O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, junho 08, 2007

ESPAÇO SOLIDÁRIO

ENTREVISTA PARA “ESPAÇO SOLIDÁRIO”
REVISTA DA ODPS

- Como se deu o início da Obra Diocesana? Lembra-se como tudo aconteceu?

As Obras como as pessoas não nascem, vão nascendo... Foi o que aconteceu com a Obra Diocesana: foi nascendo, está nascendo...
A Obra dos Bairros nasceu no âmbito do Secretariado Diocesano de Acção Social, criado por D. Florentino, em 1963. Na Direcção do Secretariado, o Pe. Teixeira Fernandes, secretário de D. Florentino, era acompanhado pelo Dr. Pedro Cunha, Professor da Faculdade de Economia e pela D. Julieta Cardoso, Directora do Instituto de Serviço Social do Porto. Quando se verificou que a acção junto dos bairros camarários exigia uma obra vocacionada exclusivamente para esse efeito, foi criada a Obra dos Bairros que, pouco a pouco, se foi autonomizando do Secretariado, embora mantivesse uma íntima conexão. Foi nessa data que o Senhor Bispo me chamou para ficar como sacerdote responsável pela Obra. O primeiro trabalho de campo da Obra iniciou-se, na Páscoa de 1964, no Bairro do Cerco, o maior bairro à época, que estava a ser ocupado nessa altura. Em Outubro desse ano, fui viver para o bloco 15 desse bairro, sem descurar a restante actividade da Obra que, pouco a pouco, ia alargando a sua acção a outros bairros camarários. A sede da Obra era na Avenida Rodrigues de Freitas nas instalações do Instituto de Serviço Social do Porto. Na acção concreta, nunca senti qualquer dependência do Secretariado. Mas, na teoria, tudo o que a Obra realizava era atribuído ao Secretariado, como se pode verificar na notícia publicada, em 17 de Outubro desse ano, pela “ Voz do Pastor”: “ por enquanto, o Secretariado ainda dispõe somente da Obra dos Bairros ( ...) O Bairro do Cerco do Porto foi o primeiro a beneficiar mais amplamente da benemérita Obra: todo o trabalho está coordenado por uma equipa de acção, constituída por um sacerdote, Rev.Pe. João, uma assistente social e leigos.”
A partir dessa data, a Obra foi alargando o seu âmbito de acção. E assim, em Novembro de 1967, já estava a trabalhar com as populações de S. Roque da Lameira/Machado Vaz, Fonte da Moura, Pasteleira, Rainha D. Leonor, Regado, S. João de Deus.
Ao mesmo tempo ia afirmando o seu carácer inovador em termos de acção social. Mais do que uma obra de assistência social, ela queria-se uma obra de promoção social . Quando iniciava o seu trabalho num bairro, começava por reunir com os moradores, levava-os a explicitar as suas necessidades e motivava-os a formarem, com o apoio da Obra, comissões para resolverem esses mesmos problemas. Procurava consciencializá-los das suas potencialidades no sentido de desenvolver-se um verdadeiro trabalho comunitário. E as pessoas aderiam com entusiasmo e as comissões nasciam. E os problemas iam-se resolvendo. Cada comissão era formada por vários moradores. No bairro do Cerco, estes começaram por ser apoiados por um colaborador da Obra, exterior ao bairro.
Uma técnica de serviço social prestava toda a ajuda necessária ao trabalho das comissões. Não posso deixar passar este momento sem prestar uma homenagem sincera e inteiramente devida a todas as assistentes sociais que, no meu tempo, trabalharam na Obra. Sem elas, nada se teria feito. Muitos nomes me assaltam a memória mas, porque não quero cometer a injustiça de esquecer alguma, vou citar apenas o nome daquela que foi a primeira a trabalhar comigo e a quem muito devo, a D. Maria Augusta Negreiros. Extraordinária. As outras que me desculpem.
No caso concreto do Cerco do Porto, foram criadas as seguintes comissões:
* Comissão de Centro de Convívio- para arranjar e dinamizar um espaço onde as pessoas pudessem conviver, criando relações de amizade - e assim nasceu o Centro de Convívio ( como era agradável ir até lá tagarelar com os amigos...);
* Comissão de Salas de Estudo - cuja finalidade era criar salas onde as crianças pudessem ser acompanhadas nos tempos em que não estivessem na escola, retirando-as à influência maléfica da rua – a sala de estudo foi organizada e organizaram-se colónias de férias no campo (Valongo e Baltar) e na praia.
* Comissão do Posto de Enfermagem - para apoiar todas as pessoas do bairro que precisassem dos seus serviços- e o posto de enfermagem foi uma realidade.
* Comissão Fundo de Auxílio Mútuo - para ajudar quem, por motivos imprevistos, chegava ao fim do mês sem dinheiro para pagar a renda – e o Fundo de Auxílio livrou muita gente de aflições.
* Comissão de Marco do Correio e Telefone - para forçar as entidades responsáveis a colocar um marco de correio e uma cabine telefónica (ainda não havia telefones particulares no bairro porque não se instalavam enquanto não houvesse um telefone público)- e o marco foi colocado e a cabine instalada junto do bloco 15.
* Comissão do Mercado - para arranjar um local onde as pessoas pudessem comprar o que precisavam quando vinham do trabalho, sem termos o triste espectáculo das vendedeiras a fugir da polícia- e o mercado foi construído mas, por casmurrice da Câmara, num local totalmente contrário aos interesses dos moradores e, por isso, nunca funcionou.
* Comissão de Higiene e Limpeza - para velar pela limpeza do bairro – e lá se conseguiu que a Câmara reforçasse o número dos funcionários de limpeza e fizeram-se campanhas de higiene junto da população.
* Comissão de Transportes- para se conseguir que os transportes colectivos viessem ao bairro- não se conseguiu imediatamente mas o Presidente da Câmara comprometeu-se a criar uma nova carreira logo que fosse possível – nessa ocasião iniciou-se a carreira 88 da Circunvalação que já era útil ao bairro.
* Comissão de Missa e Catequese - que providenciaria para arranjar um local onde as crianças pudessem ter catequese e os praticantes pudessem ir à missa- e a catequese começou a funcionar no ano seguinte e a primeira missa foi celebrada por D. Florentino com a presença do Dr. Nuno Pinheiro Torres, no dia 15 de Agosto de 64, ao ar livre em frente ao bloco 19. E a partir dessa data, a missa passou a ser celebrada todos os domingos no átrio da escola masculina do bairro. E daí nasceu a nova Paróquia de Nossa Senhora do Calvário.
Que entusiasmo! Que alegria! Era toda uma comunidade em movimento. Tempos inesquecíveis. Os moradores sentiam-se promotores do seu próprio desenvolvimento.

