O Tanoeiro da Ribeira

sábado, dezembro 06, 2008

Dezembro na memória do Porto

Neste mês, dois acontecimentos marcaram a história recente do Porto: a morte do Dr. Sá Carneiro, no dia 4, em 1980, e a declaração do Porto como Património da Humanidade, no dia 5, em 1996.

O Dr. Sá Carneiro e a Obra Diocesana de Promoção Social

Francisco Sá Carneiro foi, certamente, o cidadão do Porto de maior relevo na história política portuguesa do século XX. Porém, não vou falar do estadista que, quando morreu, era Primeiro Ministro de Portugal, mas sim do cristão que muito contribuiu para o regresso de D. António Ferreira Gomes do seu longo exílio e que pertenceu à direcção da Obra Diocesana de Promoção Social.
Quando, em 1971, D. António quis nomear uma nova direcção para a Obra Diocesana, incumbiu-me de contactar o Dr. Sá Carneiro e, em seu nome, convidá-lo para presidente da Direcção. Recebeu-me no seu escritório de advogado na Rua da Picaria. Mostrou-se muito honrado com o convite mas não poderia aceitar porque iria apresentar na Assembleia Nacional um projecto sobre o divórcio que provocaria muita polémica junto da hierarquia católica o que poderia colocar D. António numa situação difícil. Após longa conversa, acabou por aceitar ser vogal da Direcção, cargo que desempenhou exemplarmente até ao 25 de Abril de 1974.
Relembro alguns pormenores da nossa convivência na reunião semanal da Direcção.
Quando reuníamos com a Câmara do Porto, com quem as relações, à época, eram algo conflituosas, sempre nos lembrava: “ se a mãe estiver, eu não falo” (a mãe, D. Maria Francisca Lumbrales Sá Carneiro, era vereadora da Assistência Social). De facto, quando esta participava, ele mantinha-se em silêncio do princípio ao fim do encontro. Sempre admirei essa sua preocupação de nunca entrar em conflito com a mãe.
Em 1972, quando o relacionamento da Obra com o Governo passava por momentos difíceis e, preocupados, nos interrogávamos sobre os caminhos a trilhar, o Arquitecto Fernando Távora, muito serenamente, profetizou que, dentro em breve, deixaríamos de ter problemas: “porque quem vai mandar nisto (no Governo) é aqui o Doutor.” (E apontou para o Dr. Sá Carneiro). Ele riu-se, nós rimo-nos.
A profecia cumpriu-se. E, brincando, relembrámo-la poucos meses antes da sua morte, quando, como Primeiro-Ministro, veio inaugurar as novas instalações do Centro Social de S. Roque da Lameira e a Direcção da Obra teve a amabilidade de convidar os antigos companheiros de direcção do Dr. Sá Carneiro.

O Porto - Património da Humanidade

Este título que tanto nos honra e que muito contribuiu para o incremento do turismo na nossa cidade, suscita nos portuenses sentimentos contraditórios como muito bem sintetizou o P. Agostinho Jardim Moreira, Pároco de S. Nicolau, no coração do “Centro Histórico”: “Primeiro congratulo-me porque este espaço belíssimo merece. Por outro lado, fico bastante pesaroso pela pouca atenção que se tem dado à sua requalificação efectiva, apesar de muito discurso político. (…) Não se tem em conta o verdadeiro património, que são as pessoas” (JN, 5/12/08)
Porque sou um homem de esperança e porque acredito que “a luta do Património Mundial é a construção do futuro assente nos alicerces do passado”, como bem afirmou o Presidente da Comissão Nacional da UNESCO, estive presente na sessão de apresentação do “Plano de Gestão do Centro Histórico” que se realizou no dia 5 de Dezembro na Câmara do Porto. O que ouvi agradou-me e, como o apresentador do plano, Arquitecto Rui Losa, é um técnico com provas dadas na recuperação do “Centro Histórico”, quero crer que não se trata de mais “discurso político”. Gostei de o ouvir afirmar que o Centro Histórico será “um espaço humano de excelência”. Na mesma linha de pensamento, o Presidente do Igespar declarou que “o património são as pessoas; há que dar vida ao património” e concluiu: “o Igespar faz parte da solução e não do problema.”
O Presidente da Câmara começou por explicar que a apresentação deste Plano de Gestão é uma forma de, condignamente, assinalar o 12º aniversário da declaração do Porto como Património Mundial e terminou afirmando que o “Centro Histórico” é a jóia da “Baixa do Porto” e o objectivo da Câmara é valorizar e dar utilidade aquilo que a cidade tem de melhor”.
Como eu gostaria que a visão humanista do património hoje apresentada fosse partilhada e assumida por todos os técnicos e políticos que têm a seu cargo a ingente tarefa de recuperação/humanização do “Centro Histórico”!...

