O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, junho 13, 2007

UM PERCURSO DE VIDA




RELIGIOSO > SOCIAL > POLÍTICO


Família - Nasci numa família identificada com o regime de Salazar. Como católicos e pequenos lavradores sofreram com os carbonários da Primeira República e sentiram a crise económica dos governos republicanos. O Dr. Oliveira Salazar apareceu-lhes como um salvador da Religião e da Pátria. Meu pai pertencia à União Nacional. Ocupara todos os cargos do poder local desde regedor, presidente da Junta, presidente da Casa do Povo, membro da direcção do Grémio da Lavoura, louvado das Finanças, vereador da Câmara Municipal. Na fase final da sua vida (faleceu 1970), depois de conversar muito comigo, acabou por abandonar todos os cargos políticos, tendo-se mesmo demitido de vereador da Câmara de Valongo, com grande espanto dos seus amigos e correlegionários.
Em criança, falavam-me da perseguição religiosa da Carbonária, especialmente ao senhor Abade (nas aldeias, a questão religiosa foi um dos problemas que mais denegriu a 1ª República), e da situação de bancarrota em que vivia o país quando Salazar apareceu. Foi neste ambiente que fui criado. Por motivos religiosos, era pró-Salazar.
A minha mudança de perspectiva política deu-se por motivos sociais fundamentados numa motivação religiosa. Eu conto.

Seminário - Quando estava no Seminário Maior do Porto, teria uns 20 anos, apercebi-me da miséria e do abandono em que viviam as pessoas do “Morro da Sé”. Como membro da Conferência de S. Vicente de Paulo, percorria semanalmente as velhas ruas do bairro: rua Escura, da Bainharia, dos Pelames, do Souto, de S. Sebastião, das Aldas, de Pena Ventosa, de Santana…
Com o incentivo e apoio do reitor de Seminário, Monsenhor Miguel Sampaio, eu e o meu colega Teixeira Coelho colaborámos na criação de um parque infantil onde as crianças dessas ruas passavam o dia sob o olhar de uma “madrinha” e de nós próprios. Em Agosto de 1961, organizámos uma Colónia de Férias para os rapazes na serra da Freita, em Arouca, mais precisamente na Freguesia de Albergaria das Cabras, que, hoje, devido a um eufemismo político, se chama Albergaria da Serra. Alugámos um sobrado que servia de camarata e na Escola funcionava o refeitório. Estavam connosco 19 rapazes entre os 6 e os 12 anos e algumas meninas mais velhas que já funcionavam como”madrinhas”. A acompanhar-nos estava um padre do seminário, inicialmente, o Dr. Ângelo, e depois o Dr. Armindo, actualmente Bispo Emérito do Porto.
Que coisa maravilhosa! Que alegria naquelas crianças que nunca tinham saído do ambiente escuro das sujas e íngremes ruas medievais do seu bairro. Era vê-los, de manhã, a lavar a cara no rego de água que passava junto da escola e, de tarde, a tomar banho nos tanques da Florestal… Como nos deleitava a alma ouvir o cantar das raparigas da terra. Que melodiosas! Que harmonia de vozes!... Sempre as recordo quando ouço a Isabel Silvestre (de Manhouce que é ali bem perto…)
Os carros e camionetas ficavam longe da aldeia (a estrada que subia de Arouca chegava apenas ao Posto do Radar) que, se não tinha estrada, também não tinha electricidade.
Aí, recebemos uma excursão dos pais das crianças ( nesse dia, o bairro da Sé acordou mais cedo e em festa) e também o Bispo D. Florentino nos foi visitar. Nos dois anos seguintes, organizámos outras colónias de férias na escola do Calvário em Valongo.
Para além da catequese e do parque, criámos cursos de formação para as raparigas da Sé e, sempre com o apoio do Senhor Reitor, abrimos um centro de convívio para a população local, nas próprias instalações do Seminário, que organizou as festas sanjoaninas no Largo do Colégio. O velho bairro renasceu. A alegria voltou a animar as suas ruas.
Todo este nosso trabalho social tinha como fundamento o nosso ser cristão: estar com os mais pobres era uma exigência do Evangelho. O Padre Américo, que tão amado era no Barredo, era o nosso modelo.
Pouco a pouco fui-me apercebendo da miséria daquela gente marginalizada. Recordo como foi chocante quando foi proibida a prostituição e várias raparigas jovens vieram ter comigo com os filhos nos braços e entre lágrimas e soluços, me interrogavam: - “E agora, senhor Padre, que vou fazer com esta criança?” (eu tinha nessa altura, 22 anos, andava no 2º ano de Teologia. Muito cedo, comecei a conviver com esta miséria escorraçada que se queria escondida dos holofotes da sociedade.)

