Olhar o Passado - Memórias
Quando
a “minha Fatinha”, me convidou para dizer umas palavras na apresentação
deste livro, logo me preveniu: vais conhecer duas amigas que, apesar
de um longo convívio, ainda não conheces”.
Cedo
me apercebi de que estava perante uma obra de linguagem fluente mas
de estrutura polifacetada. Livro de Memórias? Biografia?
Autobiografia? História? Crónica? Sociologia? Teoria Política? ,
Conto? Teatro? Poesia? Nada disto exclusivamente mas tudo isto de
modo inclusivo e complementar. Por isso, mais do que a análise de
uma narrativa onde os géneros literários se entrelaçam, gostaria
de partilhar convosco as imagens que me foram surgindo no decurso da
sua leitura. No início, senti-me no átrio de um templo, não feito
de pedras, mas o santuário de uma família que se desdobra em várias
gerações, e acima de tudo na intimidade de alguém onde a finitude
se conjuga com a infinitude: o infinito do sonho encarnado nas
limitações do humano. E, logo aí fiz silêncio e, à semelhança
do que fiz na Mesquita Al-Aqsa, apeteceu-me descalçar os sapatos
para pisar chão sagrado.
Ao
percorrer esse templo humano, a intimidade de uma amiga foi-se
revelando em confidências que aumentavam a cada momento. Em primeiro
lugar foi a Mulher “Nascida
numa época de muito pouca tolerância de costumes, educada por uma
mulher de fibra espartana e beata, ela teve de superar a educação
recebida, lutando por um lugar ao sol, numa época em que o sol não
nascia para todos…”
De seguida , foi a Mãe: “Todos
os filhos poderão dizer das suas mães aquilo que eu digo da minha.
Mas
perdoem-me os filhos de outras mães
a minha mãe era especial. (…)
Nada
e criada num ambiente pouco propício ao amor, tendo sofrido por
amor, ela não fechou o coração, antes se abriu a todos quantos
dela necessitassem:
(…) foi
a mãe e a “marinha”
de muitos afilhados (…) A tia – madrinha lhe chamavam os
sobrinhos (...)
e a tia-avó amorosa...”
Foi a vizinha de quem todas as crianças gostavam, pela paciência
devotada com que as acolhia. A todos integrava (...) Foi a
trabalhadora/obreira respeitadora e responsável, que ao trabalho se
dedicou com devotado amor… “Ela
foi a mulher-mãe, sempre grata para com aqueles que a ajudaram a
fazer da filha o que esta desejara. Criada
com pouco carinho, desdobrou-se num amor inesgotável. Sofreu
– muito – mas nunca permitiu que a amargura lhe avinagrasse o
coração”.
E à maneira do
templo de Jerusalém, quando penetrei no lugar mais secreto,
apeteceu-me ajoelhar. Na minha frente não se desdobravam as tábuas
da Lei mas sim uma carta. E meus olhos humedeceram-se de ternura e
pela mãe que teve a coragem da revelação e pela filha que ousou
partilhá-la com seus amigos.
“Foi
então que recordou um recado que a mãe lhe transmitira alguns anos
antes:
Depois de eu morrer, procura naquela
caixa, entre os vários papéis uma carta que te escrevi… Nela
encontrarás resposta a algumas dúvidas e perguntas que nunca
discutimos, por falta de coragem minha ou desinteresse teu. (…) Com
todo o cuidado, com algum pudor, F. começou a vasculhar, as memórias
que para ela tinham sido preservadas. (…) e finalmente um
sobrescrito que ostentava o seu nome: PARA
A MINHA FILHA F.
Com
as mãos trémulas, pegou-lhe religiosamente, abriu-o e leu:
28
de Setembro
de 1997
Minha
querida filha:
Quero
agradecer -
te todo o amor com que retribuíste o
grande amor que te dediquei. “
E
por aqui me fico... Quem quiser partilhar desta confidência, siga
o caminho que eu percorri.
Se
a primeira imagem foi a de um templo, já a segunda, foi a de um
teatro contemporâneo onde os espetadores são convidados a seguir os
atores através de diferentes locais.
Num amplo pórtico, a narradora começa
por apresentar-nos as coordenadas espaço-temporais da ação: “
Lugar?
