O NASCER DA “ OBRA DIOCESANA”
“ A Obra Diocesana de Promoção Social, instituição de solidariedade social ligada à Diocese do Porto, pretende criar, este ano, um centro de noite para apoiar idosos autónomos. (…) Tem ainda o projecto a criação de um lar de idosos e de uma área para apoio a doentes terminais. A Obra Diocesana de Promoção Social, fundada em 1964, conta com 12 centros sociais nos bairros sociais mais desfavorecidos do Porto: o Carriçal, Cerco do Porto, Fonte da Moura, Lagarteiro, Machado Vaz, Pasteleira, Pinheiro Torres, Rainha D. Leonor, Regado, São Roque da Lameira e S. Tomé.
No total, a ODPS conta com mais de 3500 utentes, distribuídos pelas creches, jardins-de-infância, actividades de tempos livres e centros de dia e de convívio.”
(Jornal Destak, 15 de Janeiro de 2007)
“ O Bairro do Cerco do Porto foi inaugurado em 1963, meses antes da génese da “Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros da Cidade do Porto”.
Logo em Abril de 1964, a Obra iniciou a sua acção no Bairro do Cerco. D. Florentino de Andrade e Silva havia entregue a responsabilidade pastoral da zona do Cerco do Porto ao Padre João Alves Dias que, em meados de 1964, passa a fazer parte do grupo directivo da Obra. Em 31-12-1966, o citado Prelado concedeu ao Cerco do Porto o estatuto de “quasi-paróquia” e em 30 -12-1972, D. António Ferreira Gomes criou formalmente a Paróquia da Senhora do Calvário, com sede na capela construída no Bairro. Em 26 de Outubro de 1968, foi inaugurado o Centro Social do Bairro do Cerco do Porto, “ primeiro e modelo duma série de Centros Sociais a serem implantados nos Bairros Camarários”, por ocasião de uma visita ao Porto do Presidente da República Almirante Américo Tomás (…) Das 170 crianças, a maioria (70) estão no ATL, sendo 40 da Creche e 60 do Jardim-de-Infância. (…) São 128 Idosos: 40 em Centro de Dia, outros 40 no Centro de Convívio e 48 em Apoio Domiciliário (todos os dias da semana).”
(Voz Portucalense, 31 de Janeiro de 2007)
Fiquei muito satisfeito, passados estes anos todos, ao ver em pleno vigor uma Obra que ajudei a criar e à qual dediquei 11 lindos anos da minha juventude, dos 25 aos 36 anos (de Abril de 1964 a Abril de 1975). E assim nasceu este texto sobre a "Obra Diocesana de Promoção Social da Cidade do Porto".
Nesta minha primeira incursão pelos terrenos da memória, para além de alguns esclarecimentos pessoais, irei transcrever documentos da época com a ajuda do livro “ Para a História da Diocese do Porto – Dom Florentino de Andrade e Silva”, escrito pelo António Teixeira Fernandes com quem, no início da Obra, partilhei preocupações uma vez que ele era o sacerdote responsável pelo Secretariado Diocesano de Acção Social.