Concílio Vaticano II- Começava a afirmar-se uma nova eclesiologia. A Igreja que, antes, aparecia mais como “ Corpo Místico de Cristo”, agora assumia-se como “ Povo de Deus”. De uma Igreja Militante passava-se para uma Igreja Peregrina, um Povo em marcha para a “Casa do Pai” que procurava realizar na Terra as virtudes próprias do Reino de Deus, “um Reino de Justiça e Verdade; um Reino de Amor e Paz”, um Reino que na Terra tinha por “Constituição” o Sermão das Bem-Aventuranças, mais na linha de Lucas (“Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o reino dos céus” Luc, 6,20) do que de Mateus ( Bem-aventurados os que tem um coração de pobre, - os pobres em espírito- porque deles é o reino dos céus” Mat,5,3)

Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto -Cerco do Porto -
O meu trabalho iniciou-se, no fim de Março de 1964, no Bairro do Cerco do Porto para onde fui viver, no bloco 15. Passei a tomar banho de água fria porque as casas do bairro não tinham, nem se podia pôr, um esquentador ou um cilindro: para pobres já era muito bom um banho de água fria…
A minha acção estendia-se pelos bairros do Cerco e de S. Roque bem como por toda a área residencial que os envolvia: não queria que os bairros fossem guetos.
Como, nos primeiros tempos, vivia sozinho, ia comer a casa de quem me convidasse. A agenda das refeições para a semana era preenchida no final das missas dominicais. E não me faltou de comer, bem pelo contrário, ao fim de uns meses tive de mudar de sistema porque estava a ficar muito gordo; todos me preparavam boas refeições e ficavam tristes se comesse pouco e eu, como bom garfo que sempre fui, fazia-lhes a vontade. Os meus filhos ao verem fotografias desse tempo dizem que foi a minha época de “bola de berlim”… A alegria da pequenada era meter-se debaixo da minha capa: parecia uma galinha com uma ninhada de pintainhos debaixo das asas.
Aí comecei a viver com uma população duplamente desenraizada. Expulsa das suas “ ilhas” onde vivia em comunidade , foi dispersa por bairros diferentes: as pessoas perderam as casas e os seus vizinhos. Sentiam-se à deriva. Vi a vergonha das famílias que “por-dá-cá-aquela-palha” tinham sido transferidas de bairro pelos serviços camarários. Senti a aflição daqueles que não tinham dinheiro para pagar a renda no final do mês. Revoltei-me com o medo em que viviam as pessoas por causa da repressão dos “fiscais dos bairros”, temendo uma acusação na Câmara que os expulsasse ou transferisse do Bairro. Quantas injustiças foram cometidas.
O meu contacto com este povo tresmalhado e amordaçado e a minha identificação com os novos conceitos de “serviço social” defendidos pelas Assistentes Sociais que comigo trabalhavam, levaram-me a progressivamente fazer uma mudança na minha forma de ver a situação política. Por isso, a Obra dos Bairros começou a afirmar-se na prática como Obra de Promoção Social em que os pobres eram os agentes do seu próprio desenvolvimento: eram sujeitos de direitos que deveriam reivindicar. Os estatutos consagraram uma Obra cujos fundamentos eram a Pessoa - como ser único, livre, responsável, transcendente.
( Ver Post – “Espaço Solidário” ; O Nascer da Obra Diocesana)

