O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, outubro 28, 2020

A "FRATELLI TUTTI" NA IMPRENSA

É com vénia que me faço eco de três jornais de referência com textos assinados por teólogos que há muito admiro. . “A proposta do Papa parte da situação do nosso tempo, onde a globalização nos tornou vizinhos, mas não irmãos uns dos outros. Pelo contrário, estamos mais distantes e sós, mais desagregados e vulneráveis, limitados ao estatuto de espectadores e consumidores. De forma manifesta, as nossas sociedades mostram dificuldades em constituir-se como um projeto que diga respeito a todos. Obviamente não nos sentimos companhia do mesmo barco e locatários da mesma casa comum. (…) Os heróis do futuro serão aqueles que souberem esquecer a lógica dos seus interesses e se decidam a romper o cerco atual da indiferença, sustentando amigável e universalmente uma palavra densa de verdade humana. A “amizade social” é uma categoria para enquadrar no âmbito da fraternidade, da prática comprometida da solidariedade e de uma ativa compaixão. E aí todos podemos fazer mais. (Tolentino Mendonça, in Semanário Expresso, 10.10.2020) . “A encíclica é um convite à esperança activa, com o samaritanismo. O exemplo é o bom samaritano. Ele era um estrangeiro, mal visto pela ortodoxia, e também tinha os seus afazeres. Mas, à beira da estrada, jazia um desgraçado semimorto, e ele parou, ajudou-o no que pôde, levou-o para a estalagem, pagou e disse que pagaria todas as despesas... Foi ele e não os dois religiosos (o sacerdote e o levita) o próximo daquele abandonado. "Vai e faz o mesmo." Para os cristãos, todos os seres humanos são irmãos e irmãs, porque há um Pai comum, Deus. Mas a fraternidade podemos ir bebê-la também, paradoxalmente, à mortalidade, como viu Herbert Marcuse, que não era crente. Já em vésperas de morrer, voltou-se para o amigo Jürgen Habermas: "Agora sei, Jürgen, em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros. Somos mortais: logo, somos irmãos." (Anselmo Borges, in DN,10.10.2020) . “A sensação, ao meditar este documento, foi a de uma narrativa em que tudo me parecia novo. Não era a primeira vez que me surpreendia a sua capacidade de construir uma teologia de correlações surpreendentes entre os textos bíblicos e as realidades actuais, que mutuamente se iluminam. Este longo texto é o exercício continuado dessa luminosa correlação. Deve tornar-se o modelo inspirador para os padres que, por preguiça, repetem os textos bíblicos, que publicamente acabaram de ser proclamados, sem que dessa pregação brote a voz nova do espírito de Cristo para iluminar a vida concreta dos cristãos e não cristãos. Sem esse acontecimento, as homilias são uma seca. Por essa razão, a desgraça que pode acontecer a esta encíclica é que se torne moda repetir: «como diz o Papa Francisco…» Ora, o que interessa é que este texto provoque novos textos, novas intervenções, novas análises, novos estudos, novas investigações e, sobretudo, novas práticas sociais, culturais, económicas e políticas. (Frei Bento Domingues, in O Público,11.10.2020) (28/10/2020)