A OBRA E O SECRETARIADO
A Obra dos Bairros nasceu no âmbito do Secretariado Diocesano de Acção Social, “servido por dedicados elementos da Acção católica, dos Cursos de Cristandade e de outras Obras, em estreita colaboração com as Assistentes Sociais”, criado, em 1963, embora só em 1966 tivesse a sua erecção canónica, pelo D. Florentino. Na Direcção do Secretariado, o Pe. Teixeira Fernandes, secretário do D. Florentino, era acompanhado pelo Dr. Pedro Cunha, Professor da Faculdade de Economia e pela D. Julieta Cardoso, Directora do Instituto de Serviço Social do Porto. Quando se verificou que a acção junto dos bairros camarários exigia uma obra vocacionada exclusivamente para esse efeito, foi criada a Obra dos Bairros que se autonomizou do Secretariado, embora em íntima conexão. Foi nessa data que o Senhor Bispo me chamou para ficar como sacerdote responsável pela Obra. E, como o primeiro trabalho de campo da Obra realizou-se no Bairro do Cerco, o maior bairro à época, que estava a ser ocupado nessa altura, eu fui viver para o bloco 15 desse bairro, sem descurar a restante actividade da Obra que, pouco a pouco, ia alargando a sua acção a outros bairros camarários. A sede da Obra era na Avenida Rodrigues de Freitas nas instalações do Instituto de Serviço Social do Porto. Na acção concreta, nunca senti qualquer dependência do Secretariado. A criação do Secretariado/Obra resultou do encontro de duas vontades: a do Senhor D. Florentino, desejoso de “promover, pelo exercício de um apostolado integral, a elevação humana e cristã das famílias e populações mais desfavorecidas” e a do Senhor Dr. Nuno Pinheiro Torres, Presidente da Câmara Municipal do Porto, um humanista, preocupado com as populações desenraizadas e deslocadas para novos bairros camarários “porque não basta dar casa às pessoas, é preciso dar alma”, como ele me dizia em conversa particular, “ e isso a Câmara não pode dar, será essa a função da Obra com o nosso apoio.” E o apoio não faltou até que um acidente brutal de carro, na zona da Branca em Oliveira de Azeméis, lhe roubou a vida, quando regressava de uma reunião com o Governo em Lisboa. Depois, as coisas complicaram-se…
Quanto à distinção entre Secretariado Diocesano de Acção Social e Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto ela foi-se tornando notória não apenas nos seus objectivos (Acção Social/Promoção Social) mas também no que concerne ao âmbito de sua acção (Diocese do Porto/ Cidade do Porto). Eu nunca fui do Secretariado e pertenci à Obra desde o seu primeiro momento. Quando o Senhor D. António regressou à sua Diocese, extinguiu o Secretariado mas acarinhou a Obra, mantendo-me como sacerdote responsável, limitando-se a substituir a Direcção que, entre outros, passou a integrar a D. Elisa Acceioli Barbosa como Presidente, o Dr. Francisco Sá Carneiro, o Arquitecto Fernando Távora e o Dr. Silva Carneiro que transitou da direcção anterior.
A OBRA E A IMPRENSA DA ÉPOCA
A Obra iniciou o seu trabalho em Abril de 1964, e ainda em 17 de Outubro desse ano, a Voz do Pastor, jornal oficioso da Diocese (mais tarde substituída pela Voz Portucalense), afirmava, “ por enquanto, o Secretariado ainda dispõe somente da Obra dos Bairros (e já não é pouco!), mas novas secções surgirão oportunamente”. E acrescentava “ o Bairro do Cerco do Porto foi o primeiro a beneficiar mais amplamente da benemérita Obra: todo o trabalho está coordenado por uma equipa de acção, constituída por um sacerdote, Rev.Pe. João, uma assistente social e leigos.
Conforme se auscultavam as necessidades das populações, assim se criavam várias comissões de trabalho, como as que seguem:
- Comissão para a instalação de telefone e marco de correio.
- Comissão de Missa e Catequese.
- Comissão para a instalação de um mercado.
- Comissão para um posto de enfermagem e creche.
- Comissão para o estudo e obtenção de transportes, e ainda uma comissão de fundo de auxílio, esta com características inovadoras e com o objectivo de subvencionar as famílias que por um equilíbrio orçamental não culpável e aprovado, não puderem pagar o aluguer da casa que habitam. Esta comissão funciona com um carácter mutualista em que os interessados neste benefício devem contribuir mensalmente com uma certa quantia, reservando-se-lhes o direito de ser subvencionado nos casos em que o auxílio deva ser dado. Assim o benefício é-o por um direito e não por um acto de caridade, o que é muito mais deprimente.
Todo este desenvolvimento comunitário tem como características primordiais as seguintes:
- Todo o trabalho é feito pela própria população e da sua responsabilidade, com a devida ajuda de animadores estranhos ao bairro e a coordenação de um sacerdote e duma assistente social.
- Todo o trabalho é baseado nas actividades da população e enquadrado nas estruturas já existentes.
Como começaram os trabalhos das comissões e qual o seu futuro?