Câmara Municipal do Porto- Bem cedo começou a sentir esta orientação personalista da Obra e esta nova visão da Igreja. (O Dr. Nuno Pinheiro Torres estava de acordo com esta orientação, os outros é que…)
Na Quaresma de 1966, fui convidado para celebrar a Eucaristia da “Comunhão Pascal” do “Pessoal da Câmara”. A minha homilia começou mais ou menos assim:
Hoje é dia de festa. Mais uma vez a Câmara se reúne para celebrar a sua Comunhão Pascal. Estão de parabéns os seus organizadores. Mas este gesto só será autêntico se for um sinal. Um sinal de que, na vossa vida de cada dia na Câmara, sabeis acolher com carinho o Cristo que vos visita na pessoa dos mais abandonados. Ele que disse “ o que fizerdes aos mais pequeninos é a mim que o fazeis”. Não basta comungar Cristo na Missa, isso é o mais fácil; é preciso comungá-Lo na Vida, e isso é o mais difícil. Quando atendeis com desprezo ou arrogância o morador do bairro que, a chorar, vos diz que não tem dinheiro para pagar a renda, é a Cristo que estais a maltratar…Quando o mandais embora sem uma atenção, é a Cristo que estais a escorraçar. (…)”.
Não voltei a ser convidado para a Comunhão Pascal da Câmara.

Refiro apenas mais dois casos.
* Um dia o Director de Habitação da Câmara, telefonou-me e perguntou-me: -Então, Senhor Padre, isso por aí está tudo sossegado? Ao que eu respondi mais ou menos nestes termos: - Não estou aqui para sossegar as pessoas, bem pelo contrário, estou aqui para as ajudar a lutar pela satisfação das suas necessidades. Mas se quer saber se por aqui há muitos barulhos, eu respondo-lhe: há e sabe quem são os causadores? São aquelas famílias que vocês expulsam dos outros bairros e as mandam para aqui. Muitas vezes é por uma questão sem importância ou por uma vingança do “fiscal”, mas, quando chegam ao bairro, trazem o ferrete de “expulsos”. Os que cá moram olham-nos desconfiados e eles reagem dando origem a desordens. Quando é que acabam com essa política das “expulsões”? Fiquei sem resposta.
* Houve um outro acontecimento que me obrigou a uma tomada de posição que muito incomodou a Câmara.
De acordo com os regulamentos dos bairros camarários, um homem que iniciasse uma mancebia (agora diz-se “união de facto”), vivendo já num bairro, era expulso de qualquer bairro da Câmara. Aconteceu que, no Bairro da Pasteleira, uma mulher abandonou a casa, deixando o marido com três filhas, todas com menos de quatro anos, tendo, a mais nova, menos de um ano. Depois disso, o marido/pai trouxe para sua casa uma colega da fábrica onde trabalhava. Passaram-se três anos e, quando as crianças já chamavam mãe a esta senhora (a mais nova nunca conheceu outra mãe), alguém os denunciou à Câmara e esta pôs o seu inquilino perante a seguinte dilema: ou mandava a mulher embora ou era expulso do bairro não podendo, nunca mais, viver num bairro camarário. Soubemos do caso e, em reunião de Direcção, onde tinha por colegas, entre outros, o Dr. Sá Carneiro e o Arquitecto Fernando Távora, já tínhamos decidido intervir a favor daquela família junto da Câmara, quando o chefe da divisão da Câmara responsável pelos bairros , me telefonou para saber a minha opinião como sacerdote da Obra Diocesana, convencido de que eu iria apadrinhar a atitude da Câmara, dando-lhes a cobertura moral de que muito precisavam. Foi uma conversa longa e dura. Comecei por lhe dizer que, como sacerdote e como representante da Obra, estava em total desacordo com a Câmara. – Então, o senhor como sacerdote é a favor das mancebias.” Retorqui: “não sei do que sou a favor, só sei, como sacerdote e homem, que o que vocês estão a fazer é uma violência, é uma desumanidade porque querem retirar a três crianças a mulher a quem elas chamam mãe.” – “Mas é uma imoralidade!”- protestou .
- “Imoralidade? Pois é, aos desgraçados que precisam duma casa para albergar os seus filhos vocês escorraçam-nos, preocupados com a moralidade. E aos outros, aos da vossa classe? Coitados dos pobres…. É contra isso que nós somos. Deixem-se de hipocrisias! E a conversa acabou por aqui.
( Ver Post “Arquitecto Távora – Um homem de Bem”)

