O Tanoeiro da Ribeira

domingo, outubro 23, 2016

"SOU UMA ENCRUZILHADA"



1957. Para recitar na aula de “declamação”, escolhi o poema que Miguel Torga havia escrito à morte da mãe (1/6/1948): “Mãe:/Abre os olhos ao menos, diz que sim! /Diz que me vês ainda, que me queres. /Que és a eterna mulher entre as mulheres. /Que nem a morte te afastou de mim!”.

Não sei o que me teria levado a escolher “o mais dramático e comovente dos poemas dedicados à mãe”, no dizer de M. Hercília Agarez. A ternura pela Mãe – “És e serás sempre a faia que balança ao vento”; o apego à terra - “O destino exagerou comigo. Baralhou-me a condição. Plantou-me aqui e arrancou-me daqui. E nunca mais as raízes me seguraram bem em nenhuma terra”; a nostalgia da infância - ”As impressões infantis guardam toda a pureza dum amanhecer sem ocaso; A minha fidelidade à infância que não tive é que me ajuda a suportar esta concreta existência adulta”, desde cedo me atraíram. Por isso, já participei em duas visitas ao “Espaço Miguel Torga” que me encantou pela riqueza do espólio. Mas o que mais me deixou a pensar foi uma frase que lhe ouvi num vídeo: “ Sou uma encruzilhada de caminhos sem saída”. “Encruzilhada”, todos somos. Mas “de caminhos sem saída” é que não. Muito me custou ver este transmontano de gema e paladino da liberdade escrever ao chegar o fim da vida: “Aproxima-se o fim./E tenho pena de acabar assim,/Em vez de natureza consumada,/Ruina humana. Inválido de corpo/E tolhido da alma”.

Interroguei-me. A resposta encontrei-a na “recusa do divino”. A sua vida joga-se, numa dialética sem síntese, entre o menino religioso da “Agarez” iletrada que discursou na comunhão, foi vestido de S. José na procissão, acolitava nas missas, frequentou o seminário de Lamego, e o intelectual agnóstico de Coimbra, a sua “Agarez alfabeta”. – “Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda esticada entre dois mundos.” Daí confessar: “A minha vida é um extenso rol de perplexidades”; e dizer “É contra mim que luto.”

Este conflito, mais notório perante a morte –“a morte é um escândalo sem remissão”- atinge o auge no falecimento de sua irmã (3/4/1983): “Oxalá que no outro mundo ela tenha a visão gloriosa da ressurreição em que acreditava. Eu por cá fico ainda neste desespero agnóstico, que a sua partida tornou mais cruciante.”

Quanta amargura! Que pena! E, afinal, há outros caminhos, como o de Mário Cláudio, escritor homenageado este ano na Feira do Livro do Porto: “Tenho a certeza de que a morte não é um fim. (JN,13/9/2016) ”. O papa Francisco em A Alegria do Amor, nº 256, afirma “A fé assegura-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte «envenene a nossa vida, torne vão os nossos afetos e nos faça cair no vazio mais escuro.”

(6-11-2016)