quarta-feira, outubro 21, 2020

A FAMÍLIA - CRISOL DE CRENÇAS E DE VALORES

Era o dia 2 de outubro… - Pai, acordaste pra ir para o trabalho? - perguntou a Eva, nessa manhã. É na família que a criança desperta para o valor do trabalho. - Mamã, diz o «Papá Nosso», pedira a Luz, na noite anterior. Que bela forma de expressar a mensagem do “Abba” de Jesus. É na família que a criança deve ouvir falar de Deus, um Deus amigo – Um Deus-Papá. Começa cedo, e muito bom, o nosso dia. Vamos ao centro histórico buscar as duas netas para as levar à creche na Associação Nun’Álvares de Campanhã. A viagem pela marginal do Douro é uma festa. “Cá vamos nós, não vamos sós, vamos com os avós!”Não se calam. É o rio, o nevoeiro, os barcos, as pontes – tudo é pretexto. Falam do pai que foi para a fábrica, da mãe que está a trabalhar. Ao passar junto da igreja sempre dizem: - Olá, Jesus, vamos para a escola. Tu és grande, não podes ir para a escola dos pequeninos. E cantam, cantam… Inicialmente, era “Ó Clarinha, olha as pombas…” Até que, nesse dia, começaram a cantar: “Bom dia, Jesus/ Vimos-te acordar./ Vem para ao pé de nós/ Connosco brincar./ Os nossos trabalhos, a nossa alegria /Te damos, Jesus, durante este dia”. Surpreendidos, perguntamos quem lhes tinha ensinado. E logo as duas, em coro, responderam: - A Lina - a sua educadora. Nesse dia, motivado pelo texto «Família, lugar de perdão» que corre nas redes sociais atribuído impropriamente ao Papa Francisco, fui ler a sua mensagem para o 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais que fala sobre esse tema. Diz: “Não existe a família perfeita, mas não é preciso ter medo da imperfeição, da fragilidade, nem mesmo dos conflitos; preciso é aprender a enfrentá-los de forma construtiva. Por isso, a família onde as pessoas, apesar das próprias limitações e pecados, se amam, torna-se uma escola de perdão. O perdão é uma dinâmica de comunicação: uma comunicação que definha e se quebra, mas, por meio do arrependimento expresso e acolhido, é possível reatá-la e fazê-la crescer.” É na família que a criança experimenta os valores humanos, como o do trabalho, e os valores cristãos de que o papa Francisco realça o perdão. As crenças condicionam os valores que geram as atitudes que predispõem para a ação. A educação manifesta-se nos comportamentos mas radica-se nas crenças e nos valores. Educar é cuidar das raízes. Crise, crisol; crítica e crivo são palavras que, na origem, partilham do mesmo significado: separar, depurar, limpar. Ser educador hoje não fácil. A vida familiar não é imune à crise ética desta sociedade hedonista e consumista. São muitos os concorrentes que lhe entram pela porta dentro e perturbam a educação dos seus filhos. Como o crisol separa o metal da escória e o crivo limpa o cereal das impurezas, assim a família, pela palavra e pelo exemplo, deve criticar (crivar) os modelos que a sociedade apresenta às crianças, ajudando-as a distinguir o bem e o mal. É sua a nobre missão de acrisolar. (21/10/2020)

quarta-feira, outubro 14, 2020

O PORTO E O CULTO A S. ROQUE

Quando a pandemia se alonga, lembrei-me duma placa que, tempos atrás, encontrei em Vila do Conde. Dizia: “A capela de S. Roque foi construída na sequência da peste de 1580 que atingiu Vila do Conde matando um quarto da população”. O Porto, que também sofreu essa epidemia, construiu, por essa altura, uma capela em honra do santo “advogado contra a peste”, mesmo ao lado da Sé. Diz-se que a capela foi mudada para o Largo do Souto, em 1776, em consequência do terramoto em 1755. Há, porém, quem afirme que a capela, no largo que “pelo lado nascente, de forma circular, se encostava perfeitamente aos rochedos dos Pelames”, foi inaugurada em 1741 e reconstruída em 1776 devido aos danos que sofreu com o terramoto. Certo é que, em 1876, foi demolida para se abrir a Rua Mouzinho da Silveira. Desapareceu. Porém, balaústres da sua escadaria ainda podem ser vistos a coroar, na rua dos Pelames, a parte superior do fontenário próximo. E permanecem vestígios da “forma circular” do Largo do Souto. Houve uma outra capela no Morro do Olival de que faz memória a antiga “Viela de S. Roque” - atual rua da Vitória. Num nicho embutido entre os números 411 e 413 dessa rua, conserva-se a sua imagem e, em 16 de agosto - o dia da sua festa litúrgica-, o povo ainda festeja o “S. Roque da Victória”. Lisboa celebra-o no primeiro domingo de outubro. É, pois, muito antigo o culto de S. Roque no Porto, mas, no centro, não há uma igreja como em Lisboa e muito menos uma paróquia como em Paris. Em contraponto, numa das saídas da cidade, outrora arrabalde, existe uma pequena capela que dá o nome a uma das mais longas ruas do Porto: S. Roque da Lameira. Porquê esta capela tão longe do centro histórico? Haveria aí uma gafaria? – perguntou-me, certo dia, D. António Ferreira Gomes. Eis o que nos diz a história. No terreno da atual capela, existiu uma outra, dedicada à Senhora da Ajuda, onde se venerava uma pequena imagem de S. Roque. Em 1700, o ermitão pegou nessa imagem e percorreu o Brasil a pedir esmolas para a construção duma igreja em honra do Santo. Estávamos no auge do «ciclo do ouro». Foi tal o seu sucesso que, logo em 1737, era inaugurado o novo templo, no qual ainda se conserva, na sacristia, o retábulo da capela primitiva e se mantém a imagem de Nossa Senhora da Ajuda. E por quê neste local? Onde hoje está o decrépito matadouro municipal, havia uma lagoa que recolhia as águas de Contumil para regar os campos de Bonjóia. A água que escorria dessa presa rudimentar encharcava a estrada que seguia para Trás-os-Montes. Esta a origem do nome “lameira”. Ainda existem as ruas de Lameira de Baixo e Lameira de Cima que dá acesso ao Estádio do Dragão. Este local, lamacento e pantanoso, era propício à propagação de doenças e pestes. Por isso, no alto da colina, lá estava de atalaia S. Roque para proteger os transeuntes. Por essa razão, um ilustre filho de Campanhã, no século passado, afirmava: “Não há S. Roque da Lameira; há S. Roque na Lameira”. (VP, 14/10/2020)