D. António -Quando o Senhor D. António Ferreira Gomes regressou à sua diocese, após um longo exílio político de dez anos, chamou-me para falarmos da Obra e dizer-me que eu continuaria como sacerdote responsável. A sua primeira pergunta, e à queima-roupa, foi:
-“Padre João, por que é que sendo o senhor conhecido na Câmara como “o Padre Comunista” ainda não foi preso?
- “ Porque não sou comunista, porque me limito a ser sacerdote, e porque não sou parvo…”
E expliquei-lhe. Critico muitas vezes a política da Câmara, estou do lado dos moradores dos bairros. E isso faço-o abertamente. Já quanto ao Governo, sempre que discordo da sua política, faço-o num enquadramento litúrgico. Nunca o faço fora da igreja. Quando quero distribuir um documento ao povo, nunca o faço no exterior da igreja, convido quem o quiser a procurá-lo na sacristia (assim não posso ser acusado de estar a espalhar, na rua, panfletos subversivos). Eu e outros colegas conhecemos vários livreiros que logo que recebem um livro que supõem que irá ser recolhido pela PIDE, avisam-nos e um de nós vai logo comprá-lo. Muitas vezes, quando nas homilias cito esse livro ele já fora retirado pela PIDE, mas eu afirmo: “Estou a citar o livro tal que comprei na livraria tal no dia tantos de tal.” Nunca me podem acusar de me apoiar em literatura clandestina.
Disse-lhe, ainda, que muitos dos meus acólitos e leitores eram polícias. ( Tenho um bairro onde moram 152 famílias de polícias). Quando sei que vou fazer uma homilia “mais puxadinha” aviso-os que não os quero no altar, para não os comprometer. Eles, em contrapartida, quando vêem alguma agente da Pide na capela, avisam-me. Recordo um dia em que a homilia ia ser quentinha e eles avisaram-me da presença da Pide e eu falei muito bem do céu… Uma desilusão para os agentes…
O D. António, intelectualmente, era um ser de excepção, com uma cultura fora de série, mas tinha um coração de criança. Nunca mais esquecia quem lhe fizesse bem. Por isso, manteve para com Marcelo Caetano, que permitiu o seu regresso à Diocese, uma certa consideração e respeito e alguma benevolência. Recordo o que aconteceu no dia das eleições para a Assembleia Nacional em 1973. Eu e um grupo de vários sacerdotes novos fizemos uma homilia para lermos nesse dia. Na 6ª feira anterior, enviámos um exemplar pelo correio ao D. António que o recebeu no sábado (ainda havia distribuição ao sábado). Mandou imediatamente convocar-nos telefonicamente para uma reunião às 3 da tarde. Foi uma reunião “gaga”: o D. António parecia não querer que fizéssemos aquela homilia mas não tinha coragem para nos dizer abertamente. A certo momento, interrompi-o e disse: D. António, eu teria muito gosto em passar a tarde consigo a falarmos neste assunto, mas hoje é sábado, sou pároco, tenho as crianças da catequese à minha espera. Porém, antes de me ausentar, queria fazer-lhe três perguntas para eu dizer o que vou fazer. Primeiro, esta homilia contém erros teológicos. E ele respondeu: -Não. - Segundo, a análise social que nela é feita contém falsidades? Resposta dele: -Não. – Terceira, se eu for preso por fazer esta homilia, o Senhor Bispo está disposto a ir a tribunal defender-me e repetir o que agora me respondeu?Estou.Muito Obrigado. Senhor Bispo e colegas, eu vou fazer a homilia”. E saí e fiz a homilia. E o D. António nunca mais me falou nisso. E não fui preso, embora tivesse ficado muito assustado ao saber que, segundo me disseram, apenas dois lêramos o texto integral.

