O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, novembro 02, 2007

O NASCER DE UMA PARÓQUIA - I

A motivação para este texto

No sábado, dia 23 de Junho, o Senhor D. Manuel Clemente, novo Bispo do Porto, veio conhecer a Paróquia de Nossa Senhora do Calvário. O pároco, Pe. Fernando Milheiro, convidou-me para estar presente porque quereria apresentar-me ao senhor Bispo como sacerdote fundador da paróquia. Foi com muito gosto que acedi ao convite. Depois de apresentado, participei na Eucaristia e, no momento da paz e no final, recebi abraços de muitos dos meus antigos paroquianos. Este facto está na origem deste texto

Um desejo, um projecto.
Como tudo o que se ama, a nova paróquia começou por ser pensada e querida. Assim, a Paróquia de Nossa Senhora do Calvário começou a nascer “ no peito”, no início do ano de 1964 quando o Senhor D. Florentino, com o Secretariado Diocesano de Acção Social, decidiu que a “Obra dos Bairros” (só em 1967 é que os seus estatutos foram aprovados pelo Governo com o nome de Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto) iniciasse o seu trabalho no Bairro do Cerco do Porto por ser, à época, o maior bairro da cidade e estar a ser ocupado nessa ocasião.
Num encontro, o Senhor Bispo falou-me do Secretariado Diocesano e do trabalho que iria desenvolver nos bairros camarários. Explicou-me que queria que eu, embora continuasse, por enquanto, coadjutor em Santo Ildefonso, começasse a colaborar com o Secretariado no trabalho que iria ser iniciado no bairro do Cerco do Porto. Explicou-me o seu projecto. A sua intenção era criar uma nova paróquia nessa zona onde se implantaram vários bairros com um extraordinário aumento da população. Por isso, eu começaria pela acção social no bairro e, pouco a pouco, deveria alargar a minha acção pastoral a toda uma zona que constituiria a futura paróquia.

O primeiro contacto
No domingo seguinte, resolvi ir conhecer o Bairro do Cerco do Porto”. Fui de eléctrico até S. Roque. Segui a rua do Cerco, passei em frente ao bairro da Polícia e, quando ia a passar junto do bloco 13, vi que numa casa havia um baile (era a época do twist). Então uma rapariga, veio à janela e, ao ver-me a passar, berra: “Ó Senhor Padre, venha dançar connosco!” Eu, sorrindo, agradeci, continuei o meu caminho e pensei: “ os meus colegas quando entram numa paróquia são recebidos com foguetes e banda de música, eu sou recebido com um convite para dançar… Para começar, não está mal”.

O início da actividade sócio-pastoral
O primeiro contacto com a população do bairro, fez-se no domingo de Páscoa de 1964 com o compasso. Como eu estava ocupado em Santo Ildefonso, foi o Pe. Teixeira Fernandes que, com autorização do Pároco de Campanhã, Pe. Tavares Martins, tirou o compasso no bairro do Cerco. Ao visitar as casas do bairro ia falando sobre o trabalho que iríamos iniciar e, como um novo sinal, agradecia mas não recebia o dinheiro que lhe iam oferecendo.
Logo na semana seguinte começaram os encontros na Escola Masculina do Bairro. Havia uma equipa de leigos dos Cursos de Cristandade que, na véspera, passava pelos blocos convidando os respectivos chefes de família para uma reunião que iria realizar-se às 21 horas. Como eram 32 os blocos do bairro e para cada encontro apenas eram convidados dois blocos, as reuniões prolongaram-se por mais de um mês. As reuniões eram orientadas, pela D. Julieta Cardoso, Dr. Pedro Cunha (do secretariado diocesano), por mim, e ainda pela assistente social, D. Maria Augusta Negreiros que secretariava.
Porque, desde o seu início, a Obra visava a promoção social das populações, não iria fazer nada que não resultasse da vontade expressa dos moradores e que não contasse com a sua colaboração. Nada seria imposto. Assim, no decorrer das reuniões, os participantes eram incentivados a expor as necessidades do bairro. Depois de inventariadas as carências, eram convidados a dar o seu nome para se constituírem comissões que, com a ajuda da Assistente Social, de um leigo de fora do bairro e de mim próprio, procurariam colmatar a necessidade referenciada. E foram muitas as carências referenciadas: falta de telefone no bairro, de um marco de correio, de um posto de enfermagem, de um mercado, de transportes, de limpeza, de um centro de convívio, de salas de estudo par as crianças, de dinheiro para pagar as rendas, de policiamento, e… de missa e catequese no bairro E assim, entre as várias comissões (“Sala de Estudo”, “ Centro de Convívio”, “Posto de Enfermagem”, “Correio e Telefone”, “Higiene e Limpeza”, “Segurança”, “Transportes”, “Mercado”, “ Auxílio Mútuo”) foi constituída também uma com um nome bem simples “Comissão de Missa e Catequese”. Enquanto a D. Augusta Negreiros, com o meu apoio, trabalhava com as outras comissões, eu encarreguei-me directamente desta comissão desde a sua formação. Não falarei da actividade no domínio social. Para um melhor conhecimento poder-se-á ler o livro “ OBRA DIOCESANA 40 ANOS DE PROMOÇÃO SOCIAL do Dr. Bernardino Chamusca.