Fernando Távora: o arquitecto humanista Fiquei feliz quando Rui Losa prestou homenagem ao Arquitecto Távora, já falecido, pelo exemplar contributo na recuperação do Porto. Este arquitecto, professor da Faculdade de Arquitectura do Porto a quem “ se deve grande parte das transformações que levaram a escola a ser uma das mais importantes do país, onde se formaram, por exemplo, Siza Vieira e Souto Moura” (Público – 18/10/06), não esgotou a sua actividade como arquitecto, professor, homem de cultura. O seu humanismo transbordou pelas comunidades mais pobres do Barredo e dos Bairros Sociais. Era um homem de bem, de um humor desconcertante, de um humanismo encantador. Realizou a síntese destes dois acontecimentos que evoquei: foi amigo e companheiro de Sá Carneiro na Direcção da ODPS e ocupou lugar destacado na recuperação do Barredo. A minha homenagem.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

FRATERNIDADE LUSO-GALAICA

“Missa do Peregrino”

No sábado passado, o Coro Gregoriano do Porto cantou a “Missa do Peregrino”, em Santiago de Compostela, presidida pelo Deão da Catedral. De novo, a espiritualidade da música gregoriana encheu as abóbadas daquela igreja, construída nos séculos XI/XII, que se tornou centro de peregrinação de toda a cristandade. O misticismo do cântico aliado à riqueza artística da catedral e à dignidade da celebração fizeram dessa Eucaristia um momento de profunda vivência cristã que levou o Deão a elogiar, publicamente, a presença do Coro Gregoriano do Porto e a confessar: ”não poderíamos ter encontrado melhor forma de encerrar o ano litúrgico”. O teólogo galego, Andrès Torres Queiruga, a cujo trabalho e simpatia ficamos a dever esta nossa festa, em dia de aniversário, agradeceu-nos os momentos de emoção que viveu durante a celebração Eucarística. A Igreja estava repleta de Peregrinos, vindos de muitas e variadas partes de Espanha e do estrangeiro, que se deixaram envolver pela beleza desta música que tem o dom de nos transportar para a intimidade do nosso próprio mistério.

A universalidade da Igreja

Dentro da catedral, carregada de simbolismo, muitas foram as reflexões que me assaltaram e as sensações que vivenciei.
Logo, no início, me veio ao pensamento a frase do nosso Bispo Auxiliar, D. João Miranda: “Somos todos membros activos de um Povo que peregrina desde Abraão e vai até à consumação dos séculos
Ajoelhado na nave central, lembrei-me dos milhares e milhares cristãos que, ao longo dos séculos, terão estado ajoelhados nesse mesmo lugar. Recordei minha mãe que, nas noites de verão da minha infância, me mostrava, no céu, a “estrada de Santiago” e me dizia: “por ali passam as almas que vão em peregrinação a Santiago porque quem não for lá em vida terá de ir depois da morte.” Senti-me membro de um povo que peregrina no tempo e fiz-me contemporâneo dos muitos milhões de crentes que, como eu, ali rezaram.