Foram convidadas todas as famílias a assistirem a reuniões preparatórias e a exporem os problemas da comunidade. À medida que se apuravam as necessidades mais importantes, assim se criaram comissões para cada grupo de necessidades semelhantes. Cada comissão é assistida dum animador, um leigo exterior à população e que poderá mais tarde desligar-se dela por o seu trabalho ter sido concluído ou por auto-suficiência da proporia comissão. Surgiram assim as comissões que nos referimos atrás.
São estes os magníficos e fecundos trabalhos que actualmente decorrem no populoso Bairro do Cerco do Porto”
A mesma Voz do Pastor, em 15 de Maio de 1965, ao mesmo tempo que afirma que” a Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros do Porto continua a desenvolver extraordinária actividade junto dos aglomerados populacionais, designadamente no Cerco, Fonte da Moura, Amial e S. Roque da Lameira” noticia a inauguração de um Posto de Enfermagem no Bairro do Cerco do Porto, “ graças ao magnífico trabalho desenvolvido pelo Padre João” e o articulista depois de anunciar a inauguração de “uma exposição que documentará o trabalho já efectuado e projectado para o futuro pelo respectivo Centro Social”, acrescentava que se trata de “Obra de extraordinário alcance a que está a ser promovida nos bairros populares desta cidade, ela bem merece o carinho e o auxílio de todas as entidades”. Pode parecer vanglória mas não é. E se for? Não teremos o direito de nos orgulharmos daquilo fazemos/fizemos? Desculpem a imodéstia, mas sabe muito bem recordar essas notícias que me remetem para os tempos primordiais de uma Obra e de um sacerdócio. E sabe ainda melhor por constatar a visão da Sociedade e da Igreja que, já então, compartilhava.
O CARÁCTER INOVADOR DA OBRA
Para realçar este carácter inovado da Obra, chamo a atenção para o seu nome, o seu âmbito de acção e o papel dos leigos.
A. O nome. Se repararmos, vemos como foi mudando. Começou por ser a “Obra dos Bairros” (e eu era o Pe. João dos Bairros – um dia recebi uma carta enviada por um sacerdote de Vila Real com o único endereço de “ Rev. Senhor Padre João dos Bairros - Porto”). Depois, começou a chamar-se “Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros do Porto” e acabou por receber o seu nome definitivo com a aprovação dos seus estatutos e o reconhecimento da sua personalidade jurídica por parte do Estado “ Por despacho de S. Exa o Ministro da Saúde e assistência de 17 do corrente: Aprovados os estatutos por que é criada e deverá reger-se a instituição de assistência particular denominada “Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto”, os quais contêm 27 artigos, distribuídos por 5 capítulos” (Diário do Governo, 17 de Abril de 1967, nº 106, III Série)
A Voz do Pastor indicava como objectivos da Obra: “Promover a valorização social dos grupos humanos em que exerce a sua actividade, consciencializando-os das suas potencialidades e levando-os a desenvolvê-las no sentido de dar resposta a algumas das necessidades sentidas na comunidade em que estão integrados, por exº. os bairros” e acrescentava “ a Obra exerce a sua actividade nas seguintes zonas: Cerco do Porto, S. Roque, Fonte da Moura, Pasteleira, rainha D. Leonor, amial, S. João de Deus” (Voz do Pastor, 21 e 15 de Novembro de 1967).
“ Em causa estava o desenvolvimento harmonioso e integral do homem, ao ritmo do próprio homem inserido em sociedade, reconhecendo-se às pessoas a sua natureza de pessoas, isto é, de sujeitos activos da sua própria história. Recusava-se o assistencialismo, como patologia das sociedades estruturalmente injustas. Punha-se de lado todas as formas de dependência que este tipo de acção, como seu efeito perverso, pudesse gerar. (…) Não dava origem nem a servidões nem a subserviências. Com a promoção, pretendia-se colocar as pessoas em situação de autonomia, desenvolvendo nelas a capacidade para serem e estarem na sociedade do seu tempo, com o estatuto de verdadeira cidadania.”