A Obra, no plano jurídico, nasceu em 17 de Abril de 1967, quando o Diário do Governo publicou o despacho do Ministro da Saúde e Assistência que aprovava os estatutos da “Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto”.
Ainda hoje me interrogo: como foi possível o Governo de Salazar dar personalidade jurídica a uma Obra que tinha por objectivo promover a valorização social dos grupos humanos… consciencializando-os das suas potencialidades? A Obra Diocesana era caso único no País. Não era de assistência, mas sim de promoção social. Desenvolvia uma actividade comunitária em que eram os próprios cidadãos os autores do seu desenvolvimento. Eram incómodos para os poderes instituídos: estavam conscientes das suas necessidades e reclamavam os seus direitos. Os “pobres” eram agentes da sua própria transformação, do seu engrandecimento como comunidade. A aceitação do nome da Obra por parte do Governo deveu-se à extraordinária sagacidade argumentativa da D. Julieta Cardoso e à cumplicidade ( cobertura / apadrinhamento) que encontrámos por parte da alta funcionária do Ministério que era nossa interlocutora nas diversas reuniões que precederam a aprovação dos Estatutos. Seu nome é Drª. Manuela Silva. Não foi só por ser uma obra de “Promoção Social” que tivemos dificuldades. Também o âmbito de acção da Obra foi motivo de discussão junto do Governo e da Câmara: nasceu como sendo “Obra dos Bairros”, passou a ser de “Acção Social nos Bairros do Porto”, e acabou por alargar o seu âmbito a toda a cidade do Porto (Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto”). E tudo isto não foi mera coincidência ou acaso. Sempre quisemos que os bairros não se transformassem em “ guetos” e se integrassem no conjunto habitacional onde se inseriam. Por isso, a Obra não podia limitar-se aos Bairros. Gostávamos de falar em “ aglomerados populacionais” e “zonas” e não em “bairros”.

