O Auto da Paixão em Vilar de Perdizes
Ao passar em Montalegre, no derradeiro
sábado do ano, o P. Fontes disse-me que, após 17 anos, o povo de
Vilar de Perdizes iria repor o Auto da Paixão na sexta
feira santa, dia 3 de abril. A seu convite, fui
assistir ao ensaio. O salão estava cheio de figurantes, familiares e
vizinhos. Reconheci o Judas e o Acusador. Perguntei
pelo diabo e disseram-me que não estava presente porque vive
no Porto e, como já sabe o papel, só virá aos últimos ensaios. A
Verónica também não
estava. O Jesus e Nossa Senhora vão
representar pela primeira vez e, por isso, embora com voz bem
timbrada, ainda estavam muito preocupados em decorar o seu longo
texto ( E quem já fez teatro sabe como é difícil representar um
auto que, todo em verso, não permite improvisações...).
No final, o P. Fontes, com anuência do
novo pároco, pediu-me para lhes dirigir uma palavra de incentivo.
Então, virando-me para o cartaz “Congresso de Medicina Popular”,
exposto na sala , disse: “contrariamente a muita gente, não foi o
congresso que me trouxe a Vilar de Perdizes. Muito antes dele, já eu
demandara estas terras barrosãs. O filme de Manuel de Oliveira, O
Acto da Primavera,
despertara-me a
curiosidade. Quando soube que, em Vilar de Perdizes, se iria
representar o Auto da Paixão, logo vim em sua demanda. Foi na
década de setenta. Mais do que os congressos que puseram Vilar de
Perdizes no mapa mas também atraíram alguns charlatães que lhes
roubaram autenticidade, a representação do auto envolve toda a
aldeia. Este sim é símbolo da vossa cultura. Havia sorrisos e
gestos de concordância. Disseram-me, então, que só figurantes são
setenta: crianças, jovens, adultos e idosos. E há que contar ainda
com os que confecionam roupas e adereços, fazem e montam os
cenários e preparam o muito mais que é necessário.
Após o ensaio e já em sua casa, ao
calor da lareira e com a companhia do novo pároco, o P. Fontes
mostrou-me o texto, numa edição feita no Porto no século XIX.
Soube que a sua representação em Vilar de Perdizes já se faz há
mais de cem anos. Trata-se do quinhentista Auto da Paixão de N.º
Senhor Jesus Cristo”, escrito por Francisco Vaz de Guimarães.
Para aguçar a curiosidade, deixo
apenas duas pequenas falas:
N.ª
Senhora- Filho
meu, e meu amor,/de temor estou cercada,/estou tão cheia de dor,/que
não sei, Filho e Senhor,/como seja consolada.
Jesus -Antes de minha
Paixão,/piedoso Senhor Padre,/peço-te do coração,/que hajas,
Senhor, compaixão/de minha tão triste Madre./Também sejam
amparados/meus Discípulos, Senhor,/porque andam derramados,/corridos
e destroçados,/como gado sem pastor.
Amigo leitor, se puder, aproveite esta
oportunidade. Poderá não haver outra... porque, como já avisava o
P. Fontes no seu livro Etnografia Transmontana, é “um mundo
a acabar”...
(25/2/2015)
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