Hoje, ao reler todo este articulado, relembro as constantes deslocações a Lisboa e compreendo as dificuldades por que passámos. Como foi difícil (e pergunto-me como foi possível?) conseguir que o Senhor Ministro da Saúde e Assistência aprovasse um Obra de “Promoção Social “. No próprio documento da sua constituição, verifica-se alguma ambiguidade. Chama-lhe “instituição de assistência”. Não havia lugar para a “promoção social”. Como foi possível o Governo de Salazar dar personalidade jurídica a uma Obra que tinha por objectivo “ Promover a valorização social dos grupos humanos… consciencializando-os das suas potencialidades…”?. A Obra Diocesana era caso único no País. Não era de assistência, mas sim de promoção social. Desenvolvia uma actividade comunitária em que eram os próprios cidadãos os fautores do seu desenvolvimento. Eram incómodos para os poderes instituídos: estavam conscientes das suas necessidades e reclamavam os seus direitos. Os “pobres” eram agentes da sua própria transformação, do seu engrandecimento como comunidade. Esta aprovação, penso, só foi possível porque nós, a D. Julieta Cardoso e eu, tínhamos, como interlocutora na Direcção-Geral de Assistência, a Dra. Manuela Silva (companheira da Eng. Lurdes Pintasilgo no movimento do Graal) que compreendeu os nossos objectivos e nos apoiou junto do Director-Geral, Dr. Carvalho da Fonseca. E deve-se também à extraordinária capacidade argumentativa da D. Julieta Cardoso que, numa figura discreta, escondia uma inteligência brilhante e uma cultura fora de série.
Esta mesma ambiguidade se verifica nas notícias com que iniciei este texto. O jornal Destak
fala em obra de “solidariedade social” e a V.P refere-se à "Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros da Cidade do Porto”.
É que, de facto, a vertente de promoção social, que tanto custou a ganhar e que constituía o traço identificador da Obra, parece ter caído no esquecimento. Neste aspecto tão importante, deu-se um retrocesso.
B. Âmbito territorial da Obra. Não foi só por ser uma obra de “Promoção Social” que tivemos dificuldades. Também o âmbito de acção da Obra foi motivo de discussão junto do Governo e da Câmara: nasceu como sendo “Obra dos Bairros”, passou a ser de Acção Social nos Bairros do Porto, e acabou por alargar o seu âmbito a toda a cidade do Porto (Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto”). E tudo isto não foi mera coincidência ou acaso. Sempre quisemos que os bairros não fossem “ guetos” e se integrassem no conjunto habitacional onde se inseriam. Por isso, a Obra não podia limitar-se aos Bairros. Razão tinha a Voz do Pastor ao falar em “ aglomerados populacionais” e “zonas” e não em bairros.
C. Os leigos na Igreja. O nascimento e a caracterização da Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época: a década de sessenta, nos tempos do Vaticano II.
A Obra era eclesial mas não era clerical. Era de leigos, dirigida por leigos. Ainda me lembro da dificuldade que tivemos em enquadrar a presença de um sacerdote dentro dos estatutos do Obra. Não queríamos que fosse um assistente religioso, (porque não era), também não queríamos que fosse um director e muito menos o presidente. Era uma Obra da Igreja que nascia por iniciativa do Prelado da Diocese. Como o Vaticano II defendia, havia que dignificar a função dos leigos num campo especificamente seu. Logo a Direcção seria constituída apenas por leigos. (E assim foi durante todo o tempo em que nela trabalhei. Até à criação formal da Obra, não havia uma direcção propriamente dita: era dirigida pela D. Julieta Cardoso, e por mim, com a ajuda da assistente social coordenadora. Com a aprovação dos Estatutos, foi empossada a sua primeira Direcção que, entre outros, teve como Presidente o Dr. Victor Capucho e como tesoureiro o Eng. Silva Resende, sobrinho do D, Florentino. Posteriormente, a presidente foi a D. Maria Elisa Acceioli Barbosa)
Mas, como obra diocesana, deveria haver junto da Direcção um sacerdote responsável, que faria a ponte entre a Obra e o Prelado da Diocese. E foi assim que ficou nos estatutos.