Para além deste meu contacto com os bairros camarários houve mais dois factores que influenciaram a minha mudança de atitude face à política de Salazar: a fábrica do cobre e a guerra colonial.
* O Mundo Operário - Na minha paróquia ficava a “Fábrica do Cobre” onde havia muitas centenas de trabalhadores, com um movimento operário muito activo. Por isso, a PIDE, com os seus “bufos”, estava muito atenta a tudo o que lá se passava. Muitos desses operários eram meus paroquianos e meus colaboradores. Acontecia que, por vezes, eram levados presos para a Pide onde, durante vários dias, eram sujeitos a interrogatórios muito duros e sofriam toda a espécie de torturas. Acabavam por ser libertados, sem saber por que estiveram presos. Lembro-me de um caso em que dois agentes da Pide, a altas horas da noite, bateram à porta da casa dum desses trabalhadores, e desde o momento em que a mulher lhes abriu a porta, nunca mais o deixaram sozinho, mesmo quando ele foi à casa de banho, enquanto os filhos, crianças que acordaram com o barulho, choravam pelo pai. Acabou por ser libertado após uns dias sem qualquer explicação para aquela prisão àquela hora da noite. Os operários da Fábrica do Cobre e as suas famílias viviam num sobressalto, num estado permanente de angústia com medo de uma acusação por parte de algum dos muitos “bufos” que, a troco de um conto por mês, se encarregavam de denunciar os colegas/amigos/familiares. Desconfiava-se de toda a gente. Os elementos da Pide eram mais ou menos conhecidos, piores eram os “ bufos” - não se sabia quem era. Ninguém se podia queixar da vida cara, das dificuldades em arranjar emprego, da saudade por um familiar emigrante, do sofrimento pela morte de um filho na Guerra. Chegava-se ao caricato de ser muito perigoso falar da ONU, apesar de Portugal a ela pertencer… Tudo estava bem… Tudo corria às mil maravilhas…A propósito deste ambiente de falsidade e medo, apetece-me transcrever o” Romance de S. Petersburgo” que estou a ler neste momento “Mentir é fazer o papel de bom cidadão, dizer a verdade, mesmo sobre coisas aparentemente indiferentes, é conspirar. (…). A verdade, eis o inimigo, eis a revolução; a mentira, eis o repouso, a ordem, o amigo da constituição, eis o verdadeiro patriota!
* A Guerra do Ultramar - dizer guerra colonial era muito perigoso…poderia dar prisão…
Sofri com diversos colegas de escola e familiares que vieram feridos, mutilados, deficientes da Guerra. Limito-me a citar apenas o meu colega Zeca Freire que veio cego e o meu primo António de Rebordosa que ficou demente.
Fiz o funeral de vários paroquianos meus, alguns que eu tinha casado, outros que eram meus colaboradores na Paróquia. Um, cuja recordação ainda hoje me faz vir as lágrimas, foi de um sub-chefe da PSP que vivia com a sua esposa no Bairro da P.S.P. Ela era a minha secretária da catequese, ele fazia parte da comissão administrativa da Paróquia. Não tinham filhos. Foi para Angola em “comissão de serviço” e a esposa continuou a viver no bairro. Passados uns meses ele morreu em Angola, vítima da guerra. Aconteceu que, segundo a legislação da Polícia, só podiam viver nesse bairro os polícias que estivessem ao serviço, no activo. Quando se reformavam ou morriam, as famílias tinham que abandonar o bairro. Foi o que aconteceu à esposa. Logo que se soube da morte do marido, ainda o seu corpo não tinha vindo de Angola, já ela recebera ordem do Comando Distrital para abandonar a casa onde, durante muitos anos, vivera com seu marido no bairro onde criara as suas amizades. Sozinha e sem filhos teve que regressar para junto de seus familiares, em Penafiel. Fiquei revoltado. Eu já lutara contra esta legislação que considerava iníqua, mas neste caso, tive sempre que o fazer só. Nenhum dos polícias podia dar a cara por esta causa, porque, se o fizesse, apanhava com um processo disciplinar que poderia levá-lo à expulsão da P.S.P.
Quando o seu corpo (admitamos que era…), chegou de Angola, eu com muitos dos seus vizinhos, fomos ao seu funeral que se realizou no cemitério de Penafiel. Como sacerdote, seu pároco, presidi, ao funeral, com as lágrimas a correrem-me pela face. (já não me lembro se estava presente algum capelão militar) Mas, quando descia à sepultura, ao ouvir as salvas de tiro da praxe, olhei para a bandeira nacional que cobria o seu caixão, não aguentei e, por entre soluços e lágrimas gritei: -“calem-se, tenham vergonha! Maltratam aquela que ele amava e a quem mais queria, escorraçam-na de junto dos seus amigos, e agora vêm aqui prestar-lhe homenagem! Não envergonhem essa bandeira que todos veneramos! Honrem-no, na pessoa da sua esposa! Deixem-se de hipocrisias!”. O Comandante da P.S.P. do Porto, Major Santos Júnior, junto de quem muitas vezes reclamei contra essa lei injusta, assistiu silencioso ao meu protesto. Os polícias, e eram muitos, ficaram transidos de medo sem saberem o que fazer, na presença do seu comandante. E nada me fizeram. Eu saí do cemitério acompanhado pela esposa/viúva em lágrimas. Razão tinha o D. António: - por que nunca foi preso? Também eu me interrogo.

