O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, janeiro 15, 2020

"TU QUE TENS O NATAL DA SOLIDÃO..."

 
Sempre que passo a noite de Natal no centro do Porto, e, por volta das 22 horas vou à janela, vejo quase deserta a rua que, habitualmente, fervilha de gente. Por vezes, lá aparece um grupo de turistas ou alguém, com um embrulho na mão, apressado mas feliz em direção ao lar que o espera. E também um ou outro vulto que se esgueira pelas esquinas, com passadas irregulares a deambular sem rumo nem destino como quem vai para lado nenhum. E vêm-me à mente os versos de Ary: “Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento (…) e sofres o Natal da solidão sem um queixume / és meu irmão, amigo, és meu irmão.” Quão pesado é o abandono nessa noite de memórias e saudades!

É, pois, de louvar a iniciativa do Cónego Amadeu, então pároco de Campanhã que, em 1987, criou, na «noite da consoada», o “Natal dos Sós”. São do P. Milheiro, que lhe sucedeu, as palavras: “Nunca sabemos quantos serão. Atendemos chamadas, abrimos as portas e aguardamos. Cada rosto tem por detrás uma história que respeitamos. Nessa noite estamos unidos na solidão que decidimos vencer indo ao encontro uns dos outros. E tem mais calor esse Natal”.

A “Casa dos Girassóis” está aberta a todos. Não se pergunta pelo IRS, pelo NIF, nem pela idade, religião, naturalidade ou etnia. É, simplesmente, um amigo, um irmão. Embora haja rostos que se tornaram familiares, sempre vão surgindo novos olhares. Nos primeiros tempos, predominavam pessoas ligadas à rua. A seguir, foi a presença significativa de timorenses. Depois, vieram os imigrantes de Leste. Ultimamente, o grupo tornou-se mais estável, sendo vários os casais que ali se acolhem em busca do calor que sua casa, agora sem filhos nem pais, já não lhes oferece. E lembramos, com saudade, D. António Francisco que partilhou dessa ceia, no primeiro Natal do seu ministério episcopal no Porto.

Este ano, como habitual, antes de se servir a ceia, fez-se a evocação do Natal com cânticos e três poemas: “O Cântico das Criaturas”, de S. Francisco, em sintonia com a Carta Apostólica «Admirável Sinal» do Papa Francisco; “Nasce Mais uma Vez” de Miguel Torga, com vivências de infância que se quer perpetuar; e ”Coeleth (Ecl 12-1-7)” de Daniel Faria que nos faz dois apelos:

 “ Lembra-te do teu Criador nos dias da mocidade/ A tua única herança para os dias da desgraça./Antes que a noite seja noite e não vejas o sol nem as estrelas nem os filhos. Antes que a tua única herança seja lembrança/ Antes que o fio de prata se rompa e a roldana rebente no poço/ Antes de tudo isso/ Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês”.

Este último convite faz-me lembrar as técnicas cinematográficas dos planos «picado» e «contrapicado»: os objetos, quando fotografados de cima para baixo, esbatem-se e perdem relevo. A vida, vista de cima, liberta-nos e ganha maior transcendência.

Sobe ao cimo do que vês”. Um lema para o ano que agora se inicia.

(14/1/2020)