Ainda me recordo de um dia o D. Florentino, num dos encontros que semanais, me chamar a atenção: “ Sabe Pe. João, a Obra tem feito um belíssimo trabalho, estou muito satisfeito, mas não aparece como obra da Igreja.” - "Senhor D. Florentino, qual a finalidade da Obra, é a promoção social das pessoas rumo à sua autonomia ou visa gerar dependências em relação à Igreja? O que é preciso para que se afirme como Igreja, a presença do Senhor Bispo em muitas inaugurações? A afirmação de que quem manda é o sacerdote? Não são cristãos os leigos que presidem à Direcção da Obra e os que trabalham junto das populações? A dignificação da pessoa humana não é um dos objectivos mais importantes desta Obra? Se o Senhor Bispo quiser, eu falo com a Direcção, mas não me parece bem. Não vejo a Obra ao serviço do proselitismo eclesiástico, até porque o dinheiro da Obra vem todo dos poderes políticos, Câmara e Governo…. –" Não, está bem. Que a Obra continue na sua missão." E assim continuou pelo menos enquanto eu tive responsabilidades (que só terminaram quando deixei o exercício do sacerdócio).
A este propósito, recordo ainda o confronto de opiniões entre mim e o D. Florentino quando tivemos que estabelecer os primeiros ordenados dos trabalhadores da Obra, assistentes sociais, educadoras de infância, auxiliares de educação etc.. Depois de ouvir a opinião da D. Julieta Cardoso e da Assistente Social coordenadora, D. Maria Augusta Trigo, apresentei uma proposta ao senhor Bispo que me disse: - "Mas, Pe. João, isso é muito, as pessoas na Igreja trabalham por apostolado e por dedicação… "- "Senhor Bispo, não me diga que a Igreja quer fazer Caridade à custa da Justiça. Sem dúvida que as pessoas que trabalham na Obra têm de o fazer como um apostolado e por dedicação, mas, sabe, Senhor Bispo, quando vão à mercearia buscar os alimentos para os seus filhos, não pagam com o “apostolado” e com a “dedicação”, precisam de dinheiro…" E o senhor Bispo acabou por aceitar a proposta que eu levava. Era um bom homem. Sabia ouvir…
Por tudo isto e apesar de louvar todo o trabalho da Obra ao longo destas quatro décadas, com a abertura a novos bairros camarários e de novos serviços, lamento que ela não tenha explorado a vertente da promoção social, que, ao tempo, foi uma “lança em África”, tenha perdido o trabalho comunitário e, por outro lado, se tenha confinado aos bairros e não tenha alargado a sua acção para outras zonas da cidade. Lamento ainda que possa aparecer demasiadamente como obra clerical – a notícia do Destak era ilustrada com uma fotografia de uma celebração eucarística. No meu tempo… isto nunca aconteceria.
DOIS ESCLARECIMENTOS …
A este propósito, recordo ainda o confronto de opiniões entre mim e o D. Florentino quando tivemos que estabelecer os primeiros ordenados dos trabalhadores da Obra, assistentes sociais, educadoras de infância, auxiliares de educação etc.. Depois de ouvir a opinião da D. Julieta Cardoso e da Assistente Social coordenadora, D. Maria Augusta Trigo, apresentei uma proposta ao senhor Bispo que me disse: - "Mas, Pe. João, isso é muito, as pessoas na Igreja trabalham por apostolado e por dedicação… "- "Senhor Bispo, não me diga que a Igreja quer fazer Caridade à custa da Justiça. Sem dúvida que as pessoas que trabalham na Obra têm de o fazer como um apostolado e por dedicação, mas, sabe, Senhor Bispo, quando vão à mercearia buscar os alimentos para os seus filhos, não pagam com o “apostolado” e com a “dedicação”, precisam de dinheiro…" E o senhor Bispo acabou por aceitar a proposta que eu levava. Era um bom homem. Sabia ouvir…
Por tudo isto e apesar de louvar todo o trabalho da Obra ao longo destas quatro décadas, com a abertura a novos bairros camarários e de novos serviços, lamento que ela não tenha explorado a vertente da promoção social, que, ao tempo, foi uma “lança em África”, tenha perdido o trabalho comunitário e, por outro lado, se tenha confinado aos bairros e não tenha alargado a sua acção para outras zonas da cidade. Lamento ainda que possa aparecer demasiadamente como obra clerical – a notícia do Destak era ilustrada com uma fotografia de uma celebração eucarística. No meu tempo… isto nunca aconteceria.