Eu sabia que, como sacerdote, tinha privilégios que o comum dos cidadãos não tinha. Poderia dizer coisas que outros não podiam, tinha uma assistência dominical garantida que outros não possuíam, era detentor de uma autoridade moral que outros não tinham. E, embora com cuidado, aproveitava-me disso. Estaria certo? Não sei, mas hoje, nas mesmas circunstâncias, faria o mesmo.

Lembro-me de num retiro que orientei em Darque, Viana do Castelo, para os seminaristas do Seminário Maior do Porto, quando um, no decurso de uma conferência, me perguntou se eu pensava ficar no sacerdócio durante toda a vida e eu, perante o incómodo dos padres presentes, ter respondido: - “exercerei o sacerdócio enquanto três condições se cumprirem: sentir que sou benéfico para a Igreja, vir que sou útil ao País e me sentir feliz.”

Momentos de especial risco - Houve dois momentos em que eu senti que corri grande perigo porque ocorreram fora do espaço litúrgico.
1- O jovem imigrante que eu levei à fronteira da Madalena para, " a salto", regressar a França".
Foi num verão do início dos anos setenta.
( Ver Post “ Mas eram quatro…” )
2- O preso político fugido das prisões franquistas a quem paguei o bilhete de combóio para ir até ao Algarve onde o esperava um barco que o levaria para Argel.
Aconteceu no final de sessenta/princípios de setenta.
( Ver Post “ Se eu desaparecer…vão à PIDE.”
Prof. Marcelo Caetano - Quando o Professor Marcelo Caetano substitui Salazar, eu acreditei que algo ia melhorar. Na entrada do Dr. Sá Carneiro para a Assembleia Nacional e no regresso de D. António à sua Diocese, eu quis ver sinais de novos tempos. Isso mesmo disse ao Professor Marcelo Caetano num cartão que lhe enviei quando ele, a convite das pessoas do Bairro do Cerco, teve a coragem de alterar o programa da sua visita para inaugurar o Centro de Formação Profissional do Creco do Porto e entrou na capela do bairro. Dizia o cartão “ Que Vª Excelência realize as esperanças que, neste momento, o povo português deposita em si.”
Porém, foi curto esse período de primavera. A machadada final (na esperança) foi dada quando o Dr. Sá Carneiro pediu a demissão de deputado e me apercebi que, à mudança de nome das antigas instituições repressoras do Estado Novo, não correspondia uma consequente mudança de métodos e objectivos. Razão tinham os latinos: "corruptio optimi pessima". O fracasso da esperança é a pior das desilusões.
( Ver Post “ Eu também acreditei…”)
Ainda relembro a homilia que um grupo de sacerdotes do Porto, os mesmos que tinham feito a homilia para o dia das eleições de 1973, fez para ser lida por todos no dia “Dia Mundial da Paz” (dia 1 de Janeiro) em 1974.
Para evitar o que aconteceu no dia das eleições, só mandámos a homilia ao senhor Bispo depois de a fazermos nas Missas e o texto acabava com declaração mais ou menos nestes termos: “ Os sacerdotes abaixo assinados comprometem-se a ler esta homilia nas missas dominicais que celebrarem no Dia Mundial da Paz.”