Centrada primordialmente em Portugal, esta narrativa desenrola-se
entre a pequena aldeia de Terronhas, o antigo Chão de Terronhas, e
as cidades do Porto e Rio Tinto. Tempo(s)? Duas destas “mães”
nasceram durante o século XIX, em plena Monarquia, ainda que já em
crise (1856 e 1881, respetivamente). Outras duas nasceram no século
XX: uma – aquela que ouso identificar como a heroína desta estória
nasceu no primeiro quartel do século, numa República cheia de
contradições (…) ; outra, a sua filha, nasceu em Ditadura
“
De seguida, uma
porta com a inscrição “Vidas Sofridas” abre-se para um novo
cenário: Terronhas, torrão natal da nossa heroína. Este lugar da
freguesia de Recarei situa-se num pequeno planalto entres os vales
dos rios Ferreira e Sousa, nos limites do concelho de Paredes com o
de Valongo. Terra seca, famosa pelos melões de casca de carvalho, e
não tanto pelos cereais, era pertença de três ou quatro famílias
de lavradores abastados, sendo o resto da população constituída
por pequenos agricultores ou simples caseiros que cultivavam jeiras
bem exíguas numa agricultura de subsistência. Numa destas famílias
pobres, onde “gerações de mulheres suportaram/sustentaram as
respetivas famílias, na ausência dos companheiros – um
desaparecido no Brasil, sem mais dar ou pedir notícias dos seus,
outro morto prematuramente em França e ainda um terceiro,
que não soube honrar compromissos, fugindo às responsabilidades
familiares”, nasce uma menina a que foi dado o nome de
Deolinda, uma das poucas meninas da aldeia a
completar o ensino primário. E com que sacrifício o fez!... “Manhã
cedo, antes de fazer a custosa caminhada que a levaria à escola, a
nossa Linda estava encarregada de acender o lume – a velha lareira
onde se perfilavam as panelas de três pernas – e de carregar para
casa a lenha e o erguiço que
a mãe tinha ido apanhar ao monte… (...)
Das tarefas que lhe cabia realizar,
fazia parte o levar as ovelhas e cabras ao pasto.”
Eu
nasci perto de Terronhas. Por isso, a vivacidade com que a narradora
conta a vida dessa aldeia fez-me lembrar medos de infância povoada
de bruxas e diabos, tempos de miséria da meia-sardinha, de mulheres
carregadas de filhos, da “doença do pó” que vitimava os
mineiros das pedreiras de ardósia em S. Martinho, do puritanismo
conservador duma religião marcada pelo maniqueísmo e pelo
jansenismo que se aproximava mais do Livro de S. Cipriano que do
Evangelho, e, com nostalgia, o sino da capela de Terronhas a recordar
tempos da minha meninice quando levava os bois e vacas a pastar nas
bouças próximas de Terronhas. Esta proximidade fez com que muitas
vezes, falássemos da nossa infância, a minha bem menos dura que a
dela...
A
ação em Terronhas termina aqui porque, como diz na página 69:
“Única filha de uma mãe aldeã, viúva e beata, desde os seus
onze anos que Linda vivia na grande cidade.” Como o pequeno pastor,
da página 273, também ela acreditava que Amanhã
nascerá novo dia.
Agora é a cidade do Porto que se abre à nossa frente. Um cenário
de tempo longo e de muitos espaços. Uma “Via -sacra” de casas.
Na padieira da porta está escrito: “Em
busca do pão” . À nossa frente alonga-se um
verdadeiro campo de batalha onde uma mulher, numa guerra de vai-vém
irá lutar ao longo de muitos anos com triunfos e derrotas, avanços
e recuos, alegrias e tristezas, sorrisos e lágrimas, vida e morte, e
muita violência... Mas sob o lema “Lutar, lutar”, tudo a nossa
heroína supera, sempre de sorriso franco e de coração aberto.
Nesse cenário de batalha, chama-me a atenção uma tenda de campanha
onde decorre um “efémero romance”. Como se trata duma incursão
na intimidade pessoal, limito-me a indicar aos futuros leitores o
letreiro que interroga : “Quanto vale uma utopia?”