DOIS ESCLARECIMENTOS …
Muitas outras coisas terei para dizer sobre a Obra mas deixo-as para outra data. No entanto, quereria explicitar duas das informações presentes na notícia da Voz Portucalense que comecei por transcrever.
“D. António Ferreira Gomes criou formalmente a Paróquia da Senhora do Calvário, com sede na capela construída no Bairro” Não corresponde totalmente à verdade porque a sede da Paróquia não era apenas a capela do Bairro do Cerco do Porto dedicada a Nossa Senhora do Calvário. A Igreja paroquial funcionava simultaneamente na Capela da Senhora do Calvário do Bairro do Cerco e na Capela da Senhora da Paz no Bairro de S. Roque da Lameira. As pessoas escolhiam onde queriam casar ou baptizar os filhos e, nos livros de registo, constava sempre:… na igreja paroquial da paróquia de Nossa Senhora do Calvário. Enquanto a capela da Senhora do Calvário fora construída de raiz, a da Senhora da Paz foi uma adaptação das arrecadações dos Serviços de Jardinagem da Câmara do Porto. Esta autorização dada pelo Senhor D. Florentino, ao criar a “Paróquia Experimental”, foi mantida pelo D. António quando erigiu canonicamente a Paróquia de Nossa Senhora do Calvário. Esta especificidade deveu-se ao facto de eu querer evitar conflitos entre dois sectores bem diferenciados da paróquia: o Cerco do Porto e S. Roque da Lameira. A autorização só duraria enquanto não fosse construída uma igreja de raiz num terreno já prometido pelo Dr. Nuno Pinheiro Torres, presidente da Câmara do Porto que me tinha prometido que mo venderia ao preço simbólico de um escudo por metro quadrado. Por essa razão, nós já tínhamos pedido à Câmara para dar o nome de Nossa Senhora do Calvário à nova rua aberta com a construção das escolas do Cerco do Porto, frente às quais iria ser construída a nova igreja. E o nome foi dado…E lá está.
"Em 26 de Outubro de 1968, foi inaugurado o Centro Social do Bairro do Cerco do Porto, “ primeiro e modelo duma série de Centros Sociais a serem implantados nos Bairros Camarários” .
O que aconteceu foi o seguinte. A Câmara ao projectar os Bairros logo incluía a construção de um centro social, previamente desenhado e que seria igual em todos os bairros. Quando iniciámos o trabalho no Cerco, começámos a ocupar várias caves dos blocos que a Câmara cedia gratuitamente à Obra. Porém, havia necessidade de juntar as diversas actividades num único local até porque a Câmara precisava dos espaços que a Obra ocupava. Ao analisarmos o projecto do Centro Social já previamente definido pela Câmara, vimos que esse edifício não satisfazia as necessidades. Logo entabulámos negociações com a Câmara onde se digladiavam duas facções: uma que nos apoiava, formada pelo senhor Presidente, Dr. Nuno Pinheiro Torres e pelo Dr. Carlos Lobo, Director dos Serviços Centrais e Culturais em quem o Presidente delegara competências para dialogar com a Obra; e outra que se nos opunha, formada pelo senhor Vice-Presidente, Engenheiro Vasconcelos Porto e pelo Eng. Luís de Noronha e Távora, Director da Direcção de Habitação de quem dependiam os bairros camarários. A situação era complicada porque o Centro Social de que necessitávamos implicava um investimento muito superior ao previsto. Estávamos nós em negociações, quando o Vice-presidente, aproveitando umas férias do Presidente, enviou para o Ministério da Saúde e Assistência o projecto inicial para aprovação. Quando o Presidente regressou, deparou-se com um facto consumado e, não querendo entrar em conflito com o seu Vice, informou-nos que já nada havia a fazer…
