O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, maio 25, 2010

Quando os sinos dobram

Foi no dia 22 de Maio. Eram três da tarde quando os sinos dobraram a finados na igreja de Chave e nublaram o paraíso do vale do Arda.
Pelas três e trinta, já na igreja, ao ouvir o Coro Gregoriano do Porto cantar o “Requiem eaternam”, lembrei-me do discurso que o Ferreira de Brito pronunciara nas “bodas de ouro” da nossa entrada no Colégio de Ermesinde em 1951. “Vínhamos dos quatro cantos da Diocese. Com um magro enxoval e um número gravado a vermelho em cada peça. Cabia tudo num baú de madeira de pinho ou numa mala mais vistosa. Todos trajando de negro, em geral com botas de pneu multiuso ensebadas para aguentarem longas temporadas. Um traço de ingénua ruralidade enformava a quase totalidade dos nossos rostos e das nossas atitudes. (…) Éramos 91 rapazolas movidos por uma vontade inicial ou iniciática de um projecto de vida
Eu era um desses “meninos” que cedo deixaram o aconchego da casa materna para ingressar numa família mais alargada que iria pontuar-lhes todo o futuro. O Padre Agostinho Freitas, pároco de Sobrado, Valongo, falou-me carinhosamente de “um rapazinho muito esperto, filho de uma família muito honrada” de Chave, Arouca onde havia paroquiado, que iria ser meu colega no seminário: chamava-se Manuel Correia Fernandes. Esse menino cresceu e ordenou-se presbítero. Agora, estava no altar, a presidir às exéquias de seu pai, Albino Fernandes. Com olhos embaciados de saudade, recordei todos os nossos pais/mães que já partiram para a Eternidade. O senhor Albino, nascido em 17 de Setembro de 1913, foi o último. Já mais nenhum está entre nós, embora todos permaneçam no nosso coração.
E as memórias vieram em cortejo: na frente, os pais, depois os condiscípulos e professores já falecidos
O Pe. Manuel, com lágrimas na voz, começou a sua homilia recordando as palavras de um condiscípulo que bem cedo nos deixou:
Estes homens do campo (…) tiveram uma alma de poeta para apreciar a beleza rústica de uma flor campestre e tirar o chapéu pelo cair das trindades.
Como foram dignos ao comer o seu pão, tantas vezes amargo na incompreensão injusta da sociedade, na falta de carinho de tantos que tratam o homem do campo como cidadão de segunda
.”
Nesta alusão à dignidade e à “miséria imerecida do trabalhador rural”,como dizia D. António Ferreira Gomes, vi uma homenagem não só ao seu mas a todos os nossos pais que, na sua quase totalidade, foram “ homens do campo cujo coração está pertinho do Criador, Senhor que fez as coisas mas precisou do homem para renovar a face da terra”.
Se, para iniciar, escolheu palavras de um condiscípulo, para terminar evocou o pensamento do nosso distinto professor, arouquense como ele, D. Domingos de Pinho Brandão, no funeral de sua mãe: “Estamos aqui para sufragar ou para glorificar? - Para glorificar.”
Sim, nesta celebração, glorificámos todos os nossos pais que, como o senhor Albino, puderam dizer com S. Paulo “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé. Só me resta a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me entregara naquele dia”.
No final da celebração, o Coro Gregoriano cantou “In Paradisum” e pareceu-me que os sinos já não dobravam a finados mas repicavam aleluias de ressurreição.
“Bem-aventurados os simples de coração porque verão a Deus”.