Dr. Madureira – Sábio e Pedagogo
Tenho na parede da sala uma cerâmica que, por estranha associação, me faz recordar o Dr. Madureira. Estranha porque resulta apenas do primeiro nome do seu criador: Nadir Afonso – o pintor em cujas obras “há uma dança de cores, traços e formas, uma dinâmica óptica que conduz o olhar” (Sérgio Gomes da Costa, in “TimeOut – Porto”). É que a primeira vez que ouvi falar nesta palavra foi pela boca do Dr. Madureira: “nadir” = “ponto da esfera celeste oposto ao zénite, que se situa na vertical do observador, directamente sob os seus pés.” Isto aconteceu numa cadeira de “Ciências ”, do 3º ano de Filosofia, no Seminário da Sé.
Ainda aluno do Seminário de Vilar, já meu primo Manuel Joaquim me falava com admiração dos textos do Dr. Madureira de que lembro “Entre colunas partidas…”. Escrevera-o quando estudava em Roma. À maneira dos diálogos platónicos, o autor, sentado entre as colunas partidas - daí o seu título - do Fórum Romano, conversa com um interlocutor imaginário sobre a vida e as interrogações do espírito. Assim, desde cedo, me habituei a admirar um professor que era um expoente da cultura filosófica e teológica da Igreja do Porto.
As aulas de Ciências foram o meu primeiro contacto com este Mestre que deixou em mim uma estima que, ainda, perdura. Deliciava-me a ouvi-lo dissertar, com grande sabedoria, sobre temas que, hoje, são objecto da “astrofísica”.
Voltei a encontrá-lo como aluno, no quarto ano de Teologia, mas aqui, continuando a ter profunda admiração pelo Professor, não me apaixonei tanto pela matéria leccionada. Estávamos em tempo de Vaticano II. Os tradicionais compêndios de teologia deixaram de entusiasmar. Atraíam-nos as novas correntes teológicas e os seus arautos como Rahner, Metz, H. Kung, Congar, Chenu, De Lubac, Ratzinguer, Schillibeeks.
A este propósito, não posso deixar de fazer um breve parêntesis para exorcizar uma memória que me magoa sempre que a evoco. Eu conto.
Em 1963, sob o pretexto da inauguração da Ponte da Arrábida, em 22 de Junho e do centenário do Seminário, liderei um movimento para obtermos de D. Florentino, a dispensa de exame a uma disciplina. Depois de muita pressão, acabou por ceder. A autorização foi-nos concedida no final da inauguração da Ponte da Arrábida. A notícia foi recebida com grande entusiasmo por todos os alunos que se reuniram por anos, para, por votação, decidirem a disciplina a dispensar. No meu ano, a escolhida foi a “Sacramental” cujo professor era o Dr. Madureira. A discussão e votação foram muito renhidas. Não queríamos magoar um professor a quem tanto queríamos e que muito admirávamos, mas a disciplina era aquela que nos obrigava a um maior investimento da memória. A “lei do menor esforço” acabou por vencer. Não sei se o Dr. Madureira ficou magoado. Continuou a falar-me com aquela finura de trato que todos lhes conhecíamos. Eu é que nunca mais ousei olhá-lo nos olhos. Aqui fica a minha confissão. Precisava desta catarse.
Posteriormente, por motivos académicos, revisitei dois dos seus textos - o Prefácio (P) à tese de doutoramento do Dr. Ângelo Alves, “O Sistema Filosófico de Leonardo Coimbra”, escrito em Setembro de 1961; a Oração de Sapiência (OS) ” Do Difícil Problema da Tolerância”, pronunciada no Seminário Maior do Porto em Outubro de 1955 - que passarei a citar por (P) e (OS)
O Dr. Madureira foi um sábio…
… À maneira de Sócrates que pagou com a vida a busca da verdade e a coerência no agir. “A perfeita sinceridade é como que um oitavo sacramento”(P). “Procurar sinceramente uma melhor interpretação da vida ou tentar encontrar uma nova, quando as conhecidas não satisfazem, só diz bem a favor de um homem”(P). Por detrás de uma figura frágil, escondia-se um carácter forte que não recuou perante os riscos que correu ao buscar “uma melhor interpretação para a vida”.
… À maneira de Aristóteles que afirmou “ sou amigo de Platão mas ainda o sou mais da verdade”. Também ele, apesar do seu amor à Igreja, não se escusou a denunciar: “Por falta desta compreensão e tolerância prática, um cardeal espanhol foi recentemente sujeito pelo Vaticano a uma invulgar humilhação.” (OS)
…À maneira de Descartes, na valorização da razão e na clareza do pensamento. Não foi sem motivo que um seu aluno conjugou, com humor, a serenidade do seu caminhar e a clarividência das suas ideias: “Não agitar: contém ideias claras e distintas”.
