velhos.” Sobre os nossos iguais, citou as palavras dum livro que havia lido: ‘Uma senhora tinha quatro homens em casa: o marido, um irmão, e dois filhos grandes. Ela sozinha fazia as compras, ela lavava e passava a roupa, ela cozinhava, ela fazia tudo. Um domingo, entram eles em casa. A mesa está preparada para o almoço, mas no prato há só um punhado de feno. - "Oh!", protestam e dizem: - "Que é isto? Feno!". -"Não, está tudo preparado, replica a senhora. - Deixai que vos diga: esforço-me, vario os pratos, tenho-vos limpos, faço todos os ofícios. Nunca, nem uma vez dissestes: 'preparaste-nos um bom almocinho'. Dizei alguma coisa! Não sou de pedra". São as pequenas caridades. Na nossa casa, todos temos alguém que espera um cumprimento”. Depois de falar sobre “os mais pequenos”, crianças e doentes, terminou com estas palavras: “Limito-me a recomendar uma virtude, tão querida pelo Senhor. Tanto recomendou: sede humildes! Mesmo que tenhais feito grandes coisas, dizei: "somos servos inúteis". A tendência, porém, em nós todos, é antes em sentido contrário: pormo-nos em vista. Mas devemos estar baixinhos, baixinhas. Faço votos que a vós suceda a mesma coisa.” Ao ler esta catequese do papa João Paulo I parecia-me estar a ver uma versão antecipada do Papa Francisco. Caminhos de Deus… Fica o seu exemplo e o seu apelo à humildade. (19/10/2022)

A cultura e a espinha dorsal de um povo

No dia 18 de setembro, o Porto esteve em festa. De manhã, milhares de pessoas concentraram-se nas avenidas do mar para participar e assistir à ‘Meia Maratona do Porto’. De tarde, foi bem no coração do centro histórico e com grande impacto junto dos turistas. A paróquia de S. Nicolau voltou a organizar a ‘Procissão da Senhora do Ó’ que foi precedida pela ‘Adoração do Santíssimo’. Recebida a Bênção, deu-se início com a cruz paroquial à frente, seguida pelos grupos, confrarias e irmandades da paróquia. E pelos andores da Senhora do Ó, de S. Nicolau e da Senhora das Dores. No fim, o pálio. A mim, coube-me pegar a uma das varas, lugar privilegiado para as vivências que agora partilho. Ao saímos da igreja, já a Praça do Infante, que lhe fica defronte, se enchera de centenas de turistas que acorreram para, o mais próximo possível, registar tão surpreendente atração. Na rua do Infante D. Henrique, a procissão seguiu entre alas que se acumulavam nas confluências das ruas da Alfândega, de Mouzinho de Silveira, de S. João e dos Mercadores. Enquanto caminhava, meus olhos treparam pelo ‘Monte da Pena Ventosa’. A meio da encosta, pararam no edifício seiscentista (1577) que nasceu como Colégio dos Jesuítas e, há mais de 150 anos, alberga o Seminário de Nossa Senhora da Conceição. E, lá no cimo, fixaram-se na vetusta Sé medieval, consagrada à Senhora da Assunção, padroeira da diocese, que alberga a imagem da Senhora de Vandoma, padroeira da cidade. E pensei: neste punhado de cristãos, é a Igreja do Porto que manifesta o seu amor à ‘Senhora-de-Todos-os-Nomes”. E o Porto – ‘Cidade da Virgem – revela a sua matriz cultural. À passagem dos andores e ao som da banda musical, o ‘Túnel da Ribeira’ fez-se catedral em louvor da ‘Senhora do Ó’, a Mãe que espera – ‘Senhora da Expectação’ – o nascimento do Filho que lhe cresce no seio e avoluma o ventre. Na rua da ‘Ribeira Negra’, a multidão apinhava-se junto à Ponte de D. Luís, subia pelas ‘Escadas do Codeçal’ e, lá bem no alto, debruçava-se nas guardas da ponte para captar imagens tão singulares numa paisagem de sonho. Depois, percorremos o ‘Cais da Ribeira’. Era um mar de gente que se comprimia no passeio marginal e nos parapeitos da Muralha Fernandina. As esplanadas estavam a abarrotar de clientes. À passagem do pálio, fazia-se silêncio. Havia quem genufletisse, quem se benzesse. Dos que estavam nas mesas, uns levantavam-se, outros faziam fotografias e vídeos. Todos assumiam uma atitude respeitosa. Ao longo do percurso, muitos foram os que se incorporaram na procissão de modo que, ao fim do Cais da Estiva, já era grande o número que a seguia. No Largo do Terreiro, a Capela da Senhora do Ó estava de portas abertas e havia muita gente que genufletia à passagem da imagem da sua devoção. As escadas do Muro dos Bacalhoeiros estavam repletas e muitos se acotovelavam em busca da melhor fotografia. Depois, seguiu-se a Reboleira e o regresso à igreja. A procissão foi abrilhantada pela Fanfarra dos Bombeiros Portuenses e pela Banda Musical de S. Pedro da Cova. Na sacristia, felicitei o P. Jardim e perguntei-lhe se as autarquias tinham participado nas despesas. Respondeu-me que nem um cêntimo recebera. Como se entende? Cultura é o modo de viver dum povo que, em cada momento (dimensão sincrónica) sabe integrar os valores que lhe vem do passado (dimensão diacrónica). É a coluna vertebral que lhe dá identidade e juízo crítico face às influências exógenas que o avassalam. Um povo sem cultura é uma sociedade sem bússola. Nem tradição sem evolução; nem evolução sem tradição. E questionei-me. Esta procissão não é uma expressão da alma do Porto? Não fará parte do seu ‘património’? Não foi, certamente, por motivos de fé que centenas e centenas de turistas fixaram imagens que irão encher as redes sociais e revelar ao Mundo traços identitários do ‘Porto-Património da Humanidade’… Não foi, certamente, pelos seus monumentos que o Porto - em competição com cidades como Amesterdão, Barcelona, Berlim, Lisboa, Londres, Roma, Veneza, Viena - acaba de receber em Espanha, pelas mãos da vereadora do Turismo da Câmara, o troféu de ‘melhor destino de cidade da Europa’ (JN,3/Out)… Não será missão das autarquias valorizar a preservação dos seus valores culturais? (13/10/2022)