- Quais foram os principais motivos do seu surgimento?

A Obra é um produto dos anos sessenta. A sua criação resultou do encontro de duas vontades: a do Senhor D. Florentino, desejoso de cuidar das populações mais desfavorecidas, e a do Senhor Dr. Nuno Pinheiro Torres, Presidente da Câmara Municipal do Porto, um humanista, preocupado com as populações desenraizadas e deslocadas para novos bairros camarários “porque não basta dar casa às pessoas, é preciso dar alma”, como ele me dizia em conversa particular, “ e isso a Câmara não pode dar, será essa a função da Obra com o nosso apoio.” Em consequência, a Câmara na sua reunião de 16 de Junho de 1964 decidiu confiar o encargo com a assistência social aos moradores dos bairros camarários a um organismo de carácter diocesano, mediante a comparticipação financeira do Município.
D. Florentino, na provisão que cria o Secretariado Diocesano de Acção Social, reconhece que este resultou do “conhecimento das carências sociais do nosso meio; a título e exemplo, ter em vista os desalojados das ilhas que foram habitar os novos bairros camarários”
O desfazer das “ilhas” do centro da cidade do Porto e o desterrar dos seus habitantes para bairros periféricos, foi, sem questionar as razões que lhe estiveram subjacentes, um crime social. Os responsáveis camarários não só obrigaram os habitantes das “ilhas” a abandonarem o seu local de vivência e convivência, como os dispersaram por diversos bairros de modo a matar o seu sentimento de pertença a uma comunidade. Sentiam-se sem terra e sem vizinhos.
No bairro do Cerco, as pessoas continuavam a ir ao centro da cidade para cortar o cabelo, comprar mercearia, tomar o seu café. Continuavam ligados aos seus espaços de origem. Era interessante ouvir, à noite, as mães a chamar pelos seus filhos, da janela do seu andar, como se ainda vivessem na “ilha” que reproduzia o modo de viver das aldeias.
Havia que estar com esta população escorraçada.
Eram tempos de Vaticano II. Tempos de grandes entusiasmos. Por isso, esta preocupação do “Pastor“ teve a incondicional adesão dos leigos, com especial relevo para os Cursos de Cristandade. Na sua componente técnica recebeu um extraordinário apoio do Instituto de Serviço Social do Porto e da sua directora, D. Julieta Cardoso. Quanto a Obra deve ao Instituto e a esta extraordinária senhora! As minhas homenagens.

- Já na altura havia boas relações com a C. M. Porto e a Segurança Social. Sempre se mantiveram cooperantes até hoje?