… À maneira dos pioneiros da Modernidade, num saber plurifacetado ao serviço de um humanismo mais pleno. “Salvos os dogmas divinos – onde os houver - devemos fomentar aquilo que modernamente se chama “a emergência da personalidade” (P)
O Dr. Madureira foi um precursor de tempos novos.
Na sua “Oração de Sapiência”, de 1955, perpassa já o espírito que irá animar o Vaticano II. Foi um pioneiro da teologia da encarnação que, sem deixar o céu dos grandes princípios, mergulha na leitura evangélica das realidades terrenas e procura, como “janela do infinito”, desvendar o divino no humano.
Teve a clarividência e a força de um profeta no anúncio, na denúncia, no prenúncio e na coragem.
- Num país que negava as liberdades públicas - estávamos em 1955 - anunciou: “A liberdade de expressão é uma expressão da liberdade, desse dom divino concedido a todo o homem”(OS).
- Num Estado monolítico, onde os opositores eram perseguidos, denunciou: “ Politicamente, as nações nórdicas da Europa e da América conseguiram uma estabilidade que falta aos povos latinos precisamente porque compreenderam a necessidade vital da oposição. A oposição, mais que tolerada, é bem aceite.”(OS).
- Num Estado ditatorial cujo termo não se vislumbrava, prenunciou: ”As ditaduras vão baqueando umas após outras, deixando atrás de si montanhas de escombros”(OS).
- Num país onde a Censura e a PIDE controlavam ferozmente os meios de comunicação, não temeu citar Pio XII: “Abafar a (opinião) dos cidadãos, reduzi-la ao silêncio forçado, é, aos olhos de todos os cristãos, um atentado ao direito natural do homem, uma violação da ordem do mundo, como Deus estabeleceu”(OS). E teve a coragem de se assumir como arauto da liberdade de imprensa: “À falta de outra voz melhor, levanta-se aqui esta pobre e apagada que estão a escutar.” (OS)
O Dr. Madureira foi, sobretudo, um pedagogo que ajudou a formar sucessivas gerações de alunos, como confessava meu primo, Manuel Joaquim Alves de Oliveira, em Março deste ano:
“Penso que essa nossa geração do Porto que seguiu o D. António, foi no fundo preparada e alimentada pelo ensino cristalino do Dr. Madureira. Não era um homem de teorias abstractas, mas sim de alguns princípios basilares: a Fé na Boa Nova revelada, a busca contínua da razão de ser das coisas, o respeito pela pessoa e pelas ideias dos outros, o direito à liberdade. Foi isso que ele nos ensinou tanto no que dizia, como também (e talvez ainda mais) no que deixava sem dizer...”
Gostaria de retribuir ao Dr. Madureira o elogio que ele dedicou ao seu professor Cónego Correia Pinto, em 1952:
“Dificilmente o esquecerão aqueles que, um dia, pertenceram ao número dos seus discípulos. Ao fim do ano, todos levavam um pedaço da sua alma” (Voz do Pastor, 30/08/1952).
Ainda aluno do Seminário de Vilar, já meu primo Manuel Joaquim me falava com admiração dos textos do Dr. Madureira de que lembro “Entre colunas partidas…”. Escrevera-o quando estudava em Roma. À maneira dos diálogos platónicos, o autor, sentado entre as colunas partidas - daí o seu título - do Fórum Romano, conversa com um interlocutor imaginário sobre a vida e as interrogações do espírito. Assim, desde cedo, me habituei a admirar um professor que era um expoente da cultura filosófica e teológica da Igreja do Porto.
As aulas de Ciências foram o meu primeiro contacto com este Mestre que deixou em mim uma estima que, ainda, perdura. Deliciava-me a ouvi-lo dissertar, com grande sabedoria, sobre temas que, hoje, são objecto da “astrofísica”.
Voltei a encontrá-lo como aluno, no quarto ano de Teologia, mas aqui, continuando a ter profunda admiração pelo Professor, não me apaixonei tanto pela matéria leccionada. Estávamos em tempo de Vaticano II. Os tradicionais compêndios de teologia deixaram de entusiasmar. Atraíam-nos as novas correntes teológicas e os seus arautos como Rahner, Metz, H. Kung, Congar, Chenu, De Lubac, Ratzinguer, Schillibeeks.
A este propósito, não posso deixar de fazer um breve parêntesis para exorcizar uma memória que me magoa sempre que a evoco. Eu conto.
Em 1963, sob o pretexto da inauguração da Ponte da Arrábida, em 22 de Junho e do centenário do Seminário, liderei um movimento para obtermos de D. Florentino, a dispensa de exame a uma disciplina. Depois de muita pressão, acabou por ceder. A autorização foi-nos concedida no final da inauguração da Ponte da Arrábida. A notícia foi recebida com grande entusiasmo por todos os alunos que se reuniram por anos, para, por votação, decidirem a disciplina a dispensar. No meu ano, a escolhida foi a “Sacramental” cujo professor era o Dr. Madureira. A discussão e votação foram muito renhidas. Não queríamos magoar um professor a quem tanto queríamos e que muito admirávamos, mas a disciplina era aquela que nos obrigava a um maior investimento da memória. A “lei do menor esforço” acabou por vencer. Não sei se o Dr. Madureira ficou magoado. Continuou a falar-me com aquela finura de trato que todos lhes conhecíamos. Eu é que nunca mais ousei olhá-lo nos olhos. Aqui fica a minha confissão. Precisava desta catarse.