Nela, partindo do Vaticano II e da Mensagem do Papa para esse dia, fazíamos uma leitura da situação portuguesa e denunciávamos a falta de liberdade, o total controlo do Governo sobre a Televisão e as falsas reformas operadas pelo governo de Marcelo Caetano. Também falávamos do cortejo de estropiados e mortos da Guerra Colonial.
Essa homilia acarretou-nos a suspensão de passaporte e deu origem a um processo de que só tivemos conhecimento ao lermos “ As Mentiras de Marcelo Caetano”, livro publicado depois do “25 de Abril”, onde aparece transcrita a homilia com o parecer do então Governador Civil do Porto para o Ministro do Interior que começava por dizer “Em dia de paz, uma declaração de guerra” e acabava alertando” parece que têm consultor jurídico”. Não sabemos aonde nos poderia conduzir este processo. O "25 de Abril" aconteceu nesse ano...
De facto, nós tínhamos dois advogados amigos: o Dr. Mário Brochado Coelho apoiava muito dos meus colegas. Quem me dava apoio jurídico era o Dr. Sá Carneiro, com quem me encontrava todas as quartas-feiras na reunião da Direcção da Obra Diocesana. Eu, de facto, tinha-lhe entregue um exemplar da homilia e ele, como sempre, tinha-se comprometido a defender-me em tribunal, se necessário.
( Ver Post “ Conversando com um Amigo”)

O meu último acto de confronto com a política governamental deu-se no domingo que precedeu o “25 de Abril”. D. Manuel Vieira Pinto, Bispo de Nampula em Moçambique, fora proibido pelo Governo de publicar uma sua homilia que falava da Guerra em Moçambique Era um texto que aglutinava uma profunda visão cristã da vida com uma análise muito conhecedora da realidade moçambicana. E que concluía com a inutilidade da guerra e a sua carga de morte, sofrimento e injustiça para o sacrificado povo de Moçambique. Um sacerdote seu amigo fez-me chegar um exemplar dessa homilia que reproduzi num policopiador da paróquia.(Foi um trabalho demorado pois eram muitos os exemplares: eu celebrava seis missas dominicais e as capelas costumavam estar cheias). A minha homilia, nesse domingo, resumiu-se à leitura desse texto, porque era a palavra de um Bispo da Igreja que muitos conheciam e admiravam dado que, além de ter sido coadjutor de Campanhã, fora o responsável, em Portugal, pelo “ Movimento por um Mundo Melhor” e ficara famoso no Porto pelas suas palestras que enchiam o Pavilhão de Desportos, no Palácio de Cristal. Avisei que quem quisesse um exemplar desse texto deveria passar pela sacristia no final da missa. Foi o que muitos fizeram. Após esse domingo, retirei-me para local desconhecido por toda a gente. Precisava de estudar com tranquilidade, uma vez que, no sábado seguinte, tinha que realizar exames no Curso de Filosofia que estava a frequentar. Nessa semana, para nosso grande alívio, deu-se o 25 de Abril. Depois soube que, logo na segunda feira, a Pide tinha estado no Centro de Formação Profissional do Cerco do Porto para se certificar se o texto teria sido aí policopiado, uma vez que o Director fazia o favor de, muitas vezes, policopiar textos para a Paróquia. Só que a PIDE não sabia que eu fora cuidadoso até ao fim e nunca quis envolver ninguém nas minhas actividades de denúncia profética. Assumia sozinho essa missão que, para mim, era uma exigência do meu sacerdócio.