A alma galaico-portuguesa

As minhas reflexões saltaram para um outro campo quando, na homilia, ouvi o Deão da Catedral, presidente da concelebração, realçar a força e a beleza do salmo responsorial, cantado em português; quando o ouvi falar dos traços culturais e afectivos que unem a Galiza e Portugal; quando o ouvi afirmar que, na actualidade, essa ligação foi reforçada com o santuário de Fátima que se tornou um pólo complementar de Santiago porque os estrangeiros que vêm a Santiago depois passam por Fátima e, vice-versa.
A referência à nossa matriz cultural comum, fez-me lembrar o “ Grupo Nós”, um movimento cultural de intelectuais galegos e portugueses, da primeira metade do século passado, de que eram principais paladinos Teixeira de Pascoes, em Portugal, e Castelao, na Galiza. Visava quebrar as barreiras que a política levantou entre portugueses e galegos, reforçando a identidade da alma lusa e da alma galega tão bem expressa nas “Cantigas de Amigo” . Só para relembrar o paralelismo:
Ai flores, ai, flores do verde pino,
Se sabedes novas do meu amigo!
ai, Deus, e u é ?
(D. Dinis)

Ondas do mar de Vigo,
Se vistes meu amigo!
e ai, Deus, se verrá cedo
(Martin Codax)

E veio-me à mente a frase do pensador português Rodrigues Lapa “ Portugal não pára nas margens do Minho: estende-se naturalmente, nos domínios da paisagem, da língua e da cultura, até às costas do Cantábrico. O mesmo se pode dizer da Galiza: que não acaba no Minho, mas se prolonga suavemente, até às margens do Mondego.” a que corresponde o pensamento do galego Castelao “ Não há razões para que portugueses e galegos continuemos a ignoramo-nos ou a olharmo-nos de soslaio como as torres, temporariamente inimigas, de Tui e Valença.(…) Une-nos a língua e também o sentimento da Saudade que tanto nos diferencia dos castelhanos.(…) Ainda que Portugal e Galiza não tivessem outros laços para além do lirismo saudoso, este bastaria para que cessasse o afastamento em que temos vivido.”

Como estas palavras me fazem recordar D. António Ferreira Gomes quando, na Páscoa de 1970, ao receber um grupo de sacerdotes galegos, começou por dizer, com um sorriso no rosto: “Então, vamos lá falar um bocadinho de português arcaico.”
Lembrei-me, também, da “Romaxe” que, sob o lema “O Minho não separa”, o movimento dos “Cristãos Galegos” organizou, há uns anos atrás, no “Caminho de Santiago Português” em Bande, próximo da nossa fronteira do Lindoso, onde se juntaram mais de cinco mil pessoas vindas dos dois lados da fronteira e cuja Eucaristia foi celebrada com o pão de Villalba (Galiza) e o vinho de Ponte da Barca (Portugal). Aí, sentimo-nos verdadeiramente irmãos na Fé e na Cultura.

E evoquei a belíssima canção “Cantar d’Emigração”, que Isabel Silvestre tão bem canta, onde a música do português José Niza reforça a amargura das palavras da poetisa galega Rosalia de Castro, cuja estátua embeleza a Praça da Galiza no Porto, que falam do povo cuja pobreza obrigou os seus homens a partir para o estrangeiro, gerando “longas ausências mortais”; “mães que não têm filhos”; “viúvas de vivos mortos que ninguém consolará”.

Quando vejo, como vi, as filas de carros de matrícula portuguesa a abastecerem-se de gasolina em Tui; quando sei dos muitos jovens portugueses que estudam medicina na Universidade de Santiago; quando ouço falar do comboio de alta velocidade Porto – Vigo, lamento que todas estas aproximações sejam apenas fruto da necessidade ou dos interesses económicos, e não tenham a cimentá-las a consciência clara das nossas raízes comuns.
Apetece-me terminar com o poema:

Vendo-os assim tão pertinho
A Galiza a mail’o Minho
São como dois namorados
Que o rio traz separados
Quase desde o nascimento.

-Deixal’os, pois namorar
Já que os pais para casar
Lhes não dão consentimento.
(João Verde)

E deixo aqui o apelo de Teixeira de Pascoaes: “Portugal saiu dos seios da Galiza. Depoisd, abandonou a mãe e foi por esses mares fora, fugiu como filho pródigo. Mas é chegado o tempo do seu regresso ao lar materno. Temos de voltar a viver espiritualmente em comum. Assim o exige o destino das nossas pátrias, que ainda não está cumprido.