Acontece, porém, que a Obra recebeu um convite do Senhor Director-Geral da Assistência para uma reunião em Lisboa em que ele queria ouvir a opinião de diversas instituições a propósito de um assunto que tinha entre mãos. Já não me lembro qual, porque eu e a D. Julieta logo pensámos em aproveitar esse encontro para falar particularmente, com o apoio da Dr. Manuela Silva, sobre o Centro Social. Para isso, munimo-nos de estatísticas sobre o número de crianças e jovens que tínhamos no bairro, fizemos uma pequena resenha dos serviços que já estavam em funcionamento. A reunião seguiu os seus trâmites. No fim, quando o senhor Director-Geral nos viu, disse-nos: - "por favor, agradeço que esperem um bocadinho por mim porque gostaria de saber a vossa opinião sobre um assunto de que o senhor Ministro me incumbiu. "Nós sorrimo-nos e bendissemos aquele inesperado pedido. Aguardámos. Qual não foi o nosso espanto quando o Senhor Director desdobra na nossa frente o projecto do Centro Social do Cerco, pedindo-nos a nossa opinião sobre a sua aprovação. Ele ignorava que o centro, embora construído pela Câmara, era para nosso serviço. E então perguntávamos: Senhor Doutor, a creche que aí está prevista é para quantas crianças? E ele respondia (já não sei ao certo): quarenta. E nós informávamos: pelo inquérito feito, há no bairro cerca de duzentas (os números não são exactos…). E a sala de estudo? E o Centro de Convívio? E onde vai funcionar o centro de jovens? E? E?... Conclusão do Director-Geral: -Então isto não chega para nada. – Não chega, não. Para fazer isto, é melhor não fazer nada… - Vai ser um problema. Eu não posso indeferir… Já sei ! Vou convocar uma reunião com a Câmara e convosco. E eu vou ao Porto. E vocês apresentam estes números. Está certo? Concordámos imediatamente.
Uns dias mais tarde, recebemos a convocatória para a reunião na Câmara. O senhor Director-Geral começou por explicar os motivos daquela reunião, não fazendo qualquer referência ao nosso encontro em Lisboa. Depois de descrever todo o projecto, perguntou-nos a nossa opinião. Nós esclarecemo-lo como se fora a primeira vez. Quando ele concluiu que o Centro Social projectado não satisfazia as necessidades do Bairro nem da nossa actividade, o Engenheiro Távora, com uma “granda lata”, desculpem o plebeísmo, diz: - Senhor Director-Geral, como sabe, nós somos engenheiros, percebemos de edifícios mas nada sabemos sobre os problemas sociais… Se não serve, é preciso projectar outro centro, não acha, senhor Presidente? – "Penso que sim. Vamos arranjar um novo projecto. "( Nós entreolhámo-nos, sorrimos, mas nada dissemos).
E assim foi. Fez-se um novo projecto. E de um orçamento previsto de 400 contos, o novo Centro Social passou para mais de 2.000 contos. Houve, no entanto, um caso em que o Engenheiro Távora não cedeu. Nós não queríamos que o centro fosse instalado no meio do bairro, onde estava previsto e onde acabou por ser implantado. A Câmara argumentava que não tinha terreno disponível noutro local. Nós queríamos que o centro ficasse junto do bairro mas fora dele para favorecer a integração do bairro na zona habitacional antiga e permitir um convívio de pessoas do e de fora bairro. Considerávamos isso muito importante para se evitar a formação de “guetos”, mas não conseguimos. No fundo, foi a capela que desempenhou essa função integradora. Foi toda uma acção junto da população das redondezas para frequentarem o Centro Social do Bairro. As filhas do meu amigo Freitas Soares foram as primeiras crianças de fora do bairro a frequentarem o Centro Social. Como estratégia, no início de cada ano lectivo, a Assistente Social ia às missas falar sobre o Centro Social. Ainda há pouco tempo, a Assistente Social, D. Dulce, me falou do acanhamento que sentia quando, no final das missas, subia ao altar para falar sobre as actividades do Centro Social…
Tempos maravilhosos!... MAIS QUE UTOPIA!...