Ao
chegar ao fim desse cenário de sofrimento, apetece-me dizer: que
grande mulher e que grande mãe!! Como se já não lhe bastassem as
preocupações com o trabalho e a criação da filha,razão
de ser de toda a sua vida, ainda sofreu a violência de quem lhe
deveria dar apoio. Valeu-lhe a filha, companheira de toda a hora e
cúmplice em todas as batalhas numa relação nem sempre isenta de
sofrimento. E os amigos, os muitos amigos que foi granjeando com a
sua simpatia e afabilidade. É bem verdade que quem dá sempre recebe
e quem semeia sempre colhe...
“Como
as histórias se cruzam num plano infinito em que tudo se
encaixa!...” diz na página 182. Esta afirmação fez-me lembrar
François Mauriac, laureado
com o prêmio Nobel
de Literatura de
1952
que, em 1951, disse: “Sinto que estou a envelhecer como um carneiro
que vai perdendo lã nas sarças dos caminhos; mas sei que a vida tem
sentido; nada fica sem recompensa, nem uma lágrima, nem uma gota de
sangue...”
A
narrativa termina com “O Epílogo - Folhas soltas arrancadas a um
diário” que me suscitou a imagem de um caminho que se alonga pela
montanha, debruado a luz e sombras, com paragens a olhar o caminho
percorrido e a repousar para novas metas, com revoltas e cansaços,
com a nostalgia dos vales e a miragem de novos horizontes, com
desilusões e novas esperanças... Apenas alguns extratos desse
diário:
“Sombras
são o que me resta: só na minha memória poderei rever o teu
sorriso bem-disposto...”
“Sei
que a mãe não compreenderá a minha dor, satisfeita que está com a
forma como o assunto lhe parece resolvido a contento da maioria.”
“Saímos
para a noite de alma cheia, apesar de alguma desilusão que não
podíamos ocultar. “
“Mas
“A Luta Continua!” tem de
continuar, por que nada é adquirido, tudo tem de ser conquistado
palmo a palmo, centímetro a centímetro.”
“Saudade
é o termo!
Dizem
que é uma palavra tipicamente portuguesa, mas,
embora preservando as memórias – cada vez mais se torna necessário
não as deixar apagar nem branquear – devemos continuar a olhar em
frente, rumo ao futuro.”
“Não
deixei de viver e ter momentos felizes:
realizei-me como filha, como irmã, como educadora, como
gestora, como escritora, como viajante mas...
E
as incertezas voltam de novo ao de cima.”
“Afogar
a tristeza, ocultar a desilusão passou a ser uma diretiva que segui,
aparentemente com sucesso, como sucesso tive em outros campos da
vida. Mas ela, a mágoa, continuou a laborar em surdina –
fechando-me a outras experiências...
Chamam-me
dura, sem saber que debaixo da capa de rudeza está um coração que
sofreu.”
“Absorta,
só passado algum tempo me dei conta de uma visita inesperada: uma
borboleta, de asas acastanhadas, vinda sabe Deus de onde, pousou-me
no ombro e ali permaneceu por alguns segundos.”
E
vem-me a interrogação: Que seiva alimenta esta obra? Memória
agradecida? Catarse libertadora? Utopia vivenciada? Ou “O
aconchego das raízes”? E a resposta encontrei-a, em metáfora, no
que Luísa Dacosta (para ela a nossa homenagem) escreveu a respeito
da cidade do Porto: “Somos ânsia e memória – é o que em nós
fica e nos estremece. Memória somos, até de pedras. Memória de
cidades, perdidas, que nos habitam, como rostos. Esfumadas numa névoa
leitosa que os crepúsculos ou os néons tornam rosa e mel,
permanecem no perfil das suas torres, tocadas de luz ou no recorte
dos telhados, lavados pela chuva. Nos cunhais, ressumam as nossas
próprias dores que se perspetivam em linhas entrecruzadas a
perderem-se fundo, íntimas: a estrutura das janelas, cega pelo sal
das lágrimas.” (citada por Hélder Pacheco in JN, 28/2/2015)
O
livro termina com “Testemunhos /depoimentos” fazendo
lembrar o painel do Museu Cargaleiro em Castelo Branco com
pensamentos dos seus amigos e admiradores. Por isso, em honra de D.
Deolinda, aqui vos deixo o buquê que alindei com excertos dessas
memórias.