Não posso falar sobre as actuais relações entre a Obra e a Câmara porque desconheço.
Até 1975, posso afirmar que as relações entre a Obra e a Câmara passaram por dois momentos distintos. Desde o início, senti que na Câmara havia duas facções. Esta divisão tornou-se muito notória a propósito do Centro Social do Cerco do Porto
O que aconteceu foi o seguinte. A Câmara ao projectar os Bairros logo incluía a construção de um centro social, previamente desenhado e que seria igual em todos os bairros. Quando iniciámos o trabalho no Cerco, começámos a ocupar várias caves dos blocos que a Câmara cedia gratuitamente à Obra. Porém, havia necessidade de juntar as diversas actividades num único local até porque a Câmara precisava dos espaços que a Obra ocupava. Ao analisarmos o projecto do Centro Social já previamente definido pela Câmara, vimos que esse edifício não satisfazia as necessidades. Logo entabulámos negociações com a Câmara onde se digladiavam duas facções: uma que nos apoiava, formada pelo senhor Presidente, Dr. Nuno Pinheiro Torres e pelo Dr. Carlos Lobo, Director dos Serviços Centrais e Culturais em quem o Presidente delegara competências para dialogar com a Obra; e outra que se nos opunha, formada pelo senhor Vice-Presidente, Engenheiro Vasconcelos Porto e pelo Eng. Luís de Noronha e Távora, Director da Direcção de Habitação de quem dependiam os bairros camarários. A situação era complicada porque o Centro Social de que necessitávamos implicava um investimento muito superior ao previsto. Estávamos nós em negociações, quando o Vice-presidente, aproveitando umas férias do Presidente, enviou para o Ministério da Saúde e Assistência o projecto inicial para aprovação. Quando o Presidente regressou, deparou-se com um facto consumado e, não querendo entrar em conflito com o seu Vice, informou-nos que já nada havia a fazer…
Acontece, porém, que a Obra recebeu um convite do Senhor Director-Geral da Assistência para uma reunião em Lisboa em que ele queria ouvir a opinião de diversas instituições a propósito de um assunto que tinha entre mãos. Já não me lembro qual, porque eu e a D. Julieta, os dois responsáveis pela Obra, logo pensámos em aproveitar esse encontro para falar particularmente, com o apoio da Dr. Manuela Silva, sobre o Centro Social. Para isso, munimo-nos de estatísticas sobre o número de crianças e jovens que tínhamos no bairro, fizemos uma pequena resenha dos serviços que já estavam em funcionamento. A reunião seguiu os seus trâmites. No fim, quando o senhor Director-Geral nos viu, disse-nos: - por favor, agradeço que esperem um bocadinho por mim porque gostaria de saber a vossa opinião sobre um assunto de que o senhor Ministro me incumbiu. Nós sorrimos e bendissemos aquele inesperado pedido. Aguardámos. Qual não foi o nosso espanto quando o Senhor Director desdobra na nossa frente o projecto do Centro Social do Cerco, pedindo-nos opinião sobre a sua aprovação. Ele ignorava que o centro, embora construído pela Câmara, era para nosso serviço. E então perguntávamos: Senhor Doutor, a creche que aí está prevista é para quantas crianças? E ele respondia (já não sei ao certo): quarenta. E nós informávamos: pelo inquérito feito, há no bairro cerca de duzentas (os números não são exactos…). E a sala de estudo? E o Centro de Convívio? E onde vai funcionar o centro de jovens? E? E?... Conclusão do Director-Geral: -Então isto não chega para nada. – Não chega, não. Para fazer isto, é melhor não fazer nada… - Vai ser um problema. Eu não posso indeferir… Já sei ! Vou convocar uma reunião com a Câmara e convosco. E eu vou ao Porto. E vocês apresentam estes números. Está certo? Concordámos imediatamente.
Uns dias mais tarde, recebemos a convocatória para a reunião na Câmara. O senhor Director-Geral começou por explicar os motivos daquela reunião, não fazendo qualquer referência ao nosso encontro em Lisboa. Depois de descrever todo o projecto, perguntou-nos a nossa opinião. Nós esclarecemo-lo, como se fora a primeira vez. Quando ele concluiu que o Centro Social projectado não satisfazia as necessidades do Bairro nem da nossa actividade, o Engenheiro Távora diz: - Senhor Director-Geral, como sabe, nós somos engenheiros, percebemos de edifícios mas nada sabemos sobre os problemas sociais… Se não serve, é preciso projectar outro centro, não acha, senhor Presidente? – Penso que sim. Vamos arranjar um novo projecto. ( Nós entreolhámo-nos, sorrimos, mas nada dissemos).
E assim foi. Fez-se um novo projecto. E de um orçamento previsto de 400 contos, o novo Centro Social passou para mais de 2.000 contos. Houve, no entanto, um caso em que o Engenheiro Távora não cedeu. Nós não queríamos que o centro fosse instalado no meio do bairro, onde estava previsto e onde acabou por ser implantado. A Câmara argumentava que não tinha terreno disponível noutro local. Nós queríamos que o centro ficasse junto do bairro mas fora dele para favorecer a integração do bairro na zona habitacional antiga e permitir um convívio de pessoas do e de fora bairro. Considerávamos isso muito importante para se evitar a formação de “guetos”, mas não conseguimos. E foi pena...

Enquanto o senhor Dr. Pinheiro Torres foi vivo, as relações foram de total confiança com um absoluto respeito pela esfera de influência de cada um. Quando ele faleceu, vítima de um brutal acidente de carro, as coisas complicaram-se porque a equipa que o substituiu teve dificuldades em respeitar a independência da Obra: esta deveria prestar um apoio moral às políticas camarárias. E isso nunca aceitámos. Até porque nem sempre, melhor, quase nunca, estávamos de acordo. E daí, uma certa deteriorização no relacionamento.

- Esteve muito tempo na Presidência da Direcção. O que destaca desse período?