Posteriormente, por motivos académicos, revisitei dois dos seus textos - o Prefácio (P) à tese de doutoramento do Dr. Ângelo Alves, “O Sistema Filosófico de Leonardo Coimbra”, escrito em Setembro de 1961; a Oração de Sapiência (OS) ” Do Difícil Problema da Tolerância”, pronunciada no Seminário Maior do Porto em Outubro de 1955 - que passarei a citar por (P) e (OS)
O Dr. Madureira foi um sábio…
… À maneira de Sócrates que pagou com a vida a busca da verdade e a coerência no agir. “A perfeita sinceridade é como que um oitavo sacramento”(P). “Procurar sinceramente uma melhor interpretação da vida ou tentar encontrar uma nova, quando as conhecidas não satisfazem, só diz bem a favor de um homem”(P). Por detrás de uma figura frágil, escondia-se um carácter forte que não recuou perante os riscos que correu ao buscar “uma melhor interpretação para a vida”.
… À maneira de Aristóteles que afirmou “ sou amigo de Platão mas ainda o sou mais da verdade”. Também ele, apesar do seu amor à Igreja, não se escusou a denunciar: “Por falta desta compreensão e tolerância prática, um cardeal espanhol foi recentemente sujeito pelo Vaticano a uma invulgar humilhação.” (OS)
…À maneira de Descartes, na valorização da razão e na clareza do pensamento. Não foi sem motivo que um seu aluno conjugou, com humor, a serenidade do seu caminhar e a clarividência das suas ideias: “Não agitar: contém ideias claras e distintas”.
… À maneira dos pioneiros da Modernidade, num saber plurifacetado ao serviço de um humanismo mais pleno. “Salvos os dogmas divinos – onde os houver - devemos fomentar aquilo que modernamente se chama “a emergência da personalidade” (P)
O Dr. Madureira foi um precursor de tempos novos.
Na sua “Oração de Sapiência”, de 1955, perpassa já o espírito que irá animar o Vaticano II. Foi um pioneiro da teologia da encarnação que, sem deixar o céu dos grandes princípios, mergulha na leitura evangélica das realidades terrenas e procura, como “janela do infinito”, desvendar o divino no humano.
Teve a clarividência e a força de um profeta no anúncio, na denúncia, no prenúncio e na coragem.
- Num país que negava as liberdades públicas - estávamos em 1955 - anunciou: “A liberdade de expressão é uma expressão da liberdade, desse dom divino concedido a todo o homem”(OS).
- Num Estado monolítico, onde os opositores eram perseguidos, denunciou: “ Politicamente, as nações nórdicas da Europa e da América conseguiram uma estabilidade que falta aos povos latinos precisamente porque compreenderam a necessidade vital da oposição. A oposição, mais que tolerada, é bem aceite.”(OS).
- Num Estado ditatorial cujo termo não se vislumbrava, prenunciou: ”As ditaduras vão baqueando umas após outras, deixando atrás de si montanhas de escombros”(OS).
- Num país onde a Censura e a PIDE controlavam ferozmente os meios de comunicação, não temeu citar Pio XII: “Abafar a (opinião) dos cidadãos, reduzi-la ao silêncio forçado, é, aos olhos de todos os cristãos, um atentado ao direito natural do homem, uma violação da ordem do mundo, como Deus estabeleceu”(OS). E teve a coragem de se assumir como arauto da liberdade de imprensa: “À falta de outra voz melhor, levanta-se aqui esta pobre e apagada que estão a escutar.” (OS)
O Dr. Madureira foi, sobretudo, um pedagogo que ajudou a formar sucessivas gerações de alunos, como confessava meu primo, Manuel Joaquim Alves de Oliveira, em Março deste ano:
“Penso que essa nossa geração do Porto que seguiu o D. António, foi no fundo preparada e alimentada pelo ensino cristalino do Dr. Madureira. Não era um homem de teorias abstractas, mas sim de alguns princípios basilares: a Fé na Boa Nova revelada, a busca contínua da razão de ser das coisas, o respeito pela pessoa e pelas ideias dos outros, o direito à liberdade. Foi isso que ele nos ensinou tanto no que dizia, como também (e talvez ainda mais) no que deixava sem dizer...”
Gostaria de retribuir ao Dr. Madureira o elogio que ele dedicou ao seu professor Cónego Correia Pinto, em 1952:
“Dificilmente o esquecerão aqueles que, um dia, pertenceram ao número dos seus discípulos. Ao fim do ano, todos levavam um pedaço da sua alma” (Voz do Pastor, 30/08/1952).
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home