O Tanoeiro da Ribeira

segunda-feira, março 02, 2015

O Auto da Paixão em Vilar de Perdizes


Ao passar em Montalegre, no derradeiro sábado do ano, o P. Fontes disse-me que, após 17 anos, o povo de Vilar de Perdizes iria repor o Auto da Paixão na sexta feira santa, dia 3 de abril. A seu convite, fui assistir ao ensaio. O salão estava cheio de figurantes, familiares e vizinhos. Reconheci o Judas e o Acusador. Perguntei pelo diabo e disseram-me que não estava presente porque vive no Porto e, como já sabe o papel, só virá aos últimos ensaios. A Verónica também não estava. O Jesus e Nossa Senhora vão representar pela primeira vez e, por isso, embora com voz bem timbrada, ainda estavam muito preocupados em decorar o seu longo texto ( E quem já fez teatro sabe como é difícil representar um auto que, todo em verso, não permite improvisações...).
No final, o P. Fontes, com anuência do novo pároco, pediu-me para lhes dirigir uma palavra de incentivo. Então, virando-me para o cartaz “Congresso de Medicina Popular”, exposto na sala , disse: “contrariamente a muita gente, não foi o congresso que me trouxe a Vilar de Perdizes. Muito antes dele, já eu demandara estas terras barrosãs. O filme de Manuel de Oliveira, O Acto da Primavera, despertara-me a curiosidade. Quando soube que, em Vilar de Perdizes, se iria representar o Auto da Paixão, logo vim em sua demanda. Foi na década de setenta. Mais do que os congressos que puseram Vilar de Perdizes no mapa mas também atraíram alguns charlatães que lhes roubaram autenticidade, a representação do auto envolve toda a aldeia. Este sim é símbolo da vossa cultura. Havia sorrisos e gestos de concordância. Disseram-me, então, que só figurantes são setenta: crianças, jovens, adultos e idosos. E há que contar ainda com os que confecionam roupas e adereços, fazem e montam os cenários e preparam o muito mais que é necessário.
Após o ensaio e já em sua casa, ao calor da lareira e com a companhia do novo pároco, o P. Fontes mostrou-me o texto, numa edição feita no Porto no século XIX. Soube que a sua representação em Vilar de Perdizes já se faz há mais de cem anos. Trata-se do quinhentista Auto da Paixão de N.º Senhor Jesus Cristo”, escrito por Francisco Vaz de Guimarães.
Para aguçar a curiosidade, deixo apenas duas pequenas falas:
N.ª Senhora- Filho meu, e meu amor,/de temor estou cercada,/estou tão cheia de dor,/que não sei, Filho e Senhor,/como seja consolada.
Jesus -Antes de minha Paixão,/piedoso Senhor Padre,/peço-te do coração,/que hajas, Senhor, compaixão/de minha tão triste Madre./Também sejam amparados/meus Discípulos, Senhor,/porque andam derramados,/corridos e destroçados,/como gado sem pastor.
Amigo leitor, se puder, aproveite esta oportunidade. Poderá não haver outra... porque, como já avisava o P. Fontes no seu livro Etnografia Transmontana, é “um mundo a acabar”...
(25/2/2015)