Estive desde a sua criação até 1975, cerca de 11 anos. O que destaco? A alegria de um projecto que víamos crescer. A colaboração entusiástica de muitos e muitos leigos. A maravilha do despertar de populações, antes marginalizadas, para a consciência do seu poder interventor. O nascimento de uma Obra Diocesana que trazia consigo a marca da sua época: a década de sessenta, nos tempos do Vaticano II.
A Obra era eclesial mas não era clerical. Era de leigos, dirigida por leigos. Ainda me lembro da dificuldade que tivemos em enquadrar a presença de um sacerdote dentro dos estatutos do Obra. Não queríamos que fosse um assistente religioso, (porque não era), também não queríamos que fosse um director e muito menos o presidente. Era uma Obra da Igreja que nascia por iniciativa do Prelado da Diocese. Como o Vaticano II defendia, havia que dignificar a função dos leigos num campo especificamente seu. Logo a Direcção seria constituída apenas por leigos. (Com a aprovação dos Estatutos, foi empossada a sua primeira Direcção que, entre outros, teve como Presidente o Dr. Victor Capucho. Posteriormente, a presidente foi a D. Maria Elisa Acceioli Barbosa)
Mas, como obra diocesana, deveria haver junto da Direcção um sacerdote responsável, que faria a ponte entre a Obra e o Prelado da Diocese. E foi assim que ficou nos estatutos, creio eu.

- Que recorda da passagem de Sá Carneiro e Fernando Távora pela Direcção? Que importância teve?

A Obra Diocesana é uma criação do Senhor D. Florentino que sempre a acarinhou e acompanhou. Era um pouco a “menina dos seus olhos”. Por isso, semanalmente me encontrava com ele. Honra lhe seja feita. Vinha muitas vezes celebrar à capela do Bairro do Cerco. Aparecia sem avisar à hora em que eu ia celebrar. Era o Pastor.
O Senhor D. António, desde muito cedo se interessou pela Obra. Nas duas vezes que me encontrei com ele, uma em Alba de Tormes e outra já em Fátima, conversámos longamente sobre a Obra. Quando regressou à sua Diocese, chamou-me e disse-me que queria que a Obra continuasse o seu trabalho, apenas desejava nomear uma nova direcção. E pediu-me/ordenou-me que, em sua representação, entrasse em contacto com o Dr. Sá Carneiro e o convidasse para Presidente da Direcção. Também desejava que eu, em seu nome, convidasse o Arquitecto Fernando Távora.
Do Dr Sá Carneiro começo por recordar o encontro do convite. Recebeu-me com toda a gentileza no seu escritório na Rua da Picaria, disse-me que se sentia muito honrado com o convite mas que não poderia aceitar porque não estava “enfronhado” nesses assuntos e porque não queria colocar o senhor Bispo numa situação difícil dado que iria apresentar na Assembleia Nacional um projecto sobre o divórcio que, certamente, provocaria muita polémica junto da hierarquia católica. Teve a amabilidade de mefalar sobre o texto da sua intervenção que já tinha escrito. Confessei-lhe que concordava com o seu conteúdo e o senhor Bispo assumia as consequências do meu apoio. Compreendia, no entanto, que teria muito trabalho como deputado, por isso concordava que não ficasse como presidente, mas sim como um elemento da Direcção. E ele aceitou. Em síntese, não foi presidente porque não quis.
Para além da seriedade que punha em todas as discussões, habituei-me a admirar a clareza das suas ideias e a lógica do seu raciocínio. Relembro apenas alguns pormenores…
Quando íamos reunir com a Câmara Municipal do Porto, com quem, como disse, as relações não eram as melhores após a morte do Dr. Nuno Pinheiro Torrres, sempre nos lembrava: “ se a mãe estiver, eu não falo” (a mãe era a D. Maria Francisca Lumbrales Sá Carneiro que, à época, era a vereadora da Assistência Social). De facto, quando a D. Maria Francisca estava presente, era vê-lo em silêncio do princípio ao fim do encontro: a conversa ficava a cargo dos outros elementos presentes. Admirei sempre essa preocupação de nunca entrar em conflito com a mãe.
Lembro-me da profecia do Arquitecto Fernando Távora. Já não recordo o ano (talvez 1972, 1973). Foi numa época em que o relacionamento da Obra com o Governo passava por momentos difíceis. E quando, preocupados, nos interrogávamos sobre os caminhos a trilhar, o Arquitecto diz calmamente: “estamos para aqui tão preocupados com o Governo quando daqui a algum tempo tudo será resolvido.” Todos olhámos surpreendidos para ele: como? E com a serenidade que lhe conhecíamos, afirma: “porque, daqui a algum tempo, quem vai mandar nisto (no Governo) é aqui o Doutor.”( e apontou para o Dr. Sá Carneiro que estava a seu lado.) Ele riu-se, nós rimo-nos. E o Arquitecto, muito sério, reafirmou:” não tenham dúvidas!” A profecia cumpriu-se. E, rindo, relembrámo-la uns dias antes da sua morte, quando ele, como Primeiro-Ministro, veio inaugurar as novas instalações do Centro Social de S. Roque.
Sempre que o Dr. Sá Carneiro estava presente, aproveitávamos o período que antecedia a reunião semanal das 4as feiras para nos inteirarmos das “novidades políticas” de Lisboa. Éramos uns privilegiados. Bebíamos em fonte segura.
Recordo uma noite em que o Dr. Sá Carneiro estava particularmente bem disposto. Quando lhe perguntámos a razão, disse: “ Isto está a mudar. E está a mudar por dentro. Um filho do Dr. Rebelo de Sousa, afilhado do Marcelo Caetano, está do nosso lado. Também se chama Marcelo. É um jovem muito inteligente e de bom carácter. Deposito nele grandes esperanças”
Numa outra noite, pareceu-nos muito fatigado. Instado sobre o porquê, confessou: “ Hoje dei uma entrevista a um jornalista do “ República”. É açoriano e muito jovem mas muito sagaz nas questões que me punha e muito profundo nas suas análises. Obrigou-me a pensar bem nas respostas que dava. Fiquei cansado.” Não disse o nome, mas pela descrição que fez, creio poder concluir tratar-se do Dr. Jaime Gama.
Registei estes dois casos até porque o Dr. Sá Carneiro não costumava ser muito efusivo na manifestação dos seus estados de alma.