quarta-feira, outubro 07, 2020

ILUSTRE NA CIÊNCIA - GENEROSO NA FÉ

No passado dia 27, D. Manuel Linda presidiu à Eucaristia na igreja da Foz. Após a saudação inicial, anunciou “duas intenções muito importantes”: a 106ª Jornada Mundial do Migrante e o Centenário de nascimento do Professor Abel Sampaio Tavares, “uma pessoa que marcou o Mundo e a Igreja, uma figura muito importante para o Porto e para Portugal inteiro. É um exemplar daquilo que deve ser a presença do cristão no mundo: ajudar o desenvolvimento integral e implantar a dimensão ética e, por que não, também a dimensão religiosa”. Na homilia, explicou que, se quiséssemos apresentar um sumário das leituras e do salmo responsorial, poderíamos recorrer à frase da 2ª leitura: “Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus”. E exemplificou este apelo paulino com a Jornada dedicada ao Migrante e ao Refugiado, começando por informar que a primeira teve lugar, em 1914, em plena Primeira Grande Guerra. Depois de aprofundar a mensagem do papa Francisco, esclareceu que ele “veio pôr na ordem do dia esta celebração que andava um pouco esquecida”; e com a vida do Professor Abel Tavares “que foi grande em todos os aspetos, fundamentalmente na capacidade de interligar a presença atuante no Mundo com uma dimensão profunda da Fé”. Depois de historiar a sua multifacetada atividade como médico, professor e investigador, disse que a sua vivência quotidiana, na linha do seu mestre, Professor Hernâni Monteiro, também um cristão de fé comprometida, deu validade a quatro palavras: Competência científica, Sentido ético; Humanismo e uma “imensa Generosidade”. Acrescentou que, no meio de toda a sua atividade, “não meteu na gaveta a sua Fé profunda”. Esteve muito presente nos “Cursilhos de Cristandade” e manteve uma fidelidade inquebrantável a D. António Ferreira Gomes quando muitos titubeavam. Foi diretor do jornal “A Ordem” e escreveu imensos artigos para a revista Acção Médica da Associação dos Médicos Católicos de que foi um dos dirigentes. Depois, enfatizou que “são estas figuras que dão credibilidade à Igreja. Não queremos leigos clericalizados, leigos-padres no mundo”. E realçou: “O professor Abel Tavares mostrou como é possível conciliar na mesma pessoa a ciência mais profunda com a fé mais vivida”. A terminar, renovou a sua “ação de graças pela vida exemplar deste médico, professor, investigador, crente”. É com muito agrado que me faço eco desta celebração. Na pessoa do Professor Abel Tavares, presto homenagem a uma plêiade de insignes catedráticos da Faculdade de Medicina que muito honraram a Universidade e a Igreja do Porto. Por dever especial de gratidão, lembro o Professor Luís Pereira Leite – “figura incontornável da Obstetrícia e Ginecologia em Portugal” – que conheci nos “Cursos de Cristandade” e, nos primórdios da Obra Diocesana, prestou assistência aos doentes mais pobres do bairro do Cerco do Porto de que recordo o senhor António Varredor. (VP, 7/10/2020)