- “Forte, decidida, de antes quebrar que torcer.”
- Deste-me tudo o que pudeste E por ti sempre fui querido.
- Desdobrava-se em esforços para responder, adequadamente, às solicitações dos seus “meninos” e das suas “meninas” como, carinhosamente, chamava aos atletas do CDUP
- Contava-me a história da sua vida difícil, de “viúva de marido vivo” e com uma filha, extraordinária que era a sua companhia e amparo.(...) Tudo o que deixei escrito é pouco, sobre esta mulher, GRANDE MULHER E MÃE.
- Há mães universais, que estendem o seu manto a outros filhos...
- Da Senhora D. Deolinda tenho recordação da extrema delicadeza que usava no relacionamento com os utentes.(CDUP)
- Eu adorava ir para a casa da Bi e da Tá quando era miúda – havia sempre tanto que conversar e ver: lembro-me da Bi a fazer as meias e as camisolas quentinhas.
- Ser vizinha da D. Deolinda – Bi e da Tá, foi dar um nome completamente diferente a esse conceito – de vizinhas fomos amigas, amigas para toda uma vida, com um carinho e apoio que não se esquecem.
- Ora a minha tia Linda, com os seus cabelos brancos, a sua face alegre e a sua paciência, é a imagem mais próxima da avó que nunca tive.
- Mulher de fibra, determinada, sempre com resposta para tudo e ao mesmo tempo, meiga, delicada com toda a gente, brincalhona e muito vaidosa.
- Logo ali nos apresentamos e ficamos amigas, pois tinha um coração aberto e cheio de amor.
- Também eu a via como mãe não só pela ternura que me dedicava mas porque era a imagem de minha mãe. A mesma doçura nas palavras, a mesma meiguice no olhar. (…) Sempre disposta para uma piada, para uma maroteira.
- Quando penso em ti, as primeiras memórias que aparecem, fazem-me rir, muito, pois são as músicas marotas que costumavas cantar,
- Força na alma,/ Força no coração,/ Coração sempre aberto./Sempre a dar a mão.
- A Deolinda era uma mulher muito boa, generosa e sempre muito amiga do seu amigo.
- Era uma boa senhora que me tratava como família e até como confidente. Ela gostava muito de mim e eu também gostava muito dela.
- Senhora afável, meiga, sociável, conhecedora e de fortes convicções. Era assim a Lindinha... Honesta e Amiga, sempre pronta a ajudar...
- Falar da minha Madrinha “Linda”, é falar de uma grande Mulher de vida, sempre preocupada com o bem-estar da família, e de todos os que a rodeavam, mesmo em detrimento de si própria.
- Lia, conversava sobre qualquer assunto com todo o interesse, gostava de conviver, de receber e… de passear.
- D. Deolinda era uma Mulher com M maiúsculo: corajosa, inteligente, amiga, conselheira, trabalhadora, mãe amiga dedicada, atenta, afetuosa.
Na
página 66, a narradora fala da paixão de juventude da heroína
desta epopeia: “Seria evocando
estes encontros que anos mais tarde, muitos anos decorridos, ela
cantava alegremente em casa dos amigos da filha a canção:
“Manuel, cabelo loiro, penteado à peralta...”?
Que saudades! (…) Aquele Manuel era
mesmo aperaltado, ostentando orgulhosamente a posição
socioeconómica que detinha.”
No
final desta apresentação iremos evocar esse cântico. Mas isso fica
para mais tarde. Por agora, resta-me
dizer-vos obrigado pela atenção com que nos ouviram.
Como
se diz no Principezinho “Aqueles
que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um
pouco de si, levam um pouco de nós”.
Porque
os amigos nunca morrem no coração de quem os ama, convido-vos a
cantar connosco essa canção que tem a “marotice” do Minho de
que ela tanto gostava...
“Manuel,
cabelo loiro,
Penteado
à peralta
Eu
só queria a tua cara
Cabelo
loiro não falta
Vai
por i que eu por vou qui
Meu
raminho de alecrim
Eu
só queria saber
A
raiva que tens de mim
Hei-de
arranjar um namoro
Na
Senhora da Abadia
E
hei-de -lhe pôr os cornos
A
toda a hora do dia”
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