Fernando Távora não esgotou a sua actividade como arquitecto, professor, homem de cultura. O seu humanismo transbordou pelas comunidades mais pobres do Porto como o Barredo e os Bairros Sociais. Era um homem de bem, de um riso franco, de um humor desconcertante, de uma emoção à flor da pele, de um humanismo encantador
Nas reuniões com a Câmara e com o Governo ele defendia até à exaustão os interesses da Obra e das populações dos Bairros. Mas o que mais me recordo é o seu humor e a sua simplicidade.
Na época em que pertenceu à Direcção da Obra, o Director dos Serviços de Habitação da Câmara do Porto era o Senhor Engenheiro D. Luís de Távora com quem nem sempre as relações da Obra foram fáceis, atravessando mesmo certos momentos de conflito aberto. Quando, nós, em tom de brincadeira, dizíamos “ aqui o Arquitecto é que podia resolver a situação, falava com o primo Engenheiro e tudo se resolvia”, ele logo atalhava ”não, não somos primos, eu não tenho títulos e o único brasão que possuo é o do meu trabalho.

A presença destes dois ilustres portuenses, para além de outros a quem peço desculpa de não nomear, deram à Obra um grande peso junto da Câmara e do Governo. Não sei se facilitaram as coisas, mas, pelo menos, impunham o maior respeito junto dos nossos interlocutores e ajudaram a resolver alguns casos em benefício das populações.

- Ficou com a noção de não ter feito algo que gostaria antes de sair?

Quem não fica? Há sempre sonhos. Gostaria que a Obra se estendesse a todos os bairros do Porto. E mais, que ela realizasse o seu nome. O seu âmbito não é apenas os Bairros, mas a Cidade do Porto. Que ela conseguisse abrir os bairros à cidade de modo que eles deixassem de ser “guetos”, mas cidade de pleno direito. Deixassem de ter sobre si o ferrete da marginalidade.
Eu era conhecido como o “Padre João dos Bairros”- por isso fico magoado quando os vejo inferiorizados pela comunicação social. Há que os dignificar. Isso era o que eu mais desejava.

- Ainda continua a acompanhar o percurso da ODPS? Que análise faz da sua evolução até hoje?

