O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, junho 30, 2010

Dr. Madureira – Sábio e Pedagogo

Tenho na parede da sala uma cerâmica que, por estranha associação, me faz recordar o Dr. Madureira. Estranha porque resulta apenas do primeiro nome do seu criador: Nadir Afonso – o pintor em cujas obras “há uma dança de cores, traços e formas, uma dinâmica óptica que conduz o olhar” (Sérgio Gomes da Costa, in “TimeOut – Porto”). É que a primeira vez que ouvi falar nesta palavra foi pela boca do Dr. Madureira: “nadir” = “ponto da esfera celeste oposto ao zénite, que se situa na vertical do observador, directamente sob os seus pés.” Isto aconteceu numa cadeira de “Ciências ”, do 3º ano de Filosofia, no Seminário da Sé.




Ainda aluno do Seminário de Vilar, já meu primo Manuel Joaquim me falava com admiração dos textos do Dr. Madureira de que lembro “Entre colunas partidas…”. Escrevera-o quando estudava em Roma. À maneira dos diálogos platónicos, o autor, sentado entre as colunas partidas - daí o seu título - do Fórum Romano, conversa com um interlocutor imaginário sobre a vida e as interrogações do espírito. Assim, desde cedo, me habituei a admirar um professor que era um expoente da cultura filosófica e teológica da Igreja do Porto.
As aulas de Ciências foram o meu primeiro contacto com este Mestre que deixou em mim uma estima que, ainda, perdura. Deliciava-me a ouvi-lo dissertar, com grande sabedoria, sobre temas que, hoje, são objecto da “astrofísica”.
Voltei a encontrá-lo como aluno, no quarto ano de Teologia, mas aqui, continuando a ter profunda admiração pelo Professor, não me apaixonei tanto pela matéria leccionada. Estávamos em tempo de Vaticano II. Os tradicionais compêndios de teologia deixaram de entusiasmar. Atraíam-nos as novas correntes teológicas e os seus arautos como Rahner, Metz, H. Kung, Congar, Chenu, De Lubac, Ratzinguer, Schillibeeks.
A este propósito, não posso deixar de fazer um breve parêntesis para exorcizar uma memória que me magoa sempre que a evoco. Eu conto.
Em 1963, sob o pretexto da inauguração da Ponte da Arrábida, em 22 de Junho e do centenário do Seminário, liderei um movimento para obtermos de D. Florentino, a dispensa de exame a uma disciplina. Depois de muita pressão, acabou por ceder. A autorização foi-nos concedida no final da inauguração da Ponte da Arrábida. A notícia foi recebida com grande entusiasmo por todos os alunos que se reuniram por anos, para, por votação, decidirem a disciplina a dispensar. No meu ano, a escolhida foi a “Sacramental” cujo professor era o Dr. Madureira. A discussão e votação foram muito renhidas. Não queríamos magoar um professor a quem tanto queríamos e que muito admirávamos, mas a disciplina era aquela que nos obrigava a um maior investimento da memória. A “lei do menor esforço” acabou por vencer. Não sei se o Dr. Madureira ficou magoado. Continuou a falar-me com aquela finura de trato que todos lhes conhecíamos. Eu é que nunca mais ousei olhá-lo nos olhos. Aqui fica a minha confissão. Precisava desta catarse.

Posteriormente, por motivos académicos, revisitei dois dos seus textos - o Prefácio (P) à tese de doutoramento do Dr. Ângelo Alves, “O Sistema Filosófico de Leonardo Coimbra”, escrito em Setembro de 1961; a Oração de Sapiência (OS) ” Do Difícil Problema da Tolerância”, pronunciada no Seminário Maior do Porto em Outubro de 1955 - que passarei a citar por (P) e (OS)

O Dr. Madureira foi um sábio…

… À maneira de Sócrates que pagou com a vida a busca da verdade e a coerência no agir. “A perfeita sinceridade é como que um oitavo sacramento”(P). “Procurar sinceramente uma melhor interpretação da vida ou tentar encontrar uma nova, quando as conhecidas não satisfazem, só diz bem a favor de um homem”(P). Por detrás de uma figura frágil, escondia-se um carácter forte que não recuou perante os riscos que correu ao buscar “uma melhor interpretação para a vida”.

… À maneira de Aristóteles que afirmou “ sou amigo de Platão mas ainda o sou mais da verdade”. Também ele, apesar do seu amor à Igreja, não se escusou a denunciar: “Por falta desta compreensão e tolerância prática, um cardeal espanhol foi recentemente sujeito pelo Vaticano a uma invulgar humilhação.” (OS)

…À maneira de Descartes, na valorização da razão e na clareza do pensamento. Não foi sem motivo que um seu aluno conjugou, com humor, a serenidade do seu caminhar e a clarividência das suas ideias: “Não agitar: contém ideias claras e distintas”.