terça-feira, outubro 04, 2022

A TUA EXISTÊNCIA É UMA BÊNÇÃO

Na semana passada, mão amiga ofereceu-me o livro que o Papa Francisco deu aos sacerdotes na Missa Crismal deste ano, na Basílica de São Pedro. O Secretariado Nacional de Liturgia publicou, em 4 de agosto, a versão portuguesa com o título “A vocação do padre perante as crises – A fidelidade criativa”. Na ‘Apresentação’ (pág. 7), D. José Cordeiro começa por escrever: “Agradecemos ao Secretariado Nacional de Liturgia que, em boa hora, traduziu esta obra acerca do padre nesta mudança de época. (…) São muitas as perguntas que D. Bustillo (o autor) coloca: Para que é que vivemos? Para quem vivemos? Onde estamos andando? Onde queremos ir? Vivemos numa Igreja que sonha? Temos um coração e um espírito velhos?” Para mais adiante, acrescentar: ”Não podemos esquecer que «sem a dimensão espiritual, a nossa vida pode ser filantrópica, altruísta, humanista, mas não cristã» (pág. 60). Por outras palavras: «a natureza gratuita da adoração orienta-nos para o essencial. A comunhão com o Senhor purifica as nossas tendências para o sucesso, à ação, talvez à agitação, para permanecermos na presença pacífica de Jesus» (pág.200). O livro com 218 páginas, está dividido em nove capítulos: - I. Senhor, não nos deixeis envergonhados – II. Funcionários? – III. Nós te escolhemos como padre – IV. Governar – V. Ensinar – VI. Santificar – VII. O tato do Padre – VIII. Reparar a vida relacional – IX. Portadores de Vida. Não querendo secar o manancial que brota de fonte tão cristalina, limito-me a partilhar convosco dois momentos da minha leitura. - A importância da dimensão comunitária da vida pastoral: “Se o padre reduz a pastoral ao culto, corre o risco do tédio e da preguiça. Se se entrega sem limites e sem muita ordem à missão, corre o risco da fadiga física e psicológica. Par evitar vidas neuróticas, é importante explorar a dimensão comunitária da vida pastoral. (…) A amizade com os leigos e com famílias (…) faz sair o padre de um círculo vicioso e mortífero, o da ação e da agitação. Gostaria de insistir, por um instante, sobre a importância dos leigos no acompanhamento dos padres. O padre tem necessidade dos outros para evitar uma vida triste e neurótica. Ele não pode passar sem os outros padres – a fraternidade sacerdotal - e também não pode passar sem os leigos. Estes oferecem-lhe uma normalidade humana. Santo Agostinho insiste na ligação entre o pastor e o seu povo. Sem esta ligação o padre corre o risco de se tornar um verdadeiro funcionário». (pág. 38) - A alegria evangélica da partilha é a chave de ouro que encerra o livro: “Jesus deixou-nos a Sua alegria para que nós a possamos espalhar no mundo. A nossa missão não se limita a uma ação. Já o dissemos, nós não somos negociantes do sagrado. Se a nossa missão não é animada por uma alma evangélica, ela será um sucesso profissional como tantos outros. O mundo espera por testemunhas do Evangelho, capazes de dizer aos outros: «A tua vida é uma alegria, obrigado por existires» ou ainda, de incarnar o amor do Senhor, dizendo aos outros: «A tua existência é uma bênção» (pág. 212-213). Em jeito de síntese: “O período que nós vivemos não é simples. Os padres, também eles, vivem o seu ministério numa época de incertezas. Estas incertezas podem suscitar tanto medos como entusiasmos. A missão do padre não é conseguir salvar o mundo com táticas e estratégias missionárias, mas conseguir viver com paixão a sua vocação. Se o mundo prega a produção e o êxito, o Evangelho prega a fecundidade. As crises encorajam os padres a velar pela sua humanidade, a cuidar da sua interioridade, a cultivar os desejos e a não sufocar os seus sonhos. (Na contracapa) Um livro para ser lido e meditado, ou melhor, ‘comido’, como gostava de dizer o nosso querido D. Manuel Martins… A profundidade da análise sociológica, a perspicácia das observações psicológicas e a pertinência das orientações pastorais fazem dele um tesouro para os presbíteros mas também para todos os cristãos. Um belo ‘livro de cabeceira’…(5/10/2022)