Acontece, porém, que a Obra recebeu um convite do Senhor Director-Geral da Assistência para uma reunião em Lisboa em que ele queria ouvir a opinião de diversas instituições a propósito de um assunto que tinha entre mãos. Já não me lembro qual, porque eu e a D. Julieta logo pensámos em aproveitar esse encontro para falar particularmente, com o apoio da Dr. Manuela Silva, sobre o Centro Social. Para isso, munimo-nos de estatísticas sobre o número de crianças e jovens que tínhamos no bairro, fizemos uma pequena resenha dos serviços que já estavam em funcionamento. A reunião seguiu os seus trâmites. No fim, quando o senhor Director-Geral nos viu, disse-nos: - "por favor, agradeço que esperem um bocadinho por mim porque gostaria de saber a vossa opinião sobre um assunto de que o senhor Ministro me incumbiu. "Nós sorrimo-nos e bendissemos aquele inesperado pedido. Aguardámos. Qual não foi o nosso espanto quando o Senhor Director desdobra na nossa frente o projecto do Centro Social do Cerco, pedindo-nos a nossa opinião sobre a sua aprovação. Ele ignorava que o centro, embora construído pela Câmara, era para nosso serviço. E então perguntávamos: Senhor Doutor, a creche que aí está prevista é para quantas crianças? E ele respondia (já não sei ao certo): quarenta. E nós informávamos: pelo inquérito feito, há no bairro cerca de duzentas (os números não são exactos…). E a sala de estudo? E o Centro de Convívio? E onde vai funcionar o centro de jovens? E? E?... Conclusão do Director-Geral: -Então isto não chega para nada. – Não chega, não. Para fazer isto, é melhor não fazer nada… - Vai ser um problema. Eu não posso indeferir… Já sei ! Vou convocar uma reunião com a Câmara e convosco. E eu vou ao Porto. E vocês apresentam estes números. Está certo? Concordámos imediatamente.
Uns dias mais tarde, recebemos a convocatória para a reunião na Câmara. O senhor Director-Geral começou por explicar os motivos daquela reunião, não fazendo qualquer referência ao nosso encontro em Lisboa. Depois de descrever todo o projecto, perguntou-nos a nossa opinião. Nós esclarecemo-lo como se fora a primeira vez. Quando ele concluiu que o Centro Social projectado não satisfazia as necessidades do Bairro nem da nossa actividade, o Engenheiro Távora, com uma “granda lata”, desculpem o plebeísmo, diz: - Senhor Director-Geral, como sabe, nós somos engenheiros, percebemos de edifícios mas nada sabemos sobre os problemas sociais… Se não serve, é preciso projectar outro centro, não acha, senhor Presidente? – "Penso que sim. Vamos arranjar um novo projecto. "( Nós entreolhámo-nos, sorrimos, mas nada dissemos).
E assim foi. Fez-se um novo projecto. E de um orçamento previsto de 400 contos, o novo Centro Social passou para mais de 2.000 contos. Houve, no entanto, um caso em que o Engenheiro Távora não cedeu. Nós não queríamos que o centro fosse instalado no meio do bairro, onde estava previsto e onde acabou por ser implantado. A Câmara argumentava que não tinha terreno disponível noutro local. Nós queríamos que o centro ficasse junto do bairro mas fora dele para favorecer a integração do bairro na zona habitacional antiga e permitir um convívio de pessoas do e de fora bairro. Considerávamos isso muito importante para se evitar a formação de “guetos”, mas não conseguimos. No fundo, foi a capela que desempenhou essa função integradora. Foi toda uma acção junto da população das redondezas para frequentarem o Centro Social do Bairro. As filhas do meu amigo Freitas Soares foram as primeiras crianças de fora do bairro a frequentarem o Centro Social. Como estratégia, no início de cada ano lectivo, a Assistente Social ia às missas falar sobre o Centro Social. Ainda há pouco tempo, a Assistente Social, D. Dulce, me falou do acanhamento que sentia quando, no final das missas, subia ao altar para falar sobre as actividades do Centro Social…
Tempos maravilhosos!... MAIS QUE UTOPIA!...
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