Apenas pela comunicação social. Assim fiquei muito satisfeito ao saber que a Obra: já conta com 12 centros sociais- no Carriçal, Cerco do Porto, Fonte da Moura, Lagarteiro, Machado Vaz, Pasteleira, Pinheiro Torres, Rainha D. Leonor, Regado, São Roque da Lameira e S. Tomé; conta com mais de 3500 utentes, distribuídos pelas creches, jardins-de-infância, actividades de tempos livres e centros de dia e de convívio; pretende criar, este ano, um centro de noite para apoiar idosos. A Obra continua a nascer...
Agrada-me ver que a Obra Diocesana começa a ser notícia na comunicação social. Gostaria que aproveitasse a sua influência junto dos órgãos de informação para os alertar para as coisas boas que há e se passam nos bairros. Infelizmente, estes só são notícia pelos piores motivos. Muitas vezes, os causadores nem moram no bairro, mas o título da notícia em grande destaque é “No bairro de…” . É preciso que saibam que os bairros camarários não são “coutadas de marginais” nem “ reservas de índios” e, muito menos, “caixotes de lixo”. Os moradores dos bairros não são portugueses de segunda; são cidadãos de primeira. São gente de bem. Excepções há-as em todos os lados. Não tenho dúvidas no que afirmo. Vivi vários anos no bairro do Cerco. Convivi e convivo muito com os seus moradores e com os do bairro de S. Roque da Lameira. Boas pessoas, gente amiga…

Críticas? Apenas uma impressão. Se não tiver razão, ainda bem. Mas parece-me que a Obra perdeu um pouco da sua vertente de promoção social para se afirmar mais como de “ assistência social”. Se estiver enganado, desculpem.”

- Que projecto ou acontecimento gostaria de ver aliado e desenvolvido na ODPS, a longo prazo?

A atenção a todos os que não são integráveis noutras instituições. Gostaria que fosse uma instituição que chegasse aonde as outras instituições não chegam, que trabalhasse as zonas envolventes dos bairros de modo a criar-se verdadeiras comunidades humanas e que aproveitasse esse imenso manancial de potencialidades que são os reformados.


- Um dos Valores da ODPS, no qual nos debruçamos nesta edição da Revista, é o ‘Empenhamento’. Sente que há o devido empenhamento geral na área da Solidariedade Social?

Posso parecer “velho do restelo”, mas parece-me que “no meu tempo”, havia maior dedicação aos outros, maior empenho em obras de promoção social. Não se falava tanto em voluntariado mas havia sempre uns “carolas” dispostos a sacrificar-se em favor da comunidade.
No entanto, no meu trabalho junto dos jovens ao longo de mais trinta anos, tenho encontrado muita generosidade e muita vontade de colaborar na construção de uma sociedade mais humana. E não são apenas os jovens, mas também são muitos os reformados que não encontram modo de serem úteis à sociedade, sentem-se uns inúteis, esquecidos, marginalizados. O que falta: projectos concretos/congregadores/dinamizadores?





Entrevista de
André Rubim Rangel



NOTAS BIOGRÁFICAS
Nasci em Campo, Valongo. Frequentei os seminários do Porto, tendo sido ordenado presbítero em 1963. Como aluno do Seminário Maior, colaborei com o meu colega Teixeira Coelho na criação de um parque infantil para as crianças do “morro do Sé” para as quais organizámos colónias de férias em Arouca e em Valongo. Em Outubro de 64, fui nomeado coadjutor de Santo Ildefonso e, a partir de Março, acumulei com o trabalho na Obra Diocesana. Em Outubro de 64, fui viver para o Bairro do Cerco do Porto, com a missão de lançar os alicerces de uma nova paróquia que envolvesse as zonas do Cerco do Porto e de S. Roque da Lameira. Assim surgiu a Paróquia Experimental de Nossa Senhora do Calvário em 1967 que passou a definitiva em 1972. Às minhas funções na Obra Diocesana, juntei as minhas obrigações como pároco. Este trabalho só terminou em Abril de 1975, data em que pedi dispensa das minhas obrigações inerentes ao estado sacerdotal. Posteriormente, licenciei-me em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Sou professor. Casado. Tenho dois filhos. Sou membro do Coro Gregoriano do Porto.