"SOU UMA ENCRUZILHADA"
1957. Para recitar na aula de “declamação”, escolhi
o poema que Miguel Torga havia escrito à morte da mãe (1/6/1948): “Mãe:/Abre os olhos ao menos, diz que
sim! /Diz que me vês ainda, que me queres. /Que és a eterna mulher entre as
mulheres. /Que nem a morte te afastou de mim!”.
Não sei o que me teria
levado a escolher “o mais dramático e comovente dos poemas dedicados à mãe”, no
dizer de M. Hercília Agarez. A ternura pela Mãe – “És e serás sempre
a faia que balança ao vento”; o apego à terra - “O destino exagerou
comigo. Baralhou-me a condição. Plantou-me aqui e arrancou-me daqui. E nunca
mais as raízes me seguraram bem em nenhuma terra”; a nostalgia da infância
- ”As impressões infantis guardam toda a pureza dum amanhecer sem ocaso; A
minha fidelidade à infância que não tive é que me ajuda a suportar esta
concreta existência adulta”, desde cedo me atraíram. Por isso, já
participei em duas visitas ao “Espaço Miguel Torga” que me encantou pela
riqueza do espólio. Mas o que mais me deixou a pensar foi uma frase que lhe
ouvi num vídeo: “ Sou uma
encruzilhada de caminhos sem saída”. “Encruzilhada”, todos somos. Mas “de
caminhos sem saída” é que não. Muito me custou ver este transmontano de gema e
paladino da liberdade escrever ao chegar o fim da vida: “Aproxima-se
o fim./E tenho pena de acabar assim,/Em vez de natureza consumada,/Ruina humana.
Inválido de corpo/E tolhido da alma”.
Interroguei-me. A resposta encontrei-a na “recusa do
divino”. A sua vida joga-se, numa dialética sem síntese, entre o menino
religioso da “Agarez” iletrada que discursou
na comunhão, foi vestido de S. José na procissão, acolitava nas missas,
frequentou o seminário de Lamego, e o intelectual agnóstico de Coimbra, a sua “Agarez
alfabeta”. – “Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou
obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda esticada entre dois
mundos.” Daí confessar: “A minha vida é um extenso rol de perplexidades”;
e dizer “É
contra mim que luto.”
Este conflito, mais notório
perante a morte –“a morte é um escândalo sem remissão”- atinge o auge no
falecimento de sua irmã (3/4/1983): “Oxalá que no outro mundo ela tenha a
visão gloriosa da ressurreição em que acreditava. Eu por cá fico ainda neste
desespero agnóstico, que a sua partida tornou mais cruciante.”
Quanta amargura! Que pena!
E, afinal, há outros caminhos, como o de Mário Cláudio, escritor homenageado
este ano na Feira do Livro do Porto: “Tenho a certeza de que a morte não é um
fim. (JN,13/9/2016) ”. O papa Francisco em A Alegria do Amor, nº 256,
afirma “A fé assegura-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos,
assim, impedir que a morte «envenene a nossa vida, torne vão os nossos afetos e
nos faça cair no vazio mais escuro.”
(6-11-2016)
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