VIVÊNCIAS DE INFÂNCIA...
Associando-me às celebrações do centenário de José Saramago, faço-me eco das palavras iniciais do discurso que - fez ontem 23 anos - pronunciou ao receber o ‘Prémio Nobel da Literatura’.
- Contrastes: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.”
- Os seus trabalhos de infância: “Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado.”
- O avô – “E algumas vezes, em noites quentes de verão, depois da ceia, meu avô me disse: «José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira». Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa.”
- A avó: “Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: «Não faças caso, em sonhos não há firmeza». Foi só muitos anos depois que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer.» Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada.”
Felizes, os que creem… Não, a Fé não ‘é uma ilusão’ (Freud) nem ‘o ópio do povo’ (Marx). Mas, sim, a adesão a uma Pessoa – Jesus - raiz da fraternidade universal e do sentido mais pleno da vida. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6)
Este texto encantou-me pela elegância de estilo e ternura de sentimentos. E pela modéstia de um ‘Prémio Nobel’ que, na hora da consagração, não renega mas exalta a humildade das suas raízes e dá nome à sua remota aldeia ribatejana.
O meu agradecimento ao único “Nobel da Literatura” que muito honra os falantes que, com Fernando Pessoa, podem dizer: “Minha Pátria é a língua portuguesa”.
(8/12/2021)
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