… À maneira dos pioneiros da Modernidade, num saber plurifacetado ao serviço de um humanismo mais pleno. “Salvos os dogmas divinos – onde os houver - devemos fomentar aquilo que modernamente se chama “a emergência da personalidade” (P)

O Dr. Madureira foi um precursor de tempos novos.
Na sua “Oração de Sapiência”, de 1955, perpassa já o espírito que irá animar o Vaticano II. Foi um pioneiro da teologia da encarnação que, sem deixar o céu dos grandes princípios, mergulha na leitura evangélica das realidades terrenas e procura, como “janela do infinito”, desvendar o divino no humano.

Teve a clarividência e a força de um profeta no anúncio, na denúncia, no prenúncio e na coragem.

- Num país que negava as liberdades públicas - estávamos em 1955 - anunciou: “A liberdade de expressão é uma expressão da liberdade, desse dom divino concedido a todo o homem”(OS).

- Num Estado monolítico, onde os opositores eram perseguidos, denunciou: “ Politicamente, as nações nórdicas da Europa e da América conseguiram uma estabilidade que falta aos povos latinos precisamente porque compreenderam a necessidade vital da oposição. A oposição, mais que tolerada, é bem aceite.”(OS).

- Num Estado ditatorial cujo termo não se vislumbrava, prenunciou: ”As ditaduras vão baqueando umas após outras, deixando atrás de si montanhas de escombros”(OS).

- Num país onde a Censura e a PIDE controlavam ferozmente os meios de comunicação, não temeu citar Pio XII: “Abafar a (opinião) dos cidadãos, reduzi-la ao silêncio forçado, é, aos olhos de todos os cristãos, um atentado ao direito natural do homem, uma violação da ordem do mundo, como Deus estabeleceu”(OS). E teve a coragem de se assumir como arauto da liberdade de imprensa: “À falta de outra voz melhor, levanta-se aqui esta pobre e apagada que estão a escutar.” (OS)

O Dr. Madureira foi, sobretudo, um pedagogo que ajudou a formar sucessivas gerações de alunos, como confessava meu primo, Manuel Joaquim Alves de Oliveira, em Março deste ano:
Penso que essa nossa geração do Porto que seguiu o D. António, foi no fundo preparada e alimentada pelo ensino cristalino do Dr. Madureira. Não era um homem de teorias abstractas, mas sim de alguns princípios basilares: a Fé na Boa Nova revelada, a busca contínua da razão de ser das coisas, o respeito pela pessoa e pelas ideias dos outros, o direito à liberdade. Foi isso que ele nos ensinou tanto no que dizia, como também (e talvez ainda mais) no que deixava sem dizer...”

Gostaria de retribuir ao Dr. Madureira o elogio que ele dedicou ao seu professor Cónego Correia Pinto, em 1952:
Dificilmente o esquecerão aqueles que, um dia, pertenceram ao número dos seus discípulos. Ao fim do ano, todos levavam um pedaço da sua alma” (Voz do Pastor, 30/08/1952).

Uma Obra de Igreja

Campanhã, a mais extensa freguesia da cidade do Porto, é terra onde os vizinhos ainda se conhecem pelo nome. É terra de gente solidária que se manifesta não só nas relações de vizinhança mas nas muitas colectividades que proliferam na freguesia.




Hoje, merece uma referência especial uma prestigiada instituição de matriz cristã que, não sendo da Igreja, sempre foi tida como obra de Igreja. Falo da “Associação Nun’Álvares de Campanhã - ANC”. Veneranda nos 75 anos que está a festejar, mantém “a dinâmica de uma saudável juventude”.

Na passada 6ª feira, o seu grande salão de festas encheu-se para a apresentação do livro “Associação Nun’Álvares de Campanhã – subsídios para a sua História”da autoria do Professor César Santos Silva, feita pela Engª Natália Queiroz, presidente dos “Amigos do Porto”. Esta obra notável de investigação histórica só foi possível, no dizer do seu autor, graças à colaboração de Manuel Jorge Costa.

E vieram-me à mente as palavras do Santo Padre, na sua recente visita a Portugal:
“A cultura reflecte hoje uma tensão, que por vezes toma formas de conflito, entre o presente e a tradição. A dinâmica da sociedade absolutiza o presente,
isolando-o do património cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro
.”
Está, pois, de parabéns, a Direcção ao fazer memória de todo um passado que a dignifica e pode ajudar a delinear o futuro desta terra que sofre da fatalidade geográfica de ser o “nordeste da cidade”.

Como escreveu o actual presidente da Associação, Albino Magalhães, “A falta que os jovens da Paróquia sentiam em ter um espaço colectivo onde pudessem conviver, praticar desporto e actividades lúdicas, encontraram na Igreja e no Pároco a mão capaz de os ajudar num projecto arrojado”. E o sonho de alguns fez-se obra de toda a comunidade. Corria o ano de 1934.
Desde o início, os jovens, sob o lema “mens sana in corpore sano”, foram os promotores do crescimento da ANC, nas suas diversas valências: biblioteca, orquestra, orfeão, grupo cénico, sala de jogos, secção desportiva de ping pong, basquetebol, voleibol, hóquei em patins. Em 1941, a biblioteca possuía 612 livros; em 1944, a equipa de basquetebol venceu o campeonato regional da 2ª divisão.


