"A INSEPULTA NOSTALGIA DE DEUS"
Dois meses são passados …
“Foi numa conversa pessoal, entre amigos e de coração descalço, que Eduardo Lourenço tropeçou na palavra ‘Jesus’. Quem o revela é esse outro explorador e cartógrafo do espírito, digno herdeiro daquele decifrador de signos, a quem Portugal deve também maior entendimento de si. Tolentino Mendonça, na sua homilia no funeral do professor, revelou a ‘única vez’ que viu Eduardo Lourenço chorar: Ele tropeçou, como o Apóstolo Paulo terá tropeçado, na palavra ‘Jesus’. E os seus olhos encheram-se de água e a sua voz de silêncio, de lentidão e de soluços. Passou muito tempo para que me dissesse, chorando: ‘não há nada superior a Jesus. Já se imaginou um Deus que diz: «Bem-aventurados os pobres, os humildes, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que constroem a paz»? Não há nada superior a isto’.
São palavras maravilhosas e comoventes do nosso grande filósofo e ensaísta (1923-2020) que se sentia católico, mas também – confessou-o – um místico sem fé”.
Este início do artigo Tropeçar com Eduardo Lourenço na palavra ‘Jesus’ (Mário Rui de Oliveira, in 7Margens, 13/12/2020), levou-me a reler essa homilia. E fi-lo em estado de contemplação. Face à sublimidade das palavras e das ideias, só me resta, no silêncio, fazer eco de algumas perícopes, como incentivo à sua leitura integral. Vale a pena.
“Há lutos que se vivem no domínio pessoal, pois dizem respeito à nossa pequena história. E há lutos que excedem esse domínio, pois se configuram como uma experiência de perda coletiva.
Teixeira de Pascoaes, que escreveu Arte de Ser Português, quis ser enterrado num caixão em forma de lira. O caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal, do qual ele foi (e será para muitas gerações futuras) um explorador e um cartógrafo, um detetive e um psicanalista do destino, um sismógrafo e um decifrador de signos, uma antena crítica e um instigador generoso e iluminado. Depois dele, todos podemos dizer que nos entendemos melhor a nós próprios.
A história do livro é, antes de tudo, a história do desejo humano de permanecer, de vencer a morte, de experimentar sobre a terra algo mais do que uma precária verdade destinada ao esquecimento. Voltamos sempre à mesma sede de transcendência, à mesma desabalada paixão de eternidade, ao mesmo dramático grito para que a existência humana não se consume como mera passagem. Tornamos sempre, para recorrer a uma expressão de Lourenço, à ‘insepulta nostalgia de Deus.
Nostalgia de Deus que era também a dele. Um dia na televisão alguém o interrogou: ‘Professor, o que pensa de Deus?’. E a resposta dele abriu um alçapão, trazendo à superfície aquele arrepio sideral do infinito de que falava Pascal. ‘Sabe – respondeu ele calmamente –, mais importante do que dizer o que penso de Deus é saber o que Deus pensa de mim’.
Agradeçamos ao Deus das Bem-Aventuranças as palavras que Eduardo Lourenço nos iluminou sorrindo e aquelas para cujo sentido ele nos abriu chorando.” (10/2/2021)
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home