O germinar da Paróquia
Podemos afirmar que a Comissão de Missa e Catequese foi o núcleo fundante daquela que, mais tarde, veio a ser a paróquia de Nª Senhora do Calvário.
O plano de trabalho que traçámos projectava que a primeira missa a celebrar no bairro seria na festa de 15 de Agosto, ao ar livre, celebrada, se possível, pelo Senhor D. Florentino, e com a presença do senhor Dr. Nuno Pinheiro Torres, Presidente da Câmara Municipal do Porto e um grande amigo e impulsionador da Obra dos Bairros; após essa data, haveria missa dominical no átrio da Escola Masculina, a catequese deveria iniciar-se em Outubro.
Formámos um coro de rapazes e homens do bairro para cantar nas missas. Eu encarreguei-me dos ensaios que decorriam numa sala da Escola Masculina.

A Escola Masculina do Bairro - a nossa primeira capela
Desde a primeira hora, contámos com a inestimável colaboração do Senhor Director Escolar do Distrito do Porto que fazia parte do Conselho Consultivo da Obra e a ajuda da directora da Escola Masculina que, com autorização daquele, nos entregou uma chave da escola, ficando nós autorizados a usá-la para tudo o que necessitássemos. Assim a escola masculina foi o nosso primeiro local de trabalho e a nossa primeira capela. Desses ensaios, recordo dois factos: uma noite, estávamos já a ensaiar, quando entrou um jovem com uma gorra na cabeça cheia de cimento e diz: eu sou trolha mas também quero fazer parte do coro ( era o Carlos Lima que, depois foi catequista, e ainda hoje é um amigo); numa outra noite, ao ensaiar, notei uma voz forte, segura, de quem já conhecia alguns dos cânticos, no fim, ao falar com ele soube que fora o senhor Armindo Santos que o trouxera com ela (era o Zé Guilherme, hoje meu compadre e grande amigo do coração). Começaram a aparecer rapazes do bairro da PSP e de Pego Negro (ainda me lembro do incómodo que me causou este nome: pego e, ainda por cima, negro… Mas enganei-me. Como fui bem recebido por esta comunidade ainda muito marcada pela ruralidade!... Boa gente.)

A Primeira Missa no Bairro
A comissão preparou tudo para a primeira missa (altar, altifalante, coro, leitores, acólitos…) que, conforme o planeado, foi celebrada pelo Senhor D. Florentino no largo em frente do bloco 19, no dia 15 de Agosto de 1964. E a minha rapaziada saiu-se bem na sua cantoria. Foi uma alegria. Fazendo-se eco da vontade das pessoas, o senhor Presidente da Câmara, na minha presença, pediu ao senhor Bispo que me libertasse de Santo Ildefonso e me nomeasse para o Cerco. Estou convencido que essa já era a intenção do Senhor Bispo, mas, simpaticamente, reservou-se: -“ vou ver o que posso fazer, Senhor Presidente”.
A partir dessa data, a missa começou a ser celebrada todos os domingos no átrio da referida Escola às 11 horas da manhã. A Comissão, com a ajuda do senhor Marta do Bonfim que deu a madeira, fez um estrado e um altar que montava e desmontava todos os domingos. As senhoras e raparigas (e eram tantas que me dispenso de indicar nomes. Não é por machismo que o não faço mas sim para não cometer injustiças) limpavam o átrio de modo a tudo ficar impecável para as aulas de segunda-feira. Nunca houve qualquer problema.
Como ainda estava em Santo Ildefonso, nem sempre me era possível celebrar. Quando não podia, recorria ao meu primo, Pe. Oliveira (Dr. Manuel Joaquim Alves de Oliveira) que, como estudava em Roma, estava a gozar férias em sua casa em S. Martinho de Campo-Valongo.
Com o início das celebrações dominicais, foi enorme a adesão das pessoas do Bairro da polícia bem como da população de Pego Negro, da Maceda e de toda a área envolvente, como as ruas do Cerco e de S. Roque. Ainda me lembro que nas primeiras missas que celebrei na escola usei uns paramentos velhos que o senhor bispo me dera (o cálice era o da minha “missa nova”). Então as pessoas da rua de S. Roque fizeram uma subscrição e ofereceram-me uns paramentos novos: foi uma festa. Os paramentos estiveram em exposição numa casa comercial na Rua de S. Roque da Lameira. Eu era o padre pobre, dos pobres…