Quantas gerações de jovens cresceram à sombra desta casa! Quantos a ela devem o seu futuro! Como me disse um desses jovens, hoje médico de sucesso:”aquela era a nossa casa”.

Os tempos foram passando… Criou-se o “Posto Médico” e a “Sopa dos Pobres”. Hoje, ao celebrar as suas “Bodas de Brilhante” a Associação tem ATL, Centro de Dia para Idosos, Serviço de Apoio Domiciliário, Creche, Jardim de Infância, Centro de Convívio. É servida por 49 colaboradores e gere, anualmente, cerca de um milhão de euros. Além destas, existem outras actividades de cariz social, cultural e religiosa. Nela, reúnem os múltiplos grupos paroquiais e tem a sua sede o 9º Agrupamento CNE.

E o futuro? O futuro chama-se “Casa dos Girassóis” e começa a nascer com um novo Centro de Dia, num terreno de 6 150 m2, junto às actuais instalações e culminará num Lar de Idosos.
Que Deus ajude a actual Direcção a realizar este seu sonho maior e recompense todos aqueles que ajudaram a nascer e crescer esta obra cristã e profundamente humana. Um bem-haja para todos os que nela trabalham ou dela usufruem.
Apetece-me terminar, parafraseando um slogan publicitário em voga: Sem a Associação Nun’Álvares, Campanhã poderia existir, mas não era a mesma coisa…

quarta-feira, junho 23, 2010

UM CORAÇÃO COM ROSTO

Há meses, ao conversar com o pároco de S. Cristóvão de Ovar sobre a “Peregrinação a Santuários Franceses”, que inclui uma visita a Paray – le- Monial, tomei conhecimento do livro “Um Coração com Rosto”, editado em 2005 pela Câmara Municipal de Ovar. O autor do texto que deu título a esta obra, Pe. Manuel Pires Bastos, falou-me, com grande saber, sobre o culto do Sagrado Coração de Jesus em Portugal e. muito especialmente, em Ovar.
Comunguei do seu entusiasmo e recordei, então, os tempos da minha meninice quando, em vez de minha mãe, zeladora muito devota do Sagrado Coração de Jesus, passava por casa dos associados a recolher as suas contribuições para a Associação existente na paróquia. Porque sei da influência que esta devoção teve na educação cristã de muitas crianças da minha geração, resolvi escrever esta breve resenha histórica baseada nos elementos que me foram fornecidos por aquele sacerdote investigador.

* O Coração de Jesus
É do século XIII a mais antiga representação do Coração de Jesus. Os séculos XV e XVI foram férteis em exercícios de piedade dirigidos ao coração de Cristo. Em Portugal, a partir de 1581, Frei Tomé de Jesus estimula um culto personalizado e contemplativo, escrevendo: “Adoro-te, abraço-te saúdo-te Divino Coração, tão cativo do meu Amor

* Santa Margarida Maria Alacoque A partir de 1674, acontecem as revelações do Coração de Jesus a esta religiosa do Instituto da Visitação, em Paray-le-Monial (França). Na terceira destas manifestações, Cristo mostra o seu peito aberto, expressão do “excesso a que tinha chegado em amar os homens, de quem não recebia senão ingratidões e desprezos”. Noutra revelação, faz promessas aos seus devotos e pede-lhes actos de reparação através da comunhão nas primeiras sextas-feiras de cada mês. Como eu recordo a preocupação que, após a primeira comunhão, tínhamos em fazer as nove primeiras sextas-feiras subsequentes. E com que rigor cumpríamos o jejum desde a meia-noite anterior… Que saudades das tardes em que nos íamos confessar. Eram momentos de partilha em que nós, antes de ajoelharmos aos pés do sacerdote, confessávamos uns aos outros os pecados que íamos dizer, e assim facilitávamos a vida aos que tinham mais dificuldades em fazer o "seu exame de consciência: desobediências aos pais, brincadeiras durante a missa, distracção nas rezas, uns palavrõezitos... e pouco mais...

* O Culto em PortugalDe Macau, onde em 1709 fora erecta uma Confraria do Coração de Jesus, chegou, em 1728, ao Convento de S. Jerónimo, em Viana do Alentejo, uma carta em que se exaltava as vantagens espirituais da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Em 1731, foi entronizada festivamente no mosteiro de Xabregas uma imagem do Coração de Jesus e implantada a primeira irmandade de Portugal. A partir de 1761, ano em que D. Maria I confiou ao Coração de Jesus o futuro da sua dinastia, passaram a promover-se todos os anos, “importantes festejos” nos Paços Reais da Bemposta, na primeira 6ª feira após o Corpo de Deus,

Ovar terá sido, se não a primeira, pelo menos uma das primeiras paróquias portuguesas a aderir ao novo culto público ao Divino Coração. Fê-lo, em 5/12/1755, no pontificado de Bento XIV, um mês após o terramoto de Lisboa, através da criação da Irmandade do Santíssimo Coração de Jesus, inspirada na mensagem de Paray-le-Monial. Com sede na Capela de Nª. Sra. da Graça, os seus estatutos foram confirmados no Porto, em 21/04/1756, por D. João da Silva Ferreira