Homenagem a D. Manuel Vieira Pinto, Bispo de Nampula e D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto

Apetece-me terminar com uma notícia que li no JN de domingo passado (10/6/07).

Padre ferido a tiro em zanga de casal”
Encontra-se livre de perigo o padre Américo Gonçalves, atingido a tiro quando tentou desapartar um casal que discutia violentamente no lugar de Gontões, em Vila Real”

Este caso fez-me lembrar Padre Manuel Vieira Pinto, o já referido Bispo de Nampula, que, quando era meu director espiritual no Seminário de Vilar, costumava dizer: há duas formas de ser padre. E caricaturava assim: uma é daquele padre que, ao ouvir uma zaragata na rua, veste a sobrepeliz, põe a estola, pega na caldeirinha e no hissope, vai à varanda e, lá de cima, lança água benta sobre os desavindos enquanto grita: amem-se uns aos outros como irmãos, sejam bons uns com os outros!... Outra é do Padre que, ouvindo a zaragata, tira o casaco, arregaça as mangas da camisa , corre à rua, mete-se no meio dos lutadores e aparta-os. Este está sujeito a apanhar um murro, um tiro… o outro, não. E dizia ainda: eu antes quero um padre de “coração quente” que um padre de “testa fria”… Mais tarde, como Bispo de Nampula em Moçambique, “arregaçou as mangas” e levou à prática aquilo que nos ensinava. Por isso, sofreu e foi duas vezes expulso de Moçambique: primeiro, pelo Governo Português, antes da independência; depois, pelo Governo Moçambicano… Não se limitou ao campo dos princípios, por mais generosos que fossem; teve a ousadia de se pronunciar sobre as situações concretas da guerra e da falta de liberdade. Também D. António Ferreira Gomes, cuja divisa era “de joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens”, depois de denunciar publicamente a “miséria imerecida do mundo rural”, teve a coragem de enviar uma carta a Salazar a falar de liberdade e democracia. E, por isso, viveu exilado durante dez anos, e viu o seu nome banido de tudo quanto era jornal, rádio ou televisão.(Procuraram banir/assassinar o seu nome, já que tiveram medo de fazer o que, talvez, lhes apetecia…). Não pôde vir ao funeral de sua mãe, a quem tanto amava, e, creio, nem sequer a notícia da sua morte, pôde ser publicada nos jornais. Eu fui um dos muitos padres que percorreram a diocese a avisar todos os sacerdotes da hora e local do funeral. (Ele não pôde estar presente mas depois confessou ter-se sentido reconfortado quando soube que o clero da sua diocese comparecera em massa ao funeral de sua mãe). Só a queda de Salazar possibilitou o seu regresso. Ainda me lembro do dia em que Salazar foi a enterrar (finais de Julho de 1970). Eu, nesse dia, por coincidência, tinha almoçado com D. António. Ao virmos da sala de jantar para a sala de audiências para continuarmos a nossa conversa sobre a Obra Diocesana, passámos numa saleta onde um televisor transmitia a fase final das cerimónias fúnebres. Ainda estou a ver D. António: parou, ficou estático frente ao televisor, direito como era seu porte, rosto fechado. Recolheu-se, fez um profundo silêncio, esperou que tudo terminasse e, no fim, desabafou em surdina: “este já não faz mais mal a ninguém.”
Ao relembrar estas duas grandes figuras do clero portuense, presto homenagem a dois grandes homens da Igreja e de Portugal.

Sempre achei que a Igreja deve ter um “coração quente” e deve descer à rua sempre que o homem estiver em causa.. É mais perigoso, eu sei…
Mas… Cristo não se refugiou no campo dos princípios e, por isso, pagou bem caro a sua ousadia…

Amigos, vale a pena viver… E na memória e pela memória também se vive. Obrigado pela paciência que tiveram em me ouvir. Obrigado por me terem ajudado a viver.

O texto integral foi apresentado na Universidade Popular do Porto em 12 de Junho de 2007