O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, abril 08, 2020

CRIATIVIDADE ARTÍSTICA

 
“E vamos cavando de lugar em lugar a expansão/ Do arbusto que transborda” (Daniel Faria).

Tenho um amigo que é artista. De raízes durienses, vive nas terras da Maia onde, como «mestre» na Universidade Sénior, guia os «aprendizes» pelos trilhos da aguarela. Ultimamente, deixou-se levar pela paixão de esculpir madeira, aproveitando arbustos e ramos de árvores. Quando vê alguém a podá-los, observa-os e, se algum o cativa, pede-o ao seu proprietário. Aproveita o que não presta. E assim, num profundo respeito pela natureza, recicla a matéria e cria arte.

Há dias, ao vê-lo trabalhar, veio-me à mente o artigo que, então aluno do Seminário Maior, publiquei no Jornal Novidades (1959), com o título “Hilemorfismo e Mudanças Substanciais”. Aristóteles, o grande filósofo grego nascido em Estagira em 384 a. C., diz que tudo o que existe no espaço e no tempo é constituído por matéria e forma; e, simultaneamente, «ser em ato» porque tem a perfeição de ser o que é, e “ em potência” para um novo «ser em ato». Tudo depende da forma que vier a receber. E exemplificava com uma estátua: “Hermes está na madeira em potência…(Met)”. Ao dar forma à matéria, o artista transformou a potência em ato e assim nasceu a estátua. A matéria informe aparece como o mundo da possibilidade face à atividade criadora dos artistas.

Como me encanta o entusiasmo do meu amigo António ao explicar o processo criativo das suas obras. O ramo pode ser mais ou menos grosso, mais ou menos longo, mais ou menos rugoso mas não deixa de ser um ramo e, simultaneamente, abre para múltiplas imagens, depende da forma que vier a adquirir. Quando o encontra, sente naquele pedaço de madeira algo que o provoca, que o convida a tomá-lo na mão. Gera-se uma cumplicidade que está na base de todo o seu projeto.

Após um diálogo silencioso, surge a inspiração. De matriz cristã, a sua paixão maior são os «Cristos» - Jesus na madrugada pascal. Mas será o ramo que lhe indicará o caminho. À medida que vai trabalhando, a obra vai surgindo ao sabor dos ditames da madeira, sem obedecer a qualquer modelo preconcebido.
Esta cumplicidade surpreendente, aliada à imprevisibilidade do resultado, está na base da originalidade que o entusiasma e delicia quem tem o privilégio de apreciar as suas criações.

O “arbusto transborda”, o artista sublima-o e surge a obra de arte. A madeira parece esquecer a sua materialidade e, como escreveu E. Souriau, “começa a irradiar pouco a pouco um conteúdo implícito que se espalha e ocupa o espaço ambiente com alguma coisa que é talvez sonho, ilusão”.

O homem, ser do símbolo e do «para-além», vê o invisível e não se deixa soçobrar na tribulação como aquela que agora nos assola. O sentido estético eleva-o acima da amargura da imanência. A arte é uma janela aberta para a transcendência de Deus que pôs em nossos olhos a beleza